O Projeto Comprova é uma iniciativa colaborativa e sem fins lucrativos liderada pela Abraji e que reúne jornalistas de 42 veículos de comunicação brasileiros para descobrir, investigar e desmascarar conteúdos suspeitos sobre políticas públicas, eleições, saúde e mudanças climáticas que foram compartilhados nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.
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Investigado por: 2024-03-28

Tratado da OMS não fere soberania dos países e busca melhorar resposta a pandemias

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O tratado da Organização Mundial da Saúde para situações pandêmicas foi proposto pela primeira vez em 2021 no momento em que o mundo vivia os efeitos da covid-19. As negociações entraram na nona rodada em março deste ano e há previsão de votação do texto em maio, apesar de os países-membros não mostrarem consenso sobre diversos pontos. O documento traça orientações para crises sanitárias com o objetivo principal de reduzir desigualdades na resposta das nações, como distribuição de vacinas e remédios. O tratado funciona como um guia e não fere a soberania dos países, diferentemente do que sugerem posts que circulam nas redes sociais.

Conteúdo investigado: Publicação em rede social traz artigo intitulado “Faltam dois meses para o Tratado Pandêmico da OMS ser assinado pelos 194 países membros mas antes a OMS quer combater a desinformação e as teorias da conspiração”.

Onde foi publicado: Telegram.

Contextualizando: Representantes de 194 nações vêm discutindo há três anos mecanismos do tratado proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para aprimorar respostas a situações pandêmicas. O documento traz onze premissas para a elaboração do acordo, admitindo, por exemplo, as desigualdades regionais dos sistemas de saúde e reafirmando a soberania dos países para controles biológicos. “A Organização Mundial da Saúde é fundamental para fortalecer a prevenção da pandemia, preparação e resposta, pois é a autoridade dirigente e coordenadora do trabalho internacional de saúde”, diz trecho do rascunho mais recente do tratado, divulgado em março deste ano.

Ao contrário do que posts em redes sociais vêm alegando, o acordo, ainda em elaboração, não se sobrepõe às decisões tomadas pelos governos. Em fevereiro, o diretor-geral da organização, Tedros Adhanom, se manifestou publicamente sobre informações falsas que circulam na internet a respeito das negociações e reiterou que o tratado “não dá à OMS qualquer poder soberano sobre qualquer país”. “A nossa função é aconselhar”, disse Adhanom. Em outro momento, ele reafirmou que a corrente de “notícias falsas, mentiras e teorias da conspiração” estava prejudicando o andamento do tratado. A expectativa é que o texto seja votado em maio, durante a 77ª edição da Assembleia Mundial da Saúde, realizada anualmente em Genebra, na Suíça.

No fim de 2022, um texto investigado pelo Comprova espalhou uma teoria conspiratória de que o acordo substituiria “leis nacionais e estaduais” e daria à entidade o poder de exigir vacinações obrigatórias, “acabando com a democracia”. À época, a OMS já havia realizado reuniões no chamado Intergovernmental Negotiating Body (INB) (Órgão Intergovernamental de Negociação, em português), que foi criado justamente para reunir representantes dos países-membros e discutir o acordo.

“Não há como usurpar a soberania, porque todo tratado internacional depende da anuência dos Estados. Depende de os Estados aderirem a esse tratado voluntariamente. Cada Estado só vai fazer isso se assim entender por bem e, depois, ratificá-lo dentro do seu ordenamento jurídico”, explicou ao Comprova a doutora em Direito Internacional e professora na Universidade Mackenzie Helisane Mahlke. A especialista lembra, ainda, que a OMS é uma agência da ONU e não atua de forma autônoma.

Posts nas redes sociais também têm citado, de forma irônica, a intenção da entidade de combater teorias conspiratórias em situações de crises sanitárias. O artigo 18 do tratado prevê quatro regras para evitar desinformação em momentos de emergência em saúde pública, mas não dá detalhes como serão implementadas. São elas:

1 – Cada parte promoverá o acesso oportuno a informações confiáveis e baseadas em evidências sobre pandemias e suas causas, efeitos e motivadores, com o objetivo de combater e abordar a desinformação, especialmente através da comunicação de riscos e do envolvimento eficaz a nível comunitário;

2. As partes promoverão e/ou conduzirão, conforme apropriado, pesquisas e devem comunicar políticas sobre os fatores que dificultam ou fortalecem a adesão às medidas sociais e de saúde pública em uma pandemia, bem como a confiança em instituições e agências de ciência e saúde pública;

3. As partes promoverão e aplicarão abordagens baseadas na ciência e em evidências para medidas eficazes e avaliação oportuna de riscos e comunicações públicas culturalmente apropriadas;

4. As partes trocarão informações e cooperarão, em conformidade com a legislação nacional, em prevenir a desinformação e esforçar-se por desenvolver melhores práticas para aumentar a precisão e confiabilidade das comunicações de crise.

Na internet, usuários vêm atacando a Organização Mundial da Saúde alegando um suposto poder que o tratado colocaria acima das liberdades dos cidadãos, como mostrou checagem da AFP. “Usa-se o pretexto de falar de liberdades individuais de modo truncado para tratar de uma questão que é liberdade para se ter saúde, a integridade mantida”, disse ao Comprova Sérgio Zanetta, médico sanitarista e professor de Saúde Pública e Epidemiologia do Centro Universitário São Camilo.

O especialista acrescenta que a OMS já dispõe de um código sanitário internacional que possibilitou, por exemplo, o controle do ebola na África subsaariana. “É uma doença hemorrágica febril muito grave, com alta letalidade, e que se transmite muito rapidamente. Em uma situação como essa, a OMS coopera com o país local para que esse país possa conter a transmissão no seu território, ajudando a impedir que a doença se espalhe”, explica o professor.

Dificuldades nas negociações

O rascunho do tratado vem passando por diversas alterações por falta de consenso entre as autoridades. Um dos pontos ainda em discussão é a troca de informações entre as equipes sanitárias dos países sobre patógenos com potencial para gerar crises globais, como foi o caso da covid-19. A Suíça, por exemplo, que abriga grandes farmacêuticas, não concorda com o termo. Já os Estados Unidos vêm se opondo à dispensa de propriedade intelectual das vacinas.

“Pelo que pude analisar do teor do tratado, ainda é um documento fraco no que diz respeito a exigir a cooperação entre os Estados para a distribuição das vacinas, por exemplo. O acordo busca alternativas, mas não é tão claro. Além disso, coloca a Organização Mundial da Saúde no papel dela, de orientar condutas para garantir a segurança das pessoas”, avaliou Mahlke.

O artigo 12 cita de maneira breve a necessidade de auxílio a países com menos recursos. “Durante uma pandemia, cada país, em condições de fazê-lo, deverá, dentro dos recursos disponíveis e sujeito de acordo com as leis aplicáveis e em conformidade com o Artigo 13, reservar uma parte de sua aquisição total de produtos relevantes diagnósticos, terapêuticas ou vacinas em tempo hábil para uso em países que enfrentam desafios no cumprimento necessidades de saúde pública e procura de diagnósticos, terapêuticas ou vacinas relevantes.”

No início deste mês, a conceituada revista científica The Lancet publicou um editorial com duras críticas ao termo que concede à Organização Mundial da Saúde acesso a apenas 20% de produtos relacionados a uma pandemia para distribuir globalmente. A outra parcela, de 80%, ficaria a cargo da comunidade internacional, incluindo remédios e vacinas. “Isto não é apenas vergonhoso, injusto e desigual, é também ignorante. Criar e aderir a um conjunto de termos fortes e verdadeiramente equitativos sobre acesso e partilha de benefícios não é um ato de bondade ou caridade. É um ato de ciência, um ato de segurança e um ato de interesse próprio. Ainda há tempo para corrigir esse erro de julgamento”, diz o artigo.

Como o conteúdo pode ser interpretado fora do contexto original: O tratado da OMS para situações pandêmicas vem sendo alvo de desinformação desde que foi anunciado pela organização, mesmo quando sequer havia um rascunho do acordo. Os desinformadores alegam que a entidade busca exercer poderes dentro dos países que negariam a liberdade dos indivíduos, mas, além de não ser esse o papel da agência, que responde à ONU, a legislação internacional não o permitiria. Sem contexto, o conteúdo pode levar o leitor a acreditar que há um plano para tirar a soberania do país em que vive e excluindo suas liberdades, descredibilizando uma das organizações internacionais mais respeitadas no mundo.

O que diz o responsável pela publicação: A reportagem entrou em contato com a responsável pela divulgação do artigo, mas não recebeu resposta até agora. Ela já publicou outros textos que também foram alvo de investigações do Comprova e que podem ser vistos aqui e aqui.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 26 de março, a publicação somava 6,3 mil visualizações.

Como verificamos: Iniciamos a verificação buscando informações sobre o tratado no site da OMS, que disponibiliza o passo a passo das negociações para todo o público, incluindo vídeos das sessões. Depois, buscamos notícias sobre o assunto em portais internacionais e em outras agências de checagens. Por último, entramos em contato com dois especialistas para analisar os fatos.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: Textos com desinformação sobre o tratado da OMS vêm sendo alvo de investigações desde 2021, quando foi anunciado. O assunto já foi verificado pelo Comprova, pela AFP, Reuters e AP News.

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Investigado por: 2024-03-26

Entenda o bloqueio de R$ 2,9 bi em despesas anunciado pelo governo federal

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O bloqueio de R$ 2,9 bilhões anunciado pelo governo federal não é um corte, mas uma contenção de despesas discricionárias (que não são obrigatórias) e ocorre para que, segundo o Ministério do Planejamento e Orçamento, não falte dinheiro para as despesas obrigatórias. Especialista ouvido pelo Comprova explica que a medida não é nova e vem sendo utilizada desde que a Lei de Responsabilidade Fiscal foi instaurada, para que o Estado consiga cumprir as metas fiscais estabelecidas. Segundo ele, a restrição é pequena, já que corresponde a 0,14% do limite total de gastos para 2024. O governo informou que, em maio, há possibilidade de que o bloqueio seja desfeito.

Conteúdo analisado: Publicações em rede social e site afirmam que o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) bloqueou R$ 2,9 bilhões do orçamento de 2024. O post é acompanhado de uma foto do presidente com uma expressão de tristeza. Em resposta, diversos perfis sugerem que o bloqueio significa crise no país. “Afunda Brasil numa Venezuela próxima”, escreveu um seguidor.

Comprova Explica: O governo federal anunciou um bloqueio em despesas discricionárias – aquelas que não são obrigatórias –, durante a apresentação do Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias do primeiro bimestre, em 22 de março. Segundo o Ministério do Planejamento e Orçamento, o Regime Fiscal Sustentável, mecanismo de controle do endividamento, determina um limite anual para os gastos, fixado em R$ 2,089 trilhões em 2024. Como a previsão para as despesas obrigatórias está R$ 2,9 bilhões acima, será feita uma contenção nesse valor, para que o limite seja cumprido.

Ainda de acordo com o Ministério do Planejamento, o bloqueio não vai atingir nenhuma despesa obrigatória – que a União tem a obrigação legal ou contratual de pagar. A pasta também esclareceu que o bloqueio não significa corte, e funciona como um instrumento preventivo usado em despesas discricionárias para uma eventual necessidade de cancelamento das despesas e o remanejamento desses recursos para o atendimento das despesas obrigatórias.

As despesas obrigatórias são para pagamento de salários e aposentadorias, dos encargos da dívida pública, das transferências a estados e municípios, entre outras. Já as discricionárias são aquelas em que o governo tem liberdade para decidir o melhor momento para a realização de um gasto, como recursos para custeio e investimentos. A lista com as áreas que não podem ser afetadas pela limitação consta no artigo 3 da Lei Complementar 200/23.

Paulo Corval, professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal Fluminense (UFF), explica que a medida é usada desde a instauração da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101), nos anos 2000, para que o governo consiga atingir um resultado de execução orçamentária positivo.

“Quando vemos as contas públicas saindo dessa meta, o governo precisa tomar medidas e a medida mais básica que a LRF pede é o que a gente chama de Limitação de Empenho”, diz. Segundo ele, trata-se de uma limitação na liberação de recursos para os órgãos do governo, atendendo programas e políticas públicas nacionais. “Essa é uma política tradicional ortodoxa materializada na Lei Complementar 101 de 2000 e que persiste como orientação durante todo esse período”, afirma.

O montante bloqueado representa 0,14% do total de gastos previstos para o ano e, segundo o especialista em finanças públicas, não é esperado impacto negativo. “Essa limitação de R$ 2,9 bilhões, é claro que quando a gente fala como pessoa física, é muito dinheiro. Mas a gente tem um Produto Interno Bruto (PIB) de quase R$ 10 trilhões e uma receita que gira na casa trilionária. Então, R$ 2,9 bilhões, relativamente falando, é muito pouco”, diz. “Em termos de valores relativos, não os valores absolutos, está dentro do aceitável. Não é motivo para nenhuma preocupação neste momento, não agora”, afirma.

Durante a divulgação do relatório, o secretário de Orçamento Federal, Paulo Bijos, afirmou que, em maio, há possibilidade de que o bloqueio seja desfeito. O mesmo aconteceu em 2023, entre novembro e o fim do ano, quando restrições de um total de R$ 5 bilhões foram desbloqueadas por meio de portarias, porque os recursos das despesas discricionárias haviam sido remanejados para despesas obrigatórias, cumprindo o limite total.

Como verificamos: A reportagem buscou pelo bloqueio anunciado e encontrou informações em sites da imprensa formal e do governo federal. Também foi procurado o Ministério do Planejamento e um especialista em finanças públicas para explicações sobre o funcionamento e aplicação do bloqueio de recursos. Ainda foram consultadas a Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000, a Lei Complementar 200, de 2023, e a Emenda Constitucional 95, de 2016.

Regime Fiscal Sustentável

O Regime Fiscal Sustentável (Lei Complementar 200/23) substituiu o Teto de Gastos (Emenda Constitucional 95), que ficou em vigor entre 2016 e 2023. O novo arcabouço fiscal, como também é conhecido, é um mecanismo de controle do endividamento, com foco no equilíbrio entre arrecadação e despesas. O objetivo é tornar o regime fiscal brasileiro mais flexível, para que seja capaz de acomodar choques econômicos, sem comprometer a consistência do orçamento no médio e longo prazo.

As novas regras pretendem manter as despesas abaixo das receitas a cada ano e, em caso de sobras, elas deverão ser usadas apenas em investimentos, buscando a sustentabilidade da dívida pública. Segundo o governo federal, o novo regime tem o propósito de garantir a responsabilidade social e fiscal, de forma que possibilite o financiamento adequado das políticas públicas.

A cada ano, haverá limites da despesa primária reajustados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e também por um percentual do quanto cresceu a receita primária descontada a inflação. O texto do novo arcabouço fiscal prevê sanções de cumprimento obrigatório para o governo, se não for atingida a meta de resultado primário do ano anterior. Com a aprovação do novo regime, em agosto de 2023, a ideia do governo federal é zerar o déficit fiscal já em 2024 e passar a ter superávit em 2025.

“O Regime Fiscal Sustentável fez ajustes, mudanças e incrementos naquilo que a gente tem desde 2000. É um itinerário que muda a sua maneira de cálculo, mas o espírito é o mesmo, para você conseguir criar uma margem de meta fiscal que não engesse tanto o governo”, afirma Paulo Corval. “A regra nova, espera-se, embora mais complexa, cria margem para o governo manter o cuidado com a dívida, com as despesas, mas também deixa uma margem para o governo continuar sendo o ator econômico que ele é no sistema capitalista”, diz.

Por que explicamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e busca esclarecer aqueles considerados duvidosos e que podem gerar entendimentos confusos e boatos.

Outras checagens sobre o tema: Em agosto de 2023, o Comprova já havia feito uma verificação esclarecendo que o decreto com contingenciamento de recursos federais não determina corte de verbas. Checagens sobre o mesmo tema feitas pelo UOL Confere também mostraram que eram enganosos a comparação do bloqueio do Orçamento a confisco de poupanças e posts afirmando que o Brasil fez empréstimo enquanto o presidente Lula bloqueou recursos. É comum que conteúdos relacionados a recursos e orçamento sejam alvo de desinformação. Em fevereiro, o Comprova explicou como funciona o programa Pé-de-Meia, que vai beneficiar alunos de baixa renda do ensino médio, e classificou como enganoso um vídeo dizendo que todos com mais de 60 anos têm isenção de Imposto de Renda, IPTU e desconto em contas.

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Investigado por: 2024-03-19

Entenda o acordo entre a Anatel e o TSE para as eleições e o que é o ‘poder de polícia’

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Publicações em rede social e site levantam desconfiança sobre um acordo feito entre o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes, e o presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Carlos Baigorri, para atuação dos órgãos nas eleições. As postagens indicam que a Anatel usará o chamado "poder de polícia para retirar do ar todos os sites e aplicativos que o TSE considerar antidemocratas”. Na prática, os acordos feitos entre as instituições buscam combater a desinformação nas eleições e acelerar a comunicação entre esses órgãos. O “poder de polícia” refere-se, na verdade, ao poder que a administração pública possui de ordenar condutas, estabelecer obrigações, fiscalizar e impor sanções. A Anatel, na situação em questão, atuará no cumprimento de determinações judiciais, baseadas em normativas eleitorais que vetam, dentre outros, conteúdos com desinformação, discurso de ódio, racismo, ideologia nazista e antidemocráticos.

Conteúdo analisado: Publicações em rede social e site afirmam que, após um acordo feito entre o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes, e o presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Carlos Baigorri, a agência “terá poder de polícia para retirar do ar todos os sites e aplicativos que o TSE considerar antidemocratas”.

Comprova Explica: O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lançou, no último dia 12 de março, o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (CIEDDE), sob a liderança do presidente da Corte, ministro Alexandre de Moraes. O propósito do centro, conforme o TSE, é combater a disseminação de desinformação eleitoral, incluindo deepfakes e discursos prejudiciais à democracia, promovendo uma cooperação entre a Justiça Eleitoral, órgãos públicos e entidades privadas (como as plataformas de redes sociais). E assim garantir o cumprimento de normas eleitorais, como a Resolução TSE nº 23.610/2019, que trata sobre propaganda eleitoral e que recentemente foi atualizada para abordar o uso fraudulento da tecnologia em campanhas políticas.

No mesmo dia, Alexandre de Moraes firmou um acordo de cooperação técnica com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) para facilitar as operações do CIEDDE, uma vez que a empresa é uma das instituições externas convidadas a participar do centro em um modelo de colaboração mútua.

Anteriormente, em dezembro de 2023, o TSE e a Anatel já haviam assinado outro acordo para garantir um fluxo de comunicação célere e direto, por meio eletrônico, entre os dois órgãos e agilizar o cumprimento de decisões judiciais para bloqueio de sites que propaguem desinformação.

No caso, o poder de polícia que chegou a ser mencionado pelo presidente da Anatel, Carlos Baigorri, em referência à atuação na parceria com o TSE, diz respeito ao poder que a administração pública tem de estabelecer obrigações, fiscalizar e determinar sanções. No trabalho da Anatel, cabe à agência, diante de decisão da Justiça Eleitoral, que ordene, por exemplo, a retirada de sites do ar por propagarem desinformação, além do contato com as prestadoras de serviços de telecomunicações para que as mesmas efetuem o bloqueio do acesso dos websites em questão.

Portanto, a Anatel dá cumprimento ao que é decidido pela Justiça Eleitoral com base em normativas eleitorais. Em 2024, as normativas eleitorais foram atualizadas para englobar também, dentre outros pontos, a proibição das deepfakes, a obrigação de aviso sobre o uso de Inteligência Artifical (IA) na propaganda eleitoral e a responsabilização das big techs sobre a retirada imediata do ar de conteúdos com desinformação, discurso de ódio, ideologia nazista e fascista, além dos antidemocráticos, racistas e homofóbicos.

Como verificamos: Primeiramente, buscamos notícias sobre o assunto. Em seguida, procuramos o TSE para solicitar esclarecimentos de modo a explicar alguns pontos da parceria com a Anatel. Posteriormente, procuramos a Anatel para entender o papel da agência na iniciativa de combate à desinformação nas eleições deste ano. Também entrevistamos o advogado Francisco Zardo, mestre e doutorando em Direito Administrativo pela Universidade de São Paulo (USP) e conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Seccional Paraná, que explicou que é o poder de polícia.

Acordo assinado entre o TSE e a Anatel

O TSE inaugurou, em 12 de março o CIEDDE, que é um grupo criado por meio da Portaria 180/2024, assinada pelo presidente da Corte, Alexandre de Moraes. O objetivo, segundo o TSE, é combater a desinformação e os discursos de ódio, discriminatórios e antidemocráticos no processo eleitoral. O CIEDDE funcionará na sede do tribunal, em Brasília.

O grupo busca estabelecer uma cooperação entre a Justiça Eleitoral, órgãos públicos e entidades privadas (em especial plataformas de redes sociais e serviços de mensageria privada) para garantir o cumprimento da Resolução TSE nº 23.610/2019, que trata da propaganda eleitoral.

Em fevereiro deste ano, a resolução foi atualizada para incorporar o combate ao uso fraudulento da tecnologia, como a produção de notícias falsas e a utilização irregular da Inteligência Artificial, em campanhas eleitorais.

O CIEDDE terá uma rede de comunicação em tempo real com os 27 Tribunais Regionais Eleitorais (TREs). O centro será comandado pelo presidente do TSE, Alexandre de Moraes, e composto por:

  • Secretário-geral do TSE, Cleso Fonseca;
  • Diretor-geral do Tribunal, Rogério Galloro;
  • Diretor da Escola Judiciária Eleitoral do TSE, ministro Floriano Azevedo;
  • Secretária de Comunicação da Corte, Giselly Siqueira;
  • Assessor-chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE, José Fernando Chuy;
  • Dois juízes auxiliares da Presidência da Casa, a serem designados.

A norma que criou o CIEDDE indica ainda que o TSE fechará acordos de cooperação com a Procuradoria-Geral da República (PGR), com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, com o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

No caso da Anatel, isto ocorreu no próprio dia 12 de março, quando Alexandre de Moraes assinou um acordo de cooperação técnica com a agência para operacionalizar o CIEDDE, visto o convite feito às instituições externas.

Os envolvidos no acordo devem:

  • Implementar a cooperação no âmbito administrativo;
  • Realizar o intercâmbio de informações e agilizar a comunicação entre órgãos, entidades e plataformas de redes sociais, visando otimizar a implementação de ações preventivas;
  • Cooperar na defesa da integridade do Processo Eleitoral e da confiabilidade do sistema eletrônico de votação, inclusive mediante a emissão de notas, pareceres e declarações públicas;
  • Promover a cooperação entre a Justiça Eleitoral, órgãos públicos e entidades privadas, em especial as plataformas de redes sociais e serviços de mensageria privada, durante o perı́odo eleitoral;
  • Cooperar na realização de cursos, seminários e estudos para a promoção de educação em cidadania, Democracia, Justiça Eleitoral, direitos digitais e combate à desinformação eleitoral;
  • Cooperar na organização de campanhas publicitárias de educação contra a desinformação, discursos de ódio e antidemocráticos, e em defesa da Democracia e da Justiça Eleitoral.

Antes disso, em dezembro de 2023, o TSE e a Anatel já haviam assinado outro acordo de cooperação para agilizar a derrubada de sites que propaguem desinformação. Segundo o texto da norma, o acordo tem o propósito de “estabelecer um fluxo de comunicação célere e direto, por meio eletrônico, entre os dois órgãos para o cumprimento de decisões judiciais para bloqueio de sites”. Esse acordo tem prazo de vigência indeterminado.

Conforme publicação do TSE, até então, as determinações de retirada de sites do ar por disseminação de informações prejudiciais ao processo eleitoral eram enviadas por meio de oficiais de Justiça. Na prática, ao vigorar o acordo de cooperação, é gerada uma integração eletrônica entre os sistemas das duas instituições, tornando a comunicação mais ágil.

Na ocasião, o presidente da Anatel, Carlos Baigorri, explicou que o mecanismo anterior era “mais moroso”, e, segundo ele, a Anatel recebeu “diversas determinações e julgamentos do Tribunal para retirar do ar sites, conteúdo e aplicativos que estavam disseminando desinformação e colocando em risco o processo eleitoral”.

“Poder de polícia” citado pelo presidente da Anatel

Em declaração à imprensa no dia 12 de março, Baigorri disse que a “Anatel usará poder de polícia contra fake news na eleição”. Essa afirmação tem gerado repercussão sobre o que vem a ser esse poder de polícia.

Ao Comprova, o advogado Francisco Zardo explicou que o poder de polícia, ao contrário do que sugere o nome, não se relaciona à atuação das polícias Militar, Civil ou Federal. Poder de polícia administrativa é o poder que a administração pública possui de ordenar condutas, estabelecer obrigações, fiscalizar e impor sanções.

“Por exemplo, quando a vigilância sanitária fecha um restaurante sem condições de higiene, ela está exercendo o poder de polícia. Da mesma forma, quando o Ibama autua alguém que cortou uma árvore sem licença ambiental”, explicou o advogado.

Ainda segundo Zardo, a finalidade principal do documento divulgado pelo TSE é agilizar o cumprimento das decisões judiciais, não introduzir novos poderes ou atribuições para ambas as instituições. “Não se cria nada novo, tanto o TSE quanto a Anatel continuarão a exercer os poderes e obrigações que já possuíam, apenas de forma mais ágil, a partir da integração eletrônica”, afirmou.

O advogado ainda ressaltou que, no caso específico, pode não ser adequado falar em exercício do poder de polícia pela Anatel. “Aqui, a Anatel estará meramente cumprindo determinações judiciais. A diferença é que os sistemas estarão integrados”, concluiu Zardo.

Portanto, o acordo entre o TSE e a Anatel busca a eficiência e a celeridade no cumprimento das decisões judiciais, garantindo uma integração eletrônica que otimiza os processos, sem alterar as competências e responsabilidades já estabelecidas para ambas as instituições.

Questionada sobre o uso da expressão, a Anatel, em nota, respondeu ao Comprova que a menção ao poder de polícia “trata-se de um conceito de Direito Administrativo, definido como a faculdade de que dispõe a administração pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”.

Eleições e bloqueio de sites

Sobre o acordo para o fluxo de comunicação entre o TSE e a Anatel, assinado em dezembro de 2023, a agência esclareceu ao Comprova que a Anatel “não efetua os bloqueios determinados pelo Poder Judiciário diretamente, mas sim entra em contato com as prestadoras de serviços de telecomunicações para que elas efetuem o bloqueio do acesso a determinados websites, nos termos estritos das decisões judiciais”.

Do mesmo modo, diz a Anatel, a participação no centro inaugurado pelo TSE não altera o fato de a agência ser “a intermediária que assegura, junto às prestadoras reguladas, que determinada decisão judicial seja cumprida”. A Anatel reforça que “não entra no mérito das decisões judiciais que recebe, mas assegura o seu cumprimento, dentro de suas atribuições legais”.

Desinformação na propaganda eleitoral

O Comprova também questionou o TSE sobre quais normativas norteiam o entendimento da Corte sobre o que vem a ser desinformação no cenário eleitoral e quais conteúdos eventualmente poderão ser retirados do ar. Em resposta, o TSE informou uma lista com as resoluções que regerão as eleições deste ano.

Dentre elas, há a que trata de propaganda eleitoral (a Resolução 23.732/2024 que alterou a 23.610/2019) que, atualizada em 2024, busca incorporar medidas relativas, por exemplo, ao uso da inteligência artificial na propaganda de partidos, coligações, federações partidárias e candidatos.

As mudanças na resolução estabelecem ainda a possibilidade de divulgação de posição política por artistas e influenciadores em shows, apresentações, performances artísticas e perfis e canais de pessoas na internet, desde que as manifestações sejam voluntárias e gratuitas.

Também proíbem o uso de conteúdo sintético em formato de áudio, vídeo ou combinação de ambos, que tenha sido gerado ou manipulado digitalmente, ainda que mediante autorização, para criar, substituir ou alterar imagem ou voz de pessoa viva, falecida ou fictícia (deepfake), para prejudicar ou para favorecer candidaturas.

Dentre outros pontos, há também:

  • Obrigação de aviso sobre o uso de IA na propaganda eleitoral;
  • Restrição do emprego de robôs para intermediar contato com o eleitor (a campanha não pode simular diálogo com candidato ou qualquer outra pessoa);
  • Responsabilização das big techs que não retirarem do ar, imediatamente, conteúdos com desinformação, discurso de ódio, ideologia nazista e fascista, além dos antidemocráticos, racistas e homofóbicos.

Por que explicamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e busca esclarecer aqueles considerados duvidosos e que podem gerar entendimentos confusos e boatos.

Outras checagens sobre o tema: Em 2022, o Comprova classificou como falsa uma alegação publicada em vídeo no Kwai de que o TSE teria comprado 32 mil urnas “grampeadas” para serem usadas nas eleições daquele ano e dar um “golpe final no Brasil”.

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Investigado por: 2024-03-15

Estados só enviam verbas ao governo federal para o pagamento de dívidas

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Um post viral afirma que os estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul se uniram para não enviar mais verbas ao governo federal. Não existe no sistema tributário brasileiro a previsão de repasses de um ente menor da Federação (estados e municípios) para um ente maior (governo federal). Ou seja, os estados não enviam verbas ao governo federal; eles enviam valores para o pagamento de dívidas. Atualmente, alguns governos estaduais estão tentando negociar a forma de pagar a dívida que têm com a União.

Conteúdo investigado: Post dizendo que os governos de São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás e Minas Gerais se uniram para não enviar mais verbas à União. “O povo apoia. Chega de tratar vagabundos!”, finaliza a publicação.

Onde foi publicado: TikTok e WhatsApp.

Contextualizando: Está circulando nas redes sociais que alguns governadores de estados do Sudeste, Sul e Centro-Oeste teriam se unido para não enviar mais verbas ao governo federal. A alegação precisa ser contextualizada.

O Comprova consultou os estados mencionados na postagem – São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás e Minas Gerais. Os que responderam fizeram referência exclusivamente ao pagamento de dívidas com o governo federal. Mato Grosso do Sul afirmou não estar fazendo esse movimento e que o post é desinformativo. Mato Grosso e o Rio Grande do Sul não responderam até a publicação deste texto, assim como o Ministério da Fazenda.

Um ponto a ser esclarecido é que o repasse de verbas de estados à União se dá, exclusivamente, para o pagamento de dívidas. Governos estaduais e federal estão conversando para chegar a um acordo sobre o pagamento desses valores.

No dia 13, segundo a Folha, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), afirmou que o governo irá apresentar uma proposta de renegociação da dívida com os estados. O documento deve ser levado já na próxima semana ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para, então, ser levado aos governadores e, depois de aprovado pelas partes, ser encaminhado ao Congresso para que se torne um projeto de lei complementar.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até 15 de março, o post foi visualizado mais de 253 mil vezes no TikTok e compartilhado no WhatsApp cerca de 3,2 mil vezes.

Como verificamos: O Comprova pesquisou notícias sobre as dívidas dos estados com o governo federal, buscou contato com os estados citados na postagem e o Ministério da Fazenda, entrevistou a advogada Bruna Neves e o economista José Márcio Camargo e consultou a legislação sobre o tema.

Estados pagam dívidas para a União

Quando se trata de repasse de verbas dos estados para o governo federal, a questão envolvida é o pagamento de dívidas dos estados com a União. Segundo a advogada Bruna Neves, especialista em Direito Empresarial e Tributário, não existe no sistema tributário nacional a previsão de repasses de um ente menor da Federação (estados e municípios) para um ente maior (governo federal), e sim o contrário: “O que acontece são repasses do ente maior para o menor, porque a União sempre tem mais arrecadação, maior fôlego financeiro”, diz a advogada. Caso os estados decidam suspender o pagamento das dívidas, ela explica que eles “incorrerão num endividamento ainda maior”.

Professor da PUC-Rio e economista-chefe da Genial Investimentos, José Márcio Camargo explica que o endividamento dos estados com a União ocorre devido a empréstimos diretos feitos pelo governo federal aos estados ou nas ocasiões em que os estados contratam crédito no mercado financeiro tendo o governo federal como agente garantidor. “Se o estado não paga, o governo federal assume a dívida e o estado se torna devedor da União.”

De acordo com Bruna Neves, para que haja qualquer renegociação da dívida dos estados com o governo federal é necessário alterar a legislação. Ela cita a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº101, de 4 de maio de 2000), que veda, no artigo 35, operação de crédito entre entes da Federação “ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente”.

Sendo assim, a proposição de governadores do Sul e do Sudeste de deixarem de pagar juros sobre a dívida e que incida apenas correção monetária sobre os débitos, deveria necessariamente contar com uma mudança na legislação. O mesmo se aplica às propostas apresentadas pelo presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), ao presidente Lula, em novembro do ano passado, para a renegociação das dívidas dos estados. “Para negociar a dívida em si, como o Pacheco está propondo, certamente deverá haver alteração legislativa autorizadora”, explica a advogada.

Proposta dos governadores do Sul e Sudeste

Governadores dos estados do Sul e do Sudeste se reuniram no início do mês, em Porto Alegre, no âmbito do Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud), e discutiram alternativas que facilitariam o pagamento da dívida. A proposta desses estados, e também defendida por Goiás, está registrada na Carta de Porto Alegre, documento produzido ao final do encontro.

O texto propõe a revisão da metodologia de amortização do saldo devedor e dos encargos contratuais das dívidas dos estados com a União, o que, segundo os estados, “geram ônus exacerbado e crescente aos orçamentos estaduais, penalizando políticas públicas e investimentos essenciais à população”. Tanto o documento quanto as respostas dos estados sinalizam haver disposição do governo federal para dialogar sobre o tema. “Ressaltamos ter observado disposição de diálogo do Ministério da Fazenda a respeito do tema, que precisa se transformar, agora, em encaminhamento prático e objetivo”, diz trecho da Carta de Porto Alegre.

A resposta dos estados

O estado de São Paulo tem uma dívida de R$ 260 bilhões com a União, conforme o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse em áudio enviado pela assessoria de imprensa do governo ao Comprova. Segundo ele, São Paulo tem capacidade de pagar a dívida, mas desembolsa R$ 21 bilhões por ano, valor que poderia ser gasto com obras públicas.

Consultada pelo Comprova, a Secretaria da Fazenda do Paraná confirmou que o estado “apoia movimento no âmbito do Cosud, mas não encabeça o pleito que busca viabilizar melhores condições e acordos para renegociar a dívida dos entes federativos envolvidos”.

Por e-mail, a assessoria de imprensa do governo de Santa Catarina informou que a dívida pública do estado com a União gira em torno de R$ 10,9 bilhões e equivale a 26,4% da Receita Corrente Líquida do estado, que em 2023 foi de R$ 41,2 bilhões. A resposta destaca que o governador Jorginho Mello (PL) descarta qualquer possibilidade de não honrar os compromissos e suspender o pagamento das parcelas da dívida com a União. “Não haverá calote por parte de Santa Catarina e tal alternativa nunca foi discutida entre os governadores que integram o Cosud”, diz trecho da nota.

A assessoria ressaltou que está em discussão no momento no Cosud a alteração dos encargos da dívida pública dos estados com a União, o que pressupõe a mudança de metodologia de cálculo do Coeficiente de Atualização Monetária (CAM) usado pelo Governo Federal.

“A proposta defendida é recalcular os saldos devedores dos contratos e fazer com que o CAM seja apurado segundo as variações mensais do IPCA mais 4% ao ano e Selic, aplicando o menor resultado. Atualmente, o CAM considera a série histórica de 1º de janeiro de 2013 para cá e o indexador aplicado é a Selic. Para efeitos de comparação, vale lembrar que em 2023 a Selic fechou em 11,75%, contra um IPCA de 4,62%”, detalha o governo de Santa Catarina, acrescentando que, com a mudança, o estado teria um saldo devedor em média 15% menor do que o atual.

O governo de Minas Gerais informou que a dívida do estado com a União é de R$ 145,79 bilhões, e que “não há qualquer alinhamento conjunto do Governo de Minas e de outros estados da federação para deixar de repassar recursos ao Governo Federal”. A nota afirma que o governo aguarda uma análise do Ministério da Fazenda sobre possíveis soluções para o equacionamento da dívida de Minas com a União.

“Uma das propostas debatidas diz respeito à necessidade de revisão dos indexadores de cobrança da dívida para possibilitar um acordo no qual o abatimento dos valores devidos seja real e progressivo, permitindo ao governo melhorar a gestão dos recursos, incrementar a arrecadação e aumentar os investimentos públicos em serviços essenciais, como saúde, segurança e educação”, diz a nota do governo de Minas

Já o estado de Goiás disse que “desconhece qualquer iniciativa no sentido de suspender unilateralmente o envio de recursos à União, contrariando previsões legais ou contratuais”. Ainda de acordo com a nota, “o que existe é uma discussão junto ao Ministério da Fazenda para mudança nos indexadores de correção das dívidas dos estados com a União, reduzindo e tornando os juros mais adequados ao cenário econômico atual”.

Como afirmado acima, Mato Grosso do Sul disse não estar participando de nenhuma proposta conjunta de estados para renegociar a dívida, e Mato Grosso e Rio Grande do Sul não responderam até a publicação deste texto.

Como o conteúdo pode ser interpretado fora do contexto original: Publicado com a palavra “urgente” no alto, o post afirma algo que não é verdadeiro, e confunde os cidadãos. É um conteúdo que ataca o governo federal, cujos integrantes são chamados de “vagabundos”. Em uma democracia, como a brasileira, críticas e ataques podem ser feitos, mas, quando se baseiam em mentiras, são perigosos. O post fala de governos estaduais e federal, mas o Brasil terá eleições neste ano e, embora elas sejam para escolher prefeitos, vice-prefeitos e vereadores, publicações como esta, desinformativas, prejudicam o processo eleitoral, uma vez que muitas pessoas podem se basear em peças como essa para escolher candidatos de um partido em detrimento de outros.

O que diz o responsável pela publicação: Procurado pela reportagem, o perfil que publicou o post viral não respondeu até a publicação deste texto.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: O Comprova já contextualizou outros conteúdos relacionados a contas públicas, como o de decreto com contingenciamento de recursos federais não determina corte de verbas. Também verificou ser enganoso vídeo que compara dados diferentes e engana sobre contas.

Comprova Explica

Investigado por: 2024-02-29

Pé-de-Meia vai pagar R$ 9,2 mil a aluno de baixa renda que concluir o ensino médio e realizar o Enem

  • Comprova Explica
Comprova Explica
Postagens nas redes sociais repercutem a criação do programa Pé-de-Meia pelo governo federal com informações incompletas e que podem suscitar dúvidas. O Comprova explica do que se trata o benefício, que vai apoiar com até R$ 9,2 mil alunos de baixa renda que concluírem integralmente o ensino médio em instituições públicas de ensino, além de mostrar quais são os pré-requisitos para o recebimento do auxílio.

Conteúdo analisado: Posts com voz feminina gerada por inteligência artificial incentivando pessoas a curtir e compartilhar conteúdos sobre o programa Pé-de-Meia, do governo federal.

Comprova Explica: Recém-lançado pelo governo federal, o programa Pé-de-Meia deve beneficiar cerca de 2,5 milhões de estudantes do ensino médio da rede pública com pagamentos que podem somar até R$ 9,2 mil por aluno durante os três anos do período escolar. Criado como um incentivo financeiro-educacional, é uma aposta do Ministério da Educação contra a evasão escolar, cuja média nos três anos é de 7,2%.

O programa, que deve receber R$ 7,1 bilhões de investimentos por ano, foi implantado em fevereiro de 2024, e alguns perfis nas redes sociais usaram a notícia para ganhar curtidas e viralizar com posts com pouco ou nenhum conteúdo informativo.

Com o objetivo de trazer a informação correta para o leitor, a seção Comprova Explica traz detalhes sobre o programa.

Como verificamos: O Comprova consultou informações na legislação referente ao Pé-de-Meia, no site do governo federal e entrou em contato com Ministério da Educação (MEC) para o esclarecimento de dúvidas.

Apoio financeiro a alunos de baixa renda do ensino médio

Uma das principais ações do governo Lula na área da educação, o Pé-de-Meia é um incentivo financeiro-educacional para estudantes de baixa renda do ensino médio da rede pública. Criado em 26 de janeiro deste ano por meio do decreto nº 11.901, que, por sua vez, regulamenta a lei nº 14.818, de 16 de janeiro, o programa oferece uma poupança para os beneficiários como forma de mantê-los estudando.

Entre os objetivos descritos na lei estão reduzir a taxa de abandono escolar e acabar com os efeitos das desigualdades sociais na permanência e na conclusão do ensino médio.

Considerando os três anos do ensino médio, o Pé-de-Meia prevê o pagamento total de R$ 9.200 no período. Funciona da seguinte forma:

  • Incentivo Matrícula, no valor anual de R$ 200;
  • Incentivo Frequência (exige a presença em ao menos 80% das horas letivas), no valor total anual de R$ 1.800, dividido em nove parcelas mensais;
  • Incentivo Conclusão, no valor total anual de R$ 1.000;
  • Incentivo Enem, no valor total de R$ 200.

Os pagamentos serão feitos em uma conta na Caixa Econômica Federal que o governo abrirá para os inscritos no programa. O Incentivo Matrícula, depositado após efetivação da matrícula no início de cada ano letivo, poderá ser sacado assim que cair na conta do estudante e o relativo à frequência poderá ser retirado mensalmente, como informa a portaria que estabelece os procedimentos de gestão do programa.

Já o Incentivo Conclusão será acumulado por ano concluído e só poderá ser resgatado após o fim do terceiro ano do ensino médio, mediante apresentação do certificado de conclusão do curso, e poderá ter como requisito também, “quando for o caso, a participação comprovada nos exames do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), no Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) e nos exames aplicados pelos sistemas de avaliação externa dos entes federativos para o ensino médio”.

Já a concessão do Incentivo Enem terá como requisito a participação comprovada no Exame Nacional do Ensino Médio e a obtenção do certificado de conclusão do ensino médio, e será paga apenas uma vez ao estudante do terceiro ano do ensino médio.

Segundo o MEC, o estudante poderá consultar o calendário de pagamento, situação do pagamento, FAQ do estudante, regras do programa e informações sobre conta e recebidos por meio do aplicativo Jornada do Estudante. Já as informações sobre frequência escolar deverão ser verificadas diretamente nas escolas.

O artigo 14 do decreto afirma que os Ministérios da Educação e da Fazenda ainda vão definir os requisitos de acesso ao Pé-de-Meia, valores e outros detalhes para os alunos matriculados na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Até a publicação deste texto do Comprova, em 29 de fevereiro, os critérios não haviam sido divulgados. Segundo o MEC, a expectativa é que a regulamentação seja feita ainda no primeiro semestre de 2024.

Critérios e relação com Bolsa Família

De acordo com o decreto citado acima, para ter direito ao benefício é preciso ser estudante de baixa renda, estar matriculado no ensino médio das redes públicas (federal, estadual, distrital e municipal), ter entre 14 e 24 anos, ser integrante de família inscrita no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) e estar inscrito no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF).

Segundo o site do Ministério da Educação, “nesse início, a prioridade será de beneficiários do programa Bolsa Família”. Mas, diferentemente do que posts virais afirmam, não basta apenas se encaixar nos critérios já mencionados e fazer parte do Bolsa Família. Há uma exceção: estudantes cadastrados como família unipessoal no Bolsa Família não têm direito ao Pé-de-Meia.

Valores serão depositados automaticamente pelo governo

Os valores referentes ao Programa Pé-de-Meia serão depositados pela Caixa Econômica Federal na conta aberta em nome do aluno após o MEC enviar ao banco as folhas de pagamento. O ministério fará esse envio depois de ter analisado as informações repassadas pelas instituições de ensino médio.

Os alunos não precisam realizar qualquer tipo de inscrição para aderir ao programa. Segundo o governo federal, as contas dos alunos elegíveis ao Pé-de-Meia serão abertas automaticamente pela Caixa, que comunicará o beneficiário. Os menores de 18 anos precisarão do consentimento de um responsável para a movimentação da conta no aplicativo ou na agência.

A adesão ao Pé-de-Meia é feita por secretários municipais e estaduais de Educação e reitores de institutos federais que ofertam ensino médio em todo o Brasil por meio de sistema eletrônico. No ato da adesão, as instituições indicam representante que será responsável por enviar mensalmente ao MEC as informações referentes ao aluno.

De acordo com o cronograma do MEC, a habilitação dos estudantes elegíveis ao programa, que será feita pelo governo mediante cruzamento das informações de matrícula com as informações disponíveis no CadÚnico, tem prazo final no dia 13 de março. Já a abertura de contas pela Caixa para o repasse dos recursos será até o dia 22 do mesmo mês. A previsão do pagamento do primeiro benefício (Incentivo Matrícula no valor de R$ 200) é entre os dias 26 de março e 7 de abril.

Por que explicamos: O Comprova Explica busca esclarecer conteúdos que viralizam em redes sociais e podem gerar confusão ou o surgimento de dúvidas ou boatos. Políticas públicas é um dos temas de atenção do projeto.

Outras checagens sobre o tema: A seção Comprova Explica já trouxe detalhes sobre outros programas sociais do governo federal abordados em posts nas redes sociais. Já informou por que não há pagamento da 13ª parcela no Bolsa Família e também tratou das variantes que podem reduzir o valor do benefício.

Contextualizando

Investigado por: 2024-02-26

Médico foi premiado nos EUA por entidade da qual é membro e ainda responde a ação na Justiça Federal

  • Contextualizando
Contextualizando
Publicação que diz que o endocrinologista Flávio Adsuara Cadegiani, após ser inocentado de crimes no Brasil, recebeu prêmio nos EUA, omite contexto relevante. O médico é membro da instituição que fez a homenagem. Criada na pandemia da covid-19, a entidade é formada por profissionais que defendem o uso de medicamentos sem comprovação científica de eficácia para tratar a doença, como a ivermectina. Cadegiani é investigado por estudo realizado com o medicamento proxalutamida em pessoas internadas com covid-19 no qual houve a morte de 200 pacientes no Amazonas. Ele foi inocentado em processos administrativos nos Conselhos Regionais de Medicina do Amazonas e do Rio Grande do Sul, mas ainda é alvo de um inquérito criminal no Amazonas e uma ação civil pública no Rio Grande do Sul.

Conteúdo investigado: Uma publicação de uma ex-integrante do governo Bolsonaro sobre o médico Flávio Cadegiani aponta que o endocrinologista recebeu prêmio de reconhecimento pela contribuição científica nos Estados Unidos. Postagem acompanha manchete “Depois de ser inocentado de crimes no Brasil, cientista brasileiro é premiado nos EUA”. A matéria, publicada pelo Médicos pela Vida, associação que defende o “tratamento precoce” contra covid-19, afirma que Cadegiani foi atacado pela imprensa por estudo com proxalutamida em 2021 e que foi injustamente alvo de busca e apreensão. O texto também afirma que o estudo de Cadegiani foi reconhecido nas mais renomadas instituições científicas do mundo como de alta qualidade.

Onde foi publicado: Instagram, X (antigo Twitter), Facebook e YouTube.

Contextualizando: O médico Flávio Cadegiani, investigado no Brasil por supostas irregularidades em estudo para tratar pacientes com covid-19 com o medicamento proxalutamida, ainda não aprovado para tratar a doença, recebeu um prêmio nos Estados Unidos, no dia 2 de fevereiro, por “Contribuições para a Excelência em Pesquisa”. A notícia repercutiu nas redes sociais, com um tom de que seria uma prova de que o médico teria sofrido perseguição em seu país.

O prêmio, porém, foi concedido pela Front Line COVID-19 Critical Care Alliance (FLCCC), que apresenta Cadegiani como um de seus membros-fundadores e defende o tratamento precoce contra a covid-19 com medicamentos como a ivermectina e a hidroxicloroquina, que não são recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para tratamento da doença. Segundo informações da equipe do médico e confirmadas pela FLCCC, no entanto, Cadegiani não participou da criação da aliança. A associação alega que o endocrinologista recebeu o título porque “se juntou à organização em seus primeiros dias e contribuiu extensivamente para o que a organização se tornou”.

O Comprova analisou versões anteriores do site da associação por meio da ferramenta Wayback Machine e constatou que o nome de Cadegiani, de fato, não aparece nas primeiras edições. A primeira aparição do nome do médico como membro data de 2021.

O prêmio foi entregue pelos médicos Paul Marik e Pierre Kory, diretor científico e presidente e diretor médico da FLCCC, respectivamente. Em novembro de 2021, um artigo escrito pelos dois foi retirado de publicação pela revista científica Journal of Intensive Care Medicine. A retirada aconteceu após o hospital cujos dados de mortalidade foram utilizados no estudo entrar em contato com o periódico e sinalizado erro nos números da pesquisa. Dessa forma, o artigo, intitulado “Clinical and Scientific Rationale for the ‘MATH+’ Hospital Treatment Protocol for COVID-19”, passava a falsa impressão de que o protocolo defendido pela FLCCC para o tratamento de pessoas hospitalizadas com covid-19, chamado “MATH+”, que inclui medicamentos como hidroxicloroquina e ivermectina, tinha tido resultado positivo na redução do número de mortes. Os outros médicos que assinam o estudo também são da organização.

Os médicos Pierre Kory e Flávio Cadegiani participaram de um outro estudo sobre o uso da ivermectina como tratamento profilático da covid-19, publicado na revista Cureus, que, posteriormente, divulgou uma errata ao tomar conhecimento que os autores haviam omitido informações sobre conflitos de interesses. Segundo a errata, Cadegiani não informou ser “consultor pago (US$ 1,6 mil, cerca de R$ 8 mil) da Vitamedic, fabricante de ivermectina” e “membro fundador da Front Line COVID-19 Critical Care Alliance (FLCCC), uma organização que promove a ivermectina como tratamento da covid-19”.

Já Pierre Kory omitiu ser presidente e diretor médico da FLCCC. A errata ainda diz que, em fevereiro de 2022, “Kory abriu um serviço privado de telessaúde para avaliar e tratar pacientes com covid aguda, covid de longa duração e síndromes pós-vacinais”.

A informação também consta em artigo da revista Time, intitulado “Right-Wing Doctors Are Still Peddling Dubious COVID Drugs”, de maio de 2023. Segundo o texto, o médico Pierre Kory lançou um “centro de tratamento avançado da covid-19” com consultas a U$ 1.650 (cerca de R$ 8.250) para atendimento de ‘síndrome pós-vacinação’ ou outros problemas”. Ainda segundo a matéria, outro membro da FLCCC, o médico Fred Wagshul, vende consultas sobre ivermectina a U$ 211 (cerca de R$ 1.055).

Cadegiani foi inocentado em Conselhos de Medicina mas ainda responde a ação na Justiça Federal

A postagem sobre o prêmio de Flávio Cadegiani diz que o médico foi “inocentado de crimes no Brasil”, mas necessita de contexto. Cadegiani é investigado por supostas irregularidades em estudo com o medicamento proxalutamida, administrado em pacientes com covid-19, no qual houve a morte de 200 pacientes no Amazonas. O médico foi inocentado em processos administrativos nos Conselhos Regionais de Medicina do Amazonas e do Rio Grande do Sul. Porém, dois procedimentos contra ele ainda tramitam na Justiça Federal: um inquérito criminal, no Amazonas, e uma ação civil pública, no Rio Grande do Sul.

Em setembro de 2021, no ofício enviado à Procuradoria-Geral da República (PGR) para que o órgão investigasse as mortes no estudo no Amazonas, a Conep relata uma série de irregularidades, como aplicação em locais diferentes e com número de participantes acima do autorizado, desrespeitando, segundo o órgão, o protocolo da pesquisa que havia sido aprovado.

De acordo com a Conep, a autorização dada ao endocrinologista permitia que a pesquisa com proxalutamida fosse realizada com 294 voluntários, em Brasília. No entanto, Flavio Cadegiani começou a aplicar o medicamento em pacientes no Amazonas e em outros estados, como o Rio Grande do Sul. O órgão também alega que o parecer final entregue pelo médico continha resultados de 645 pessoas, mais do que o dobro do número autorizado.

Procurada pelo Comprova, a PGR informou que o inquérito criminal aberto pelo Ministério Público Federal (MPF) para apurar as mortes durante o estudo está em tramitação na Justiça Federal do Amazonas, sob sigilo. O órgão ainda informou que há outro inquérito que investiga Cadegiani em processo em andamento na Justiça Federal do Rio Grande do Sul. Neste último caso, o MPF moveu ação civil pública contra um conjunto de réus em razão de supostos fatos lesivos à saúde pública em estudo com proxalutamida para tratamento da covid-19 no Hospital Arcanjo São Miguel, em Gramado, no Rio Grande do Sul. A pedido do MPF, a Polícia Federal chegou a cumprir mandados de busca e apreensão contra o médico e outros envolvidos no estudo.

O caso resultou em denúncia contra Cadegiani na CPI da Pandemia por crime contra a humanidade. Na época, a Rede Latino-americana e Caribenha de Bioética (Redbioética), da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), disse que o caso “poderia ser um dos episódios mais graves e sérios de infração à ética de pesquisas e de violação aos direitos humanos dos participantes na história da América Latina”.

Em relação às mortes, Cadegiani argumentou que a maioria havia sido registrada no grupo que tomou placebo. Segundo a Conep, diante do alto número de mortes era necessário interromper o cegamento do estudo – o medicamento fornecido aos participantes (proxalutamida ou placebo) era desconhecido do pesquisador – para verificar se os óbitos estariam associados à toxicidade do medicamento ou se o grupo de controle estaria em desvantagem por suposta eficácia da proxalutamida.

A comissão ainda alegou que o pesquisador “nunca demonstrou a rastreabilidade dos medicamentos fornecidos na pesquisa (cadeia de distribuição e dispensação), sendo impossível certificar qual produto o grupo controle realmente recebeu”.

Em entrevista ao portal Metrópoles, Flávio Cadegiani negou violações éticas e defendeu o estudo. Já em nota enviada ao Comprova, a assessoria do médico alegou que ele não fez publicações em que nega responder a processo na Justiça e ressaltou que Cadegiani foi inocentado pelos Conselhos de Medicina do Amazonas e do Rio Grande do Sul. “Ambos os conselhos concluíram pela total regularidade da conduta do pesquisador e que o estudo fora, sim, autorizado. Ainda constatou-se que a condução dos ensaios estava de acordo com os princípios éticos e com a legislação vigente no país”, destaca trecho da nota (Parágrafo acrescentado após a publicação de uma primeira versão deste texto).

Quem é Flávio Cadegiani

Flávio Cadegiani é médico formado pela Universidade de Brasília (UnB) com especialização em endocrinologia e metabolismo pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabolismo (Sbem). Com histórico de obesidade na infância, o médico se tornou conhecido no tratamento de pessoas com a doença, em Brasília. O especialista é autor do livro “Overtraining Syndrome in Athletes, A Comprehensive Review and Novel Perspectives”, publicado pela editora Nature.

Em 2021, um estudo coordenado por Cadegiani ganhou projeção nacional após se tornar alvo da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), do Conselho Nacional de Saúde (CNS), atrelado ao Ministério da Saúde. A comissão enviou, em setembro daquele ano, ofício à Procuradoria-Geral da República (PGR) para que o órgão investigasse a morte de 200 pessoas que participaram do estudo com proxalutamida no Amazonas.

O endocrinologista foi convocado, ainda em 2021, a depor na Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, que o indiciou por crime contra a humanidade relativo ao estudo com proxalutamida. Assim como Cadegiani, a médica Mayra Pinheiro, autora da postagem analisada aqui, foi convocada no inquérito. Ela foi indiciada por epidemia com resultado morte, crime contra a humanidade e prevaricação. Na época, a médica ocupava a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, do Ministério da Saúde, durante o governo de Jair Bolsonaro. Mayra Pinheiro, que ficou conhecida como “Capitã Cloroquina”, chegou a disputar eleições em 2022 para deputada federal pelo Partido Liberal (PL), mas não se elegeu.

Ambos os profissionais defendiam o chamado “kit-covid”. De acordo com o relatório da CPI, o conjunto de remédios sem eficácia comprovada, cujos mais conhecidos eram a cloroquina, a hidroxicloroquina, a ivermectina e a azitromicina, não é um “rol fechado”. “A depender de quem se expressa, podem ser incluídos a flutamida, proxalutamida, colchicina, spray nasal, bem como vitaminas diversas e suplementos alimentares”, destaca o texto. Segundo a Anvisa, além das vacinas, os medicamentos aprovados para tratar a covid-19 são: remdesivir, sotrovimabe, baricitinibe, paxlovid (nirmatrelvir + ritonavir), molnupiravir e tocilizumabe.

Como o conteúdo pode ser interpretado fora do contexto original: Da forma como foi divulgada, a postagem dá a entender que Cadegiani recebeu prêmio de instituição americana independente e respeitada no meio científico, e que ele foi absolvido de investigações do MPF que tiveram repercussão na imprensa, umas delas criminal, por estudo com proxalutamida no tratamento a pacientes com covid-19. Essas interpretações, sugeridas pela postagem, não condizem com a realidade.

O que diz o responsável pela publicação: O Comprova buscou a médica Mayra Pinheiro por meio de contato disponibilizado em sua rede social, por mensagens nas plataformas, e pelo PL do Ceará, mas sem sucesso. 

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Publicado no Instagram, a postagem alcançou 24,3 mil visualizações até 26 de fevereiro.

Como verificamos: O Comprova buscou informações sobre o prêmio dado a Cadegiani e constatou que ele foi concedido pela FLCCC Alliance. Em seguida, foram consultadas informações no site da organização e em veículos de imprensa sobre seus fundadores, além de pesquisas sobre o médico. Também foram consultados documentos oficiais da CPI da Pandemia. O Comprova ainda fez contato com a PGR para apurar sobre os inquéritos abertos pelo MPF contra Cadegiani, consultou um deles, que não está sob sigilo, no site da Justiça Federal do RS, e buscou informações sobre a responsável pela postagem analisada.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: O Comprova já publicou uma série de checagens que desmistificam o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19. Entre eles, Flavio Cadegiani já apareceu em verificação de vídeo enganoso em que médicos associam o aumento de problemas cardíacos à vacinação e em estudo sobre ivermectina, que apresenta dados imprecisos e não comprova eficácia do antiparasitário contra covid.

 

Atualização: Este Contextualizando foi atualizado em 27 de fevereiro de 2024 para incluir resposta da equipe do médico Flavio Cadegiani recebida posteriormente à publicação e, em 28 de fevereiro, para incluir esclarecimento da Front Line COVID-19 Critical Care Alliance (FLCCC) sobre o nome do médico constar em seu site como membro fundador da entidade.

Correção: uma primeira versão deste Contextualizando informou equivocadamente que o médico respondia a “processos” na Justiça Federal. Como consta deste texto atualizado, Cadegiani é alvo de um inquérito que corre sob sigilo na Justiça Federal no Amazonas e de uma ação civil pública na Justiça Federal do Rio Grande do Sul.

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Investigado por: 2024-02-20

Entenda se declaração de Lula sobre Holocausto pode justificar abertura de processo de impeachment

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Deputados federais de oposição pretendem ingressar com um pedido de impeachment contra o presidente Lula (PT) por uma declaração em que ele comparou a guerra de Israel na Faixa de Gaza com o Holocausto. O assunto tomou as redes sociais e expôs dúvidas dos usuários sobre o processo. O Comprova explica como funciona e o que prevê a legislação sobre o impedimento do presidente da República.

Conteúdo analisado: Vídeo publicado nas redes sociais em que o youtuber e blogueiro Allan dos Santos, atualmente foragido da Justiça, diz que deputados federais ingressaram com um pedido de impeachment contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por colocar o Brasil em uma “zona de não neutralidade”, o que configuraria crime de responsabilidade. A denúncia estaria baseada na fala do mandatário durante uma coletiva de imprensa em Adis Abeba, na Etiópia, em 18 de fevereiro, quando fez um paralelo entre a guerra na Faixa de Gaza e o Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial. 

Comprova Explica: O presidente Lula classificou a resposta de Israel na Faixa de Gaza aos ataques terroristas promovidos pelo Hamas como “genocídio” e “chacina”. Em seguida, comparou a ação israelense ao extermínio de milhões de judeus pelos nazistas, então chefiados por Adolf Hitler, no século XX. As declarações foram dadas por Lula no dia 18 de fevereiro, durante entrevista em Adis Abeba, na Etiópia, onde participou da 37ª Cúpula da União Africana e de reuniões bilaterais com chefes de Estados do Continente.

As falas levaram deputados federais da oposição, liderados pela deputada Carla Zambelli (PL-SP), a anunciarem que irão protocolar um pedido de impeachment contra o presidente, com a alegação de que a afirmação de Lula é “injustificável, leviana e absurda”, além de “uma afronta aos judeus, aos descendentes do horror do nazismo e algo que só fomenta o crescimento do antissemitismo no Brasil”. Os parlamentares alegam que ele cometeu crime de responsabilidade ao expor o Brasil ao perigo de guerra, por cometer ato de hostilidade contra Israel.

O termo “impeachment” esteve nos trending topics do X nos dois dias seguintes e expôs dúvidas dos usuários sobre um eventual processo de impedimento do presidente. Por isso, o Comprova decidiu explicar como funciona o processo e mostrar se as declarações de Lula se enquadram no que prevê a legislação para o tema.

A lei 1.079, de 10 de abril de 1950, e o artigo 85 da Constituição Federal regulam o processo de impeachment e estabelecem que o presidente pode ser afastado do cargo caso cometa crime de responsabilidade, como aqueles que atentem contra a Constituição e contra a existência da União; o livre exercício dos poderes constitucionais e dos direitos políticos, individuais e sociais; a segurança interna do país; a probidade na administração; a lei orçamentária; a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos; e o cumprimento das decisões judiciárias.

A aceitação de um processo de impeachment depende do presidente da Câmara dos Deputados, e consiste em uma das principais responsabilidades de quem ocupa este cargo. A legislação brasileira diz que é permitido a qualquer cidadão denunciar perante à Casa o presidente da República ou ministro de Estado, por crime de responsabilidade. Apesar de o processo de impeachment ser um julgamento, trata-se de um processo eminentemente político.

Não há nenhuma norma no Regimento Interno da Câmara dos Deputados que exija o processamento automático ou com prazo estabelecido para pedidos de impeachment. Assim, cabe ao presidente da Casa decidir quando um processo de impeachment será iniciado ou não. Além disso, em 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por unanimidade que a avaliação de admissibilidade dos requerimentos é política e não cabe intervenção da Justiça.

Como verificamos: A reportagem buscou a Lei 1.079, de 10 de abril de 1950 e o artigo 85 da Constituição Federal para entender em quais casos o presidente da República pode sofrer um impeachment, e consultou o site e Regimento Interno da Câmara dos Deputados e do STF para verificar quem é apto a fazer a solicitação e quais são os procedimentos, desde a denúncia até a possível aprovação. Também ouviu Rubens Beçak, doutor em Direito Constitucional e professor da Universidade de São Paulo (USP).

Além disso, foram feitas consultas à Câmara dos Deputados para verificar quantos pedidos de afastamento foram protocolados no atual mandato de Lula e de seus antecessores desde 1990. O Comprova também confirmou com deputados da oposição a intenção de apresentar um pedido de impeachment contra o presidente.

Pedidos de impeachment fazem parte do jogo político

Em entrevista coletiva em Adis Abeba, capital da Etiópia, em 18 de fevereiro, Lula definiu as mortes de civis em Gaza como genocídio, criticou países desenvolvidos pelo corte de ajuda humanitária para moradores da região e declarou: “O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”.

O governo de Israel repudiou as falas e declarou o presidente brasileiro persona non grata – expressão em latim que, no contexto diplomático, representa que um país se mostra contrário à presença de uma pessoa que integre uma missão diplomática ou representante de outro Estado em seu território -, até que se desculpe ou se retrate. Após a repercussão, deputados federais da oposição anunciaram que vão entrar com um pedido de impeachment contra Lula, sob a justificativa de que ele teria atentado contra a existência da União, exposto o Brasil ao risco de guerra e comprometido a neutralidade do país.

Para Rubens Beçak, professor da USP, a declaração de Lula não configura crime de responsabilidade, porque não atenta contra a governabilidade brasileira ou sua credibilidade. “Eu não vejo nas declarações nada mais a ser condenado do que uma declaração desastrada, não acho que dê substrato para um pedido de impeachment. Faz parte do jogo político pedir o impeachment, mas, apesar de deplorar as declarações, não acho que ainda chegamos nesse ponto”, disse.

Somente no atual mandato, já foram protocolados 18 pedidos de impeachment contra Lula, por variados atos. Um deles, por exemplo, protocolado em outubro passado, o acusou de atacar o Legislativo e o Judiciário brasileiro ao declarar, em janeiro de 2023, que o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, foi um “golpe”.

Todos os presidentes desde a redemocratização foram alvos de pedidos de impeachment, segundo levantamento da Câmara dos Deputados, com no mínimo quatro (Itamar Franco, 1992 a 1995) e, no máximo, 158 (Jair Bolsonaro, 2018 a 2022). Só dois requerimentos foram levados a cabo pela Casa, os que culminaram no impeachment de Fernando Collor, em 1992, e no de Dilma Rousseff, em 2016.

Apesar do processo de impeachment ser um julgamento, cabe somente ao presidente da Câmara dos Deputados a aceitação ou não da denúncia e decidir quando e se será iniciado. Não há norma no Regimento Interno da Casa que exija o processamento automático ou com prazo estabelecido para os pedidos. O Supremo Tribunal Federal também reforça que a admissibilidade dos requerimentos é política e não cabe intervenção da Justiça.

As formalidades da abertura do processo

O Artigo 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados também afirma que qualquer cidadão pode fazer a denúncia, desde que a entregue assinada e com firma reconhecida, acompanhada de documentos que comprovem, ou da declaração de impossibilidade de apresentá-los, com indicação do local onde possam ser encontrados, bem como, se for o caso, apresentação de, no mínimo, cinco testemunhas.

Se o pedido for aprovado pelo presidente da Câmara, representantes de todos os partidos formarão, em até 48 horas, uma comissão especial para análise do requerimento. O denunciado também deve ser comunicado e tem até dez sessões parlamentares para se manifestar. A partir do pronunciamento ou do término do prazo previsto, a Comissão tem de cinco a dez sessões para oferecer o parecer, deferindo ou indeferindo o pedido.

Após 48 horas da publicação no Diário Oficial, em caso de deferimento, o parecer será incluído na ordem do dia da próxima sessão e será votado pelos deputados federais. O processo contra o presidente é instaurado somente se aprovado por dois terços dos parlamentares (342 do total de 513). Nesse caso, a denúncia segue para o Senado e, do contrário, é arquivado e o processo fica suspenso até o término do mandato presidencial.

Por que explicamos: A seção Comprova Explica esclarece assuntos em discussão nas redes sociais que têm potencial de gerar desinformação. O vídeo verificado pode causar dúvida sobre o processo de impeachment, quem pode protocolá-lo e por quais motivos. Ao conhecer o procedimento e observar que a oposição protocola pedidos semelhantes desde a redemocratização, o leitor pode dar a devida dimensão à denúncia apresentada agora.

Outras checagens sobre o tema: O Comprova já desmentiu um boato que a Constituição permitiria revogar um mandato político por coletar assinaturas dos cidadãos. Na seção Comprova Explica, detalhou como age o mosquito da dengue geneticamente modificado e o que os protestos dos agricultores na Europa têm a ver com políticas ambientais.

Comprova Explica

Investigado por: 2024-02-15

Entenda como age o mosquito da dengue geneticamente modificado

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Comprova Explica
Posts com desinformação envolvendo mosquitos Aedes aegypti geneticamente modificados para o controle de doenças como dengue estão viralizando em um momento em que o país vive uma alta no número de casos. Uma dessas postagens cita reportagem de 2019 sobre um estudo que questionava a eficácia da tecnologia e, mais do que isso, afirmava que poderiam agravar o quadro das doenças. A reportagem é verdadeira, mas a revista Nature, que publicou o estudo originalmente, divulgou meses depois um texto com críticas ao artigo dizendo não haver dados que apoiem a tese de que o mosquito modificado seria mais resistente do que a espécie anterior.

Conteúdo analisado: Posts envolvendo o Aedes do Bem, caixa com ovos de mosquitos Aedes aegypti geneticamente modificados para o controle de doenças como dengue e febre amarela. Um dos conteúdos usa reportagem exibida pela Band em 2019 sobre um estudo que sugere que a alteração genética pode ter criado um supermosquito mais resistente.

Comprova Explica: Dados do Ministério da Saúde divulgados na quarta-feira, 14 de fevereiro, dão conta de mais de 524 mil casos prováveis de dengue em todo o país em 2024, com 84 mortes confirmadas desde o início do ano. Em paralelo, crescem nas redes sociais publicações de boatos envolvendo a dengue que confundem e podem causar danos à população.

Um dos boatos detectados pelo Comprova trata do Aedes do Bem, produto de uma empresa britânica com filial no Brasil constituído por ovos de mosquitos Aedes aegypti geneticamente modificados com o objetivo de controlar a dengue e outras infecções, como chikungunya e febre amarela. Posts usando uma reportagem da Band de 2019 sobre uma possível piora do quadro de transmissão de doenças que o Aedes do Bem poderia causar estão sendo compartilhados de forma descontextualizada. O estudo citado na reportagem foi questionado pela comunidade científica e rebatido por editores da revista Nature, onde havia sido publicado originalmente.

Frente ao perigo da desinformação relacionada à saúde, a seção Comprova Explica traz detalhes sobre o que é o mosquito Aedes aegypti geneticamente modificado para o controle de doenças.

Como verificamos: O primeiro passo foi pesquisar a situação da dengue no Brasil em sites como o do Ministério da Saúde e o que é o Aedes do Bem na página da empresa e em reportagens sobre o assunto.

Também foi consultada a página da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), agência reguladora de biossegurança do Brasil, da revista Nature e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).

Aedes do Bem

Este é o nome comercial usado pela empresa britânica Oxitec para seu carro-chefe: uma caixa com ovos do mosquito Aedes aegypti geneticamente modificados para controle de doenças. Como diz o site da empresa, que tem filial em Campinas, no interior paulista, os mosquitos que vêm na caixa são machos e, do cruzamento com as fêmeas – que são as transmissoras de doenças como dengue, zika, chikungunya e febre amarela, entre outras –, apenas os filhotes machos sobrevivem, reduzindo a população transmissora dos vírus.

O produto é apresentado em duas versões, uma para uso em residências e outra para utilização profissional. A primeira pode ser comprada pela internet por R$ 199 (valor em 14 de fevereiro).

Fundada em 2002 na Universidade de Oxford, no Reino Unido, a Oxitec está no Brasil há mais de dez anos. Os mosquitos Aedes do Bem já foram testados em cidades brasileiras (leia mais abaixo) e possuem um gene marcador fluorescente, que brilha ao ser exposto a uma luz específica sob o microscópio, permitindo que sejam rastreados e diferenciados dos mosquitos selvagens, como explica o site da empresa.

Segundo parecer técnico da CTNBio publicado em 2020, o produto atende à legislação que visa “garantir a biossegurança do meio ambiente, agricultura, saúde humana e animal”.

Em quais evidências científicas ele se baseia?

Um projeto piloto de quatro anos foi realizado em Piracicaba, no interior de São Paulo, com o objetivo de apurar a eficácia do programa em áreas com altos índices de transmissão de dengue, entre 2015 e 2018. Os testes tiveram início em um bairro com 5 mil moradores e, ao longo do tempo, foram ampliados para 11 regiões do município, englobando 60 mil residentes. Após quatro anos de liberação do “mosquito do bem”, os estudos identificaram uma redução média de 98% na população do “mosquito selvagem” nas áreas controladas pelos pesquisadores.

O projeto foi conduzido em três fases: na primeira, foram coletados dados do histórico do mosquito na região monitorada, incluindo sazonalidade, incidência de dengue e demografia, e também montadas as armadilhas para os ovos do mosquito; na segunda, teve início a liberação do “mosquito do bem”; na terceira, os pesquisadores avaliaram se a supressão do mosquito selvagem já era suficiente para reduzir os vetores modificados.

No piloto, a prefeitura de Piracicaba selecionou o bairro CECAP/Eldorado para receber o produto e tentar controlar a epidemia de dengue naquele momento, com 133 casos entre cinco mil pessoas. O bairro controle, Alvorada, que serviu de referência para comparar a eficácia do programa e não recebeu os mosquitos modificados, ficava a dois quilômetros de distância. As áreas possuíam características semelhantes de tipo de edificação, saneamento básico e densidade populacional.

A liberação dos mosquitos modificados ocorria três vezes por semana. No primeiro ano, foram soltos 45 milhões de mosquitos; no segundo, 30 milhões; no terceiro, 13 milhões. No primeiro pico da estação chuvosa, período em que o transmissor se reproduz com mais facilidade, a quantidade de larvas nas armadilhas foi sete vezes menor no bairro CECAP/Eldorado do que a observada no bairro controle, o Alvorada. A redução da população do mosquito foi de 79%. Com o resultado positivo, os pesquisadores diminuíram em 33% a liberação de novos vetores.

Na segunda estação chuvosa, entre 2016 e 2017, a circulação do mosquito selvagem permaneceu em queda, de 81%. Na terceira estação, a supressão foi de 76%. Durante esse período, os bairros não receberam inseticidas de origem química.

Em outro estudo de caso, foram realizados testes na cidade de Indaiatuba, também em São Paulo, em 2018, com uma segunda geração do produto. O projeto alcançou 12 bairros, uma área com 45 mil habitantes. Após cinco anos de monitoramento, a queda média da população do Aedes aegypti nas áreas tratadas foi de 96%.

Entre 2011 e 2015, a empresa também fez testes em duas cidades do interior da Bahia: Jacobina e Juazeiro. As pesquisas foram realizadas por cientistas da Universidade de São Paulo em conjunto com a Biofábrica Moscamed Brasil, primeira fábrica de mosca do país. A fábrica foi criada em 2006 com o objetivo de realizar o controle biológico da mosca-do-mediterrâneo, uma praga da fruticultura brasileira, por meio de insetos estéreis. Em ambos os municípios, o projeto-piloto identificou uma queda de mais de 90% da população de Aedes aegypti após a liberação dos mosquitos modificados.

Um parecer técnico emitido pela CTNBio em 2020 atestou que o programa “não é potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente ou saúde humana”. No mesmo ano, o programa foi testado na Flórida, nos Estados Unidos, e também não representou riscos de biossegurança, garantindo aprovação da Agência de Proteção Ambiental do país. Os resultados do piloto em território americano ainda não foram divulgados, e o estudo segue em andamento.

Estudo publicado pela Nature em 2019 e revisado em 2020

Um dos posts que viralizou sobre o Aedes do Bem usa uma reportagem da Band de 2019 que citava um estudo publicado na revista Nature segundo o qual a alteração genética poderia gerar um supermosquito, piorando o quadro de doenças que ele deveria combater. Só que, em 2020, editores da publicação fizeram alguns apontamentos revisando o que havia sido publicado inicialmente.

O estudo, publicado em setembro de 2019, foi assinado por dez cientistas do Brasil e dos Estados Unidos, e analisou dados do Aedes do Bem em um piloto realizado entre junho de 2013 e setembro de 2015 em Jacobina, na Bahia. Os pesquisadores alegam ter concluído que a liberação de mosquitos geneticamente modificados criou um “supermosquito”, mais selvagem do que o Aedes aegypti anterior e possivelmente resistente a inseticidas.

De acordo com a pesquisa, os mosquitos manipulados em laboratório transferiram os genes para a população local do inseto, o que teria contribuído para a suposta adaptação da espécie. Os cientistas alegam na conclusão do estudo que não é possível apontar os efeitos dessa transferência no controle de transmissão de doenças, e afirmam não terem encontrado “diferenças significativas” nas taxas de infecção por dengue e zika em laboratório, o que, segundo os autores, pode ser alterado em condições de campo.

O programa criado pela Oxitec parte do princípio de que os mosquitos modificados não chegarão à idade adulta por terem nascido mais frágeis. O estudo aqui verificado diz que, se essa letalidade for completa, a liberação da espécie com o novo genoma deverá resultar apenas na redução da população, sem alterar a genética do inseto natural. Os cientistas reconhecem, no entanto, que entre 3% e 4% dos descendentes do mosquito modificado com o mosquito selvagem podem sobreviver até a idade adulta, embora sejam fracos e possivelmente inférteis.

O estudo também afirma que a cepa liberada pela empresa Oxitec em território baiano foi derivada do cruzamento de duas outras cepas: uma originária de Cuba e outra do México. Essa combinação “tri-híbrida” teria gerado características genéticas distintas, resultando em uma população mais robusta do que a espécie anterior do mosquito devido justamente ao “vigor híbrido”, de acordo com os pesquisadores.

Em março de 2020, a revista Nature publicou um “editorial de preocupação” com o artigo. A nota cita falta de dados e omissão de resultados que comprovem as conclusões da pesquisa e faz ponderações quanto à linguagem utilizada pelos cientistas.

“O título não deixa claro que os autores examinaram apenas genomas de espécimes que não possuíam os transgenes e foram amostrados durante o período de liberação”, diz trecho do editorial. “Nenhuma amostragem para este estudo foi realizada mais do que algumas semanas após o programa de liberação e, como tal, não há evidências no artigo que estabeleçam se as sequências introgredidas não transgênicas da cepa liberada permaneceram na população ao longo do tempo. Além disso, trabalhos anteriores de alguns dos autores (referência 6 no artigo) mostraram que, com o tempo, o transgene se perde da população, mas o artigo não divulga esta informação”, afirma a nota.

A revista também faz um alerta sobre as alegações de que a espécie híbrida seria mais resistente do que a população anterior. “Não existem dados no artigo que apoiem este ponto; além disso, os dados incluídos no artigo indicam que um número de indivíduos híbridos diminuiu rapidamente após a libertação”, diz o comunicado. Os editores ponderam, ainda, que os pesquisadores sugerem a ausência de monitoramento da liberação do mosquito geneticamente modificado no município de Jacobina. O programa, no entanto, já estava sendo acompanhado pela CTNBio.

Os cientistas que assinam o artigo foram contatados sobre as preocupações apontadas pela revista, que também procurou outros revisores especialistas no assunto. A comunidade científica consultada pelos editores confirmou que as ponderações são válidas. Dos dez pesquisadores envolvidos no estudo, seis concordaram com a revisão e outros quatro discordaram das notas. A publicação ofereceu a possibilidade de correção dos pontos abordados, mas, segundo a Nature, os autores não responderam se chegaram a um consenso sobre a retificação.

Por que explicamos: A seção Comprova Explica esclarece temas importantes para que a população compreenda assuntos em discussão nas redes sociais que podem gerar desinformação. Quando posts geram boatos infundados sobre temas relacionados à saúde, como neste caso, a desinformação pode colocar vidas em risco. No momento em que o Brasil vive surtos da dengue, com ao menos 84 mortos e mais de 226 mil casos confirmados da doença até 14 de fevereiro, segundo o Ministério da Saúde, a sociedade tem o direito de receber a informação correta para se proteger.

Outras checagens sobre o tema: Outros conteúdos de desinformação tentando assustar a população com assuntos ligados à saúde já foram verificados pelo Comprova. Para levar a informação correta ao leitor, a seção Comprova Explica já trouxe detalhes de como funciona a lista de espera por transplante de órgão no Brasil e mostrou por que recomendação da vacina da Astrazeneca contra a covid-19 foi alterada.

Contextualizando

Investigado por: 2024-02-14

O que os protestos de agricultores na Europa têm a ver com políticas ambientais

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Contextualizando
Publicações nas redes sociais alegam que supermercados da Europa estão desabastecidos por conta dos recentes protestos de agricultores, que estariam se manifestando contra políticas ambientais. As postagens omitem que a escassez de determinados produtos em supermercados ocorre de forma pontual, e não generalizada. Os conteúdos virais também sugerem que as regulamentações ambientais seriam o único descontentamento dos manifestantes. Na verdade, os agricultores têm uma série de outras reivindicações, como a redução de importações estrangeiras mais baratas e a redução da burocracia.

Conteúdo investigado: Vídeo exibe gôndolas vazias de um supermercado. A postagem alega que os mercados da Bélgica e França estão desabastecidos por conta dos protestos realizados por agricultores europeus, que estariam se manifestando contra os “lunáticos climáticos e suas políticas”.

Onde foi publicado: X (antigo Twitter), Facebook e TikTok.

Contextualizando: Desde janeiro deste ano, agricultores têm protestado por toda a Europa. Ao contrário do que sugerem as postagens virais, as queixas dos manifestantes vão além do descontentamento com regulamentações ambientais. Os agricultores também protestam contra a concorrência externa, inflação, rendimentos baixos, burocracia da União Europeia (UE), entre outros.

Ações adotadas pelos agricultores como forma de protesto incluem o bloqueio de estradas e de centros de distribuição. A medida acarretou o atraso de entregas e desabastecimentos pontuais de determinados produtos em supermercados da Europa.

Protestos na Europa

Os movimentos orquestrados por diversas entidades sindicais de agricultores ganharam destaque no fim de janeiro na França, com o bloqueio de estradas e de uma fábrica da Lactalis, maior grupo de laticínios do mundo. Os produtores franceses reclamam dos aumento dos custos da energia e das regras ambientais europeias, que impactam os gastos com a produção.

Esses protestos ganharam fôlego para se espalhar pelo continente durante um protesto em Bruxelas, na Bélgica, embora tenham sido registrados uma série de manifestações anteriores. Na ocasião, em 1º de fevereiro, agricultores jogaram ovos e pedras no Parlamento Europeu, em Bruxelas, além de soltarem fogos de artifício próximo ao prédio, em um ato contra os crescentes custos de produção que afetam a agricultura local e favorecem a importação de produtos.

Uma das demandas mais recorrentes entre as organizações de trabalhadores é a alegação de que a concorrência com produtos vindos de outros países seria desleal com os produtores locais. O internacionalista e fundador do instituto Global Attitude, Rodrigo Reis, explica que o movimento da classe agricultora se concentra na competição com o mercado externo em meio a um cenário de aumento de custos. “Existe um receio da classe agricultora em proteger o mercado interno de produtos importados que serão mais baratos do que os produzidos internamente, e aí existe também um argumento usado por eles na questão ambiental de que esses produtos importados não respeitam as mesmas normas ambientais respeitadas por eles”, destaca.

Além dos dois países, foram registrados protestos na Espanha, em Portugal, Itália, Romênia, Polônia, Grécia, Alemanha e Países Baixos. As reivindicações são semelhantes em quase todos os países, com descontentamento em relação à inflação, concorrência externa, burocracia da União Europeia e regulamentações. Apesar disso, existem demandas específicas para a categoria agrícola de cada Estado.

Desabastecimento nos supermercados

Por consequência de bloqueios realizados por manifestantes, algumas unidades de supermercados começaram a sofrer com escassez de produtos frescos, como frutas e verduras. Na Bélgica, de acordo com o The Brussels Times, as redes que passaram por desabastecimento em determinadas regiões foram Aldi, Colruyt, Lidl e Delhaize.

Em 6 de fevereiro, a RTBF informou que os centros de distribuição da Colruyt já estavam funcionando desde o dia 1º do mesmo mês. Ainda de acordo com o veículo, unidades da rede Delhaize também estavam de volta ao normal. A Delhaize ainda acrescentou que a perda de itens durante as manifestações foi limitada e estima que 100 mil quilos de produtos foram doados a bancos de alimentos. De acordo com a rede, alguns supermercados não ficaram desabastecidos.

De acordo com uma reportagem do Le Parisien, publicada em 29 de janeiro, os bloqueios tiveram pouco impacto no abastecimento dos supermercados da França. Ao jornal, o delegado geral da Federação do Comércio e Distribuição – que reúne marcas como Carrefour, Système U, Auchan e Aldi – afirmou que atrasos poderiam acontecer “aqui e ali”, mas de forma marginal.

Segundo o Europe 1, os agricultores pretendiam bloquear o mercado internacional de Rungis, atacadista de produtos frescos, o que levantou a preocupação de escassez de alguns alimentos. No entanto, a reportagem apontou que a distribuição em massa não deveria ser afetada, já que as marcas costumam ter armazenamento próprio. Conforme o Le Parisien, manifestantes tentaram invadir o mercado de Rungis e ao menos 91 pessoas foram presas na ocasião.

O bloqueio de estradas e centros de distribuição afetou outros países, como Luxemburgo. De acordo com o RTL Today, houve escassez de produtos frescos em algumas unidades do Lidl e Delhaize no país que faz fronteira com a Bélgica, França e Alemanha.

Como o conteúdo pode ser interpretado fora do contexto original: A postagem utiliza um registro isolado de um supermercado para alegar que há desabastecimento generalizado na Europa. Além disso, associa o protesto de agricultores europeus apenas a normas ambientais. Dessa forma, a publicação gera um cenário alarmista e omite que a insatisfação dos manifestantes em relação à política verde é apenas uma pauta entre diversas outras reivindicações.

O que diz o responsável pela publicação: Não foi possível entrar em contato com a responsável pela postagem analisada, já que o perfil não aceita mensagem de contas que não segue.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 9 de fevereiro, o conteúdo viral no X acumulava mais de 77,4 mil visualizações, 2 mil compartilhamentos e 5 mil curtidas. No Facebook, o vídeo foi publicado ao menos 40 vezes em contas diferentes com a mesma legenda. No TikTok, uma das publicações descontextualizando as imagens teve mais de 64 mil visualizações e 3,5 mil curtidas.

Como verificamos: Primeiramente, realizamos uma busca reversa do vídeo para verificar o contexto da gravação original. Um dos registros que integra a peça verificada foi encontrado em uma conta do TikTok, indicando que a gravação foi feita em um supermercado na Bélgica. Para comprovar que trata-se de um registro recente, o perfil publicou os metadados do vídeo, que apontam que a gravação foi realizada em 31 de janeiro deste ano.

Depois, também transcrevemos e traduzimos o áudio do vídeo. Com a tradução, foi possível identificar que o supermercado gravado pertencia à rede Lidl. Na gravação, a pessoa que filma diz: “O Lidl está começando a ficar sem estoque, não há mais produtos graças à greve. Continuem assim, pessoal, logo alcançarão sua meta. Estamos indo!”.

Em sequência, procuramos notícias em jornais europeus que informassem sobre desabastecimento em supermercados, sobretudo na rede Lidl. Também buscamos informações sobre os protestos e as reivindicações dos agricultores. Por fim, entramos em contato com um especialista para entender a dimensão da pauta climática nas manifestações.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: Recentemente, o Comprova explicou por que a ação humana é responsável pela crise climática no planeta. A checagem mostrou que a participação do ser humano nas mudanças climáticas é um consenso científico.

Comprova Explica

Investigado por: 2024-01-29

Entenda por que é consenso científico que ação humana causa mudanças climáticas

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Comprova Explica
Conteúdos nas redes sociais desinformam ao afirmar que as mudanças climáticas não são um problema e que a ação humana não é responsável por elas. São postagens que vão contra o consenso científico, como mostrou estudo de 2023 realizado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês), vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU). Como toda desinformação, essas também são perigosas, e, por isso, a seção Comprova Explica esclarece alguns pontos envolvendo o assunto.

Conteúdo analisado: Posts nas redes sociais negam as mudanças climáticas e a responsabilidade do ser humano sobre elas, afirmando, por exemplo, que o clima já mudou antes e que o aquecimento global não é ruim.

Comprova Explica: A crise climática que estamos vivendo não é uma ideia que os cientistas inventaram para receber mais financiamentos para suas pesquisas. Nem está sendo causada sem a participação humana. Diferentemente do que afirmam posts nas redes sociais, ela é real e é consenso entre cientistas que a responsabilidade pela crise é do ser humano.

Há quem afirme que o aquecimento global não é ruim, que o clima já mudou antes e que as soluções apresentadas não funcionam, afirmações perigosas diante de um cenário cada vez mais problemático, segundo especialistas. Em Milão, na Itália, um grupo investigado por espalhar teorias conspiratórias sobre a vacina contra a covid-19 assinou um cartaz onde se lê: “Quem fala de aquecimento global é o mesmo que quer vacinação obrigatória”. É a mistura de duas teorias mentirosas, mostrando que a crise climática passou a ser alvo de negacionistas da pandemia, como mostrou a Folha.

O ano passado, inclusive, foi o mais quente em ao menos 174 anos, desde que se iniciaram as medições meteorológicas, segundo a Organização Meteorológica Mundial, agência da Organização das Nações Unidas.

Como afirmou ao Comprova o geólogo José Maria Landim Dominguez, professor titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), “modelos climáticos cada vez mais sofisticados, que têm sido desenvolvidos para investigar o funcionamento do clima, confirmam inequivocamente o impacto das emissões de dióxido de carbono (pelo homem) nas mudanças climáticas em curso”.

É o mesmo que afirma o resumo para formuladores de políticas públicas, do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês). “As atividades humanas, principalmente por meio das emissões de gases com efeito de estufa, inequivocamente causaram o aquecimento global “, diz o estudo.

Aumento da temperatura na Terra, secas intensas, incêndios severos e aumento do nível do mar são algumas das alterações que essas ações estão causando, de acordo com especialistas, e que vêm sendo citadas em conteúdos de desinformação não só nas ruas, mas, principalmente, nas redes sociais. Para combater esse fenômeno, a seção Comprova Explica traz detalhes sobre o que é consenso em relação à crise climática.

Este Comprova Explica abre uma nova frente de verificações no Projeto Comprova. A desinformação em torno das mudanças climáticas passa a ser, juntamente com eleições e políticas públicas em nível federal, um dos focos do Comprova em 2024.

Como verificamos: O primeiro passo foi pesquisar na internet publicações relacionadas às mudanças climáticas. Reportagens e relatórios de órgãos meteorológicos, citados abaixo, foram consultados para a elaboração deste texto.

A equipe também entrevistou o geólogo José Maria Landim Dominguez, da UFBA, e a bióloga Mariana Vale, doutora em Ecologia pela Universidade de Duke, dos Estados Unidos, e uma das autoras do mais recente relatório do IPCC, da ONU.

O que são mudanças climáticas?

De acordo com esta publicação da ONU, as mudanças climáticas são “transformações a longo prazo nos padrões de temperatura e clima”. Elas podem ser naturais – influenciadas pela variação no ciclo solar, por exemplo. Ou podem ser provocadas por uma desregulação do efeito estufa, que gera um aumento da temperatura do planeta, causando assim as mudanças climáticas.

O Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE) explica que o efeito estufa é um fenômeno natural que faz com que a temperatura na superfície da Terra seja favorável à existência de vida no planeta. Esse efeito permite que parte do calor do sol que entra pela atmosfera fique retido, regulando a temperatura na Terra. Sem ele, a média da temperatura na superfície seria de -18ºC, e não de 15ºC, como temos hoje.

As mudanças climáticas partem da desregulação do efeito estufa, provocada pelo excesso de emissão de gases por conta da carbonização da economia desde a revolução industrial. Esses gases dificultam ainda mais a saída do calor pela atmosfera, aumentando a temperatura média do planeta, o que desperta um efeito em cadeia que intensifica e aumenta a ocorrência de eventos extremos.

“Desde 1800, as atividades humanas têm sido o principal impulsionador das mudanças climáticas, principalmente devido à queima de combustíveis fósseis como carvão, petróleo e gás”, diz a ONU, que chama a atenção para o fato de que as mudanças climáticas não significam apenas aumento na temperatura, mas alterações em outras áreas, como secas intensas, escassez de água, incêndios severos, aumento do nível do mar, inundações, derretimento do gelo polar, tempestades catastróficas e declínio da biodiversidade.

Consenso científico

De acordo com o dicionário Michaelis, a palavra consenso significa “concordância ou unanimidade de opiniões, raciocínios, crenças, sentimentos etc. em um grupo de pessoas; decisão, opinião, deliberação comum à maioria ou a todos os membros de uma comunidade”.

Na ciência, não é diferente. Como explica em vídeo o imunologista Helder Nakaya, pesquisador do Hospital Israelita Albert Einstein e membro do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia, “o consenso tem a ver com o fato de que há tantas evidências que suportam algum fenômeno que não há dúvida entre os cientistas do que está mais próximo da verdade”.

Na animação, ele dá um exemplo ligado às mudanças climáticas: “Se muitos estudos demonstram o papel do homem no aquecimento global, por exemplo, se torna consenso entre os cientistas dessa área que isso é real”. Como ele pontua, “ter um ou outro cientista que pensa diferente não altera a realidade, mas, obviamente, confunde, sim, quem não é o especialista”. Segundo Nakaya, isso acontece porque, quando ouve alguém que pensa diferentemente da maioria, a pessoa acredita que a comunidade científica está dividida, “quando isso não é o que acontece”.

Ação humana e crise climática

Considerando o exposto acima, de que consenso é o que a maioria dos cientistas concordam, embora não seja unanimidade, é consenso que as mudanças climáticas são causadas pela atividade humana, como mostra o mais recente resumo para formuladores de políticas públicas, do IPCC. “As atividades humanas, principalmente por meio das emissões de gases com efeito de estufa, inequivocamente causaram o aquecimento global “, informa o estudo.

Outro levantamento, realizado em 2021 pela Universidade Cornell, dos Estados Unidos, analisou 90 mil estudos e chegou à mesma conclusão: 99,9% dos cientistas concordam que a crise climática é causada pelo homem.

Como explicou ao Comprova o geólogo José Maria Landim Dominguez, da UFBA, existe um consenso na comunidade científica de que a causa principal das mudanças climáticas são as emissões de gases de efeito estufa (GEE) relacionadas às diferentes atividades humanas, principalmente à queima de combustíveis fósseis (hidrocarbonetos e carvão) e desmatamento, mas também à agricultura e à produção de cimento, por exemplo.

“Sempre se soube que o dióxido de carbono (CO2) é um gás estufa muito potente. Desde o século XIX já existiam cientistas que chamavam a atenção que a queima do carvão eventualmente contribuiria para o aumento da temperatura do planeta. As mudanças climáticas são resultado do aumento da temperatura do planeta e existem várias medidas instrumentais que mostram que a temperatura média do planeta já subiu mais de 1ºC desde a era pré-industrial (1850-1900)”, afirma.

No último dia 24 de janeiro, pesquisadores do World Weather Attribution (WWA), um consórcio formado por cientistas de diversas partes do mundo, apontaram que foram as mudanças climáticas – e não o El Niño – o responsável pela seca excepcional na Bacia do Rio Amazonas ao longo de 2023. Lá, a seca é impulsionada pelo baixo nível de precipitação associado às altas temperaturas.

Os pesquisadores apontaram que as populações altamente vulneráveis foram muito mais atingidas pelos impactos da seca, o que foi agravado por “práticas históricas de gestão de terras, água e energia, incluindo desmatamento, destruição de vegetação, incêndios, queima de biomassa, agricultura corporativa, pecuária e outros problemas socioclimáticos que diminuíram a capacidade de retenção de água e umidade do terra e, portanto, piorou as condições de seca”.

O estudo foi tema de reportagem da BBC, que mostrou que, em um mundo onde a atividade humana não tivesse aquecido o planeta, uma seca assim aconteceria uma vez a cada 1.500 anos. As mudanças climáticas provocadas pelo homem, contudo, tornaram uma seca como a da Bacia do Rio Amazonas 30 vezes mais provável – e, agora, espera-se que ela aconteça uma vez a cada 50 anos.

Consenso na mira da desinformação

Para geólogo José Maria Landim Dominguez, apesar do consenso na quase totalidade da comunidade científica a respeito da responsabilidade humana sobre as mudanças climáticas, ainda há um grupo de negacionistas, ou “semeadores de dúvidas”, que não acreditam nisso, sob o argumento de que o homem não seria capaz de promover tal mudança e que outras alterações já aconteceram no passado.

“Realmente, na história passada da Terra, quando o homem ainda não tinha surgido, tais mudanças ocorreram, mas se desenvolveram ao longo de escalas de tempo muito dilatadas, de alguns milênios. Hoje, as mudanças estão ocorrendo em uma escala de tempo de algumas décadas a um ou dois séculos e não podem ser explicadas apenas por variações naturais de emissões de CO2 ou variações de luminosidade do sol”, aponta.

Para Landim, o argumento desses grupos não se sustenta. “É contraditório que aqueles que consideram o homem como um novo agente geológico, a ponto de batizarem uma nova era geológica de Antropoceno, considerem ao mesmo tempo que suas atividades não são capazes de alterar a composição da atmosfera a ponto de desencadear mudanças climáticas”, completa.

Desinformação de cara nova

Para Mariana Vale, uma das autoras do último relatório do IPCC, da ONU, é preciso considerar que as formas de disseminar desinformação sobre mudanças climáticas mudaram nos últimos tempos. Ela considera que não se nega mais as mudanças climáticas, nem que elas foram causadas pelo homem. No entanto, nega-se que essas mudanças sejam um problema, bem como a possibilidade de que as soluções propostas funcionem.

“Como já ficou praticamente impossível negar as mudanças climáticas, porque elas estão acontecendo diante dos nossos olhos, e também a quantidade de evidências científicas de que o homem é o principal ator por trás dessas mudanças, esses negacionistas climáticos começaram a se concentrar em criar fake news em torno das soluções, desacreditar as soluções que são propostas a partir de evidências científicas”, diz Vale, que é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e tem as mudanças climáticas entre os principais temas de suas produções acadêmicas.

Para ela, há algo de positivo nisso, pois mostra que a sociedade se convenceu de que as mudanças climáticas são reais e estão acontecendo. Mas ela aponta um novo desafio: “demonstrar que existe evidência científica de que as soluções propostas são viáveis e têm que ser implementadas o quanto antes”.

As soluções, afirma Vale, passam pela decarbonização da economia em escala global e, especificamente no contexto do Brasil, também pela conservação de florestas – a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica – e no reflorestamento, sobretudo da Mata Atlântica e do Cerrado, os dois biomas brasileiros mais degradados.

Para combater a desinformação sobre o tema, os cientistas têm recorrido à geração de informação de qualidade: “São evidências científicas a partir de dados robustos, e isso a gente gera em abundância já há muito tempo. O importante é conseguir aliados, e há muitos aliados que trabalham para difundir essa informação”, afirma Vale, citando ONGs especializadas, mídias alternativas, redes sociais e mídia convencional, como jornais que replicam a informação correta.

Relação entre mudanças climáticas e desinformação

O 19º relatório do Fórum Econômico Mundial sobre riscos globais, publicado em janeiro deste ano, aponta que os eventos climáticos extremos e a desinformação são os dois maiores riscos globais em curto e longo prazo. Nos próximos dois anos, a desinformação aparece no topo da lista dos dez principais riscos, seguida imediatamente dos eventos climáticos extremos.

Já no prazo de dez anos, os quatro primeiros itens da lista envolvem questões climáticas: eventos climáticos extremos; mudanças críticas nos sistemas da Terra; perda de biodiversidade e colapso de sistemas; e escassez de recursos naturais. O próximo item do ranking, não por acaso, é a desinformação.

Pesquisador do Global Change Institute, da Universidade de Queensland, na Austrália, John Cook mantém desde 2007 o site Skeptical Science (Ciência Cética, em tradução livre), que atua desbancando mitos em torno do aquecimento global com base em evidências científicas.

Entre os argumentos usados por aqueles que negam as mudanças climáticas estão as teses de que “o clima já mudou antes”, o aquecimento global “não é ruim”, “não há consenso científico”, que “animais e plantas podem se adaptar” e até que a Terra “está esfriando” e que a Antártida está “ganhando gelo”.

Todos os argumentos são desbancados por artigos, a exemplo deste que aponta que há consenso de 99% dos cientistas sobre o aquecimento global ser provocado, principalmente, pela atividade humana – o que reafirma o artigo de 2021 da Universidade de Cornell, citado acima –, ou este outro, que mostra como os impactos negativos do aquecimento global são muito maiores do que quaisquer aspectos positivos. Também não é verdade que a Antártida esteja ganhando gelo ou que a Terra esteja esfriando.

O geólogo José Maria Landim Dominguez acrescenta outras alegações que também foram sendo descartadas ao longo do tempo, como é o caso da tese de que a luminosidade do sol poderia aumentar a temperatura global – investigada e descartada. “Outros processos como emissões naturais de CO2 devido à atividade vulcânica foram investigados e não conseguem explicar o aumento verificado”, afirma.

Por que explicamos: O Comprova Explica tem a função de esclarecer temas importantes para que a população compreenda assuntos em discussão nas redes sociais que podem gerar desinformação. Mentiras sobre as mudanças climáticas, tirando a responsabilidade do homem sobre elas, são perigosas por sugerir que podemos continuar degradando o meio ambiente sem olhar para as consequências. Por isso, é importante que as pessoas tenham acesso a informações verificadas, como as trazidas neste texto.

Outras checagens sobre o tema: O Comprova já verificou diversos conteúdos ligados à crise climática, como o que mentia ao afirmar que a retirada de gado de áreas rurais tem a ver com a venda da Amazônia pelo governo – na verdade, a medida era para combater o desmatamento ilegal. Classificou como enganoso um post afirmando que a Amazônia não estava queimando e um vídeo que, entre outros erros, distorce falas do presidente Lula (PT) sobre mudanças climáticas.