Política

Investigado por: 2023-08-30

Homem que pede divisão do Brasil não é membro da Otan

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Enganoso
O economista austríaco Gunther Fehlinger, que fez ameaças separatistas ao Brasil após a 15ª Cúpula dos Brics, realizada em Johanesburgo, na África do Sul, admite que não tem vínculo com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Ao Comprova, Fehlinger afirmou que é apenas um "ativista do Twitter". Em vídeo que circula nas redes sociais, o economista é apresentado como membro da Otan.

Conteúdo investigado: Vídeo publicado no TikTok alegando que um suposto membro da Otan ameaçou “desmantelar o Brasil”, dividindo-o em cinco partes, se o país continuar sendo aliado dos Brics, grupo de países formado atualmente por Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul.

Onde foi publicado: TikTok.

Conclusão do Comprova: São enganosos os posts nas redes sociais afirmando que um membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) teria feito ameaças separatistas ao Brasil após a cúpula dos Brics. O economista austríaco Gunther Fehlinger não tem nenhuma relação com a aliança militar. Ele apenas é um ativista pela incorporação de outros países à Otan, a exemplo da Áustria.

Em resposta ao Comprova, o próprio economista admitiu não ter vínculo com a organização: “Sou apenas um ativista do Twitter”, escreveu ele. “Apenas promovo a ampliação da Otan com alguns amigos.”

A confusão se deve à descrição de sua conta no X (antigo Twitter), que menciona na biografia um suposto cargo de “presidente do Comitê Europeu para o Alargamento da Otan” para uma série de países. O Comprova não encontrou nenhuma página de organização registrada com esse nome, mesmo pesquisando em alemão.

O nome de Gunther Fehlinger também não é citado em nenhum documento divulgado no site oficial da Otan ou do governo austríaco, que mantém relações com a aliança militar através da embaixadora na Bélgica, Elisabeth Kornfeind. Por telefone, a Embaixada da Áustria no Brasil disse desconhecer qualquer ligação entre ele e o governo do país.

Após o contato do Comprova, Fehlinger fez um post na mesma rede social esclarecendo o assunto. “Como tantos jornalistas do Brasil entraram em contato comigo, permita-me esclarecer: Não represento a Otan”, escreveu. “Meu comitê não tem exército nem financiamento. Sou só eu e meus tweets”, completou. Leia aqui a thread (sequência de tweets) completa.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. O vídeo checado foi publicado no TikTok e acumulou mais de 230 mil visualizações, 15 mil curtidas e 6 mil compartilhamentos até o dia 29 de agosto.

Como verificamos: O material investigado apontava o nome de Gunther Fehlinger como suposto membro da Otan. O Comprova pesquisou no Google a respeito dele e encontrou os posts originais no X citados em vídeos na internet e a sua descrição na rede social de “presidente do Comitê Europeu de Ampliação da Otan”. Em seguida, a reportagem entrou em contato por e-mail com o economista. O endereço foi obtido em seu canal no YouTube.

Além disso, o Comprova investigou a existência de algum vínculo entre Fehlinger, a Otan e o governo austríaco, a quem cabe estabelecer relações institucionais em nome do Estado. Para isso, a Embaixada da Áustria foi procurada. O Comprova também entrou em contato com a Otan, através de um formulário de imprensa, mas não recebeu resposta até a conclusão desta verificação. A reportagem ainda fez buscas nos sites oficiais do governo da Áustria e da Otan e não encontrou nenhum documento citando o nome do economista.

O post do ativista

Gunther Fehlinger postou uma série de mensagens no X após a cúpula mais recente dos Brics, entre 22 e 24 de agosto, na África do Sul, defendendo a divisão territorial do Brasil e de outros países do grupo.

“Depois da cúpula do Brics, eu começo a pensar que o socialista corrupto Lula não é a esperança do mundo livre, e sim que irá levar o Brasil na mesma direção de Rússia, China e Irã. Deixo claro, se Lula se juntar ao eixo hostil do genocídio, vou apelar para o desmantelamento do Brasil”, escreveu em um dos posts, junto a um mapa separatista. Ele também postou imagens fictícias de outros membros do Brics — Rússia, Índia, China e África do Sul.

A partir disso, sites brasileiros e perfis nas redes sociais começaram a divulgar que a publicação seria uma ameaça de um representante da Otan contra o Brasil, o que não é verdade. O vídeo analisado pelo Comprova chega a inventar que ele não é um “simples político europeu”, mas um membro “antigo e significativo” da Otan.

Cúpula do Brics e a expansão do grupo

Em 2001, o então economista-chefe do grupo financeiro Goldman Sachs, Jim O’Neil, cunhou o termo “Bric” para referenciar um novo grupo de países emergentes na economia mundial: Brasil, Rússia, China e Índia. O acrônimo foi usado no estudo “Building Better Global Economic BRICs”.

Entretanto, só em 2006 os países formaram, de fato, o grupo. A África do Sul passou a integrar o Brics na 3ª cúpula, em 2011, adicionando o S (South Africa, em inglês) ao nome. Como explica o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o bloco tem “caráter informal”.

“Não tem um documento constitutivo, não funciona com um secretariado fixo nem tem fundos destinados a financiar qualquer de suas atividades. Em última análise, o que sustenta o mecanismo é a vontade política de seus membros. Ainda assim, o Brics tem um grau de institucionalização que se vai definindo, à medida que os cinco países intensificam sua interação”, afirma.

A 15ª Cúpula do Brics foi realizada de 22 a 24 de agosto deste ano em Joanesburgo, na África do Sul. Com exceção do presidente da Rússia, Vladimir Putin, todos os chefes do Executivo dos países do bloco foram ao evento. Estiveram presentes Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil); Xi Jinping (China); Narendra Modi (Índia) e Cyril Ramaphosa (África do Sul).

Putin não foi à cúpula porque a África do Sul é signatária do tratado que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI). Em março deste ano, o organismo emitiu um mandado de prisão contra o presidente russo por suposto crime de guerra de deportação ilegal de crianças e transferência ilegal de crianças de áreas ocupadas da Ucrânia para a Rússia.

Ao final do encontro, o Brics anunciou a entrada de outros 6 países no grupo a partir de 2024. São eles: Argentina, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. Agora, o bloco tem 46% da população e o PIB por paridade de poder de compra do bloco será de 36,6% do total mundial, segundo estudos aos quais o Poder360 teve acesso.

A entrada de novos países no Brics é considerada uma vitória para a China, que pressionava pela expansão do bloco como forma de criar um grupo em contraponto ao G7. Esse último é formado por: Estados Unidos, Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão e Reino Unido.

O que é a Otan

A Otan é uma aliança de defesa mútua estabelecida em 1949, após a Segunda Guerra Mundial, por Estados Unidos, Canadá e dez países europeus: Bélgica, Grã-Bretanha, Dinamarca, França, Islândia, Itália, Luxemburgo, Holanda, Noruega e Portugal. O Tratado do Atlântico Norte tem 14 artigos que todos os seus estados-membros devem cumprir. O quinto declara que um ataque contra qualquer um dos países deve ser entendido como um ataque a todos eles. Na prática, durante a Guerra Fria, colocava parte da Europa Ocidental sob a proteção dos Estados Unidos diante da expansão da influência da União Soviética.

Nesse sentido, uma ameaça de um membro da Otan de “desmantelar o Brasil” seria uma declaração grave na política internacional. Diversos sites de oposição ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e críticos ao Brics exploraram a suposta notícia — que, na realidade, não passa de uma reclamação de um ativista no Twitter sobre o fato de o Brasil manter relações com países autoritários como Rússia, China e Irã.

Atualmente, a Otan é composta por 31 membros. A Áustria não é um deles, mas o país faz parte da Parceria para a Paz, programa criado pela Otan em 1994 com o objetivo de coordenar ações militares com países de fora do grupo. Nesse caso, cada país escolhe as atividades em que participa. As negociações ocorrem no âmbito do Conselho de Parceria Euro-Atlântico (EAPC).

Quem representa a Áustria no programa é a Missão Austríaca para a Otan, de responsabilidade da embaixadora do país na Bélgica, cargo ocupado por Elisabeth Kornfeind desde 2018. Ela não se manifestou nas redes sociais a respeito da cúpula dos Brics. A Otan também não mencionou o encontro do grupo em seu site oficial.

O que diz o responsável pela publicação: O Comprova tentou entrar em contato com o perfil do TikTok que publicou o conteúdo investigado, entretanto, a plataforma não permite que usuários que não se seguem mutuamente troquem mensagens diretas. A página “Radar Global” é anônima e não informa outras formas de contato.

O que podemos aprender com esta verificação: O material menciona um nome desconhecido como sendo um membro da Otan e promove a ideia de que um conflito armado seria iminente. Ameaças desse tipo não são frequentes na diplomacia e devem ser vistas com cautela. Nesse caso, vale pesquisar se aquele representante integra, de fato, a organização e se os seus posts são atuais e verídicos. Sempre procure em páginas oficiais ou busque informações junto a órgãos oficiais, como fez o Comprova ao procurar a Embaixada da Áustria. Desconfie se não encontrar a suposta notícia em sites jornalísticos de confiança.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: O boato sobre um suposto membro da Otan ter ameaçado “desmantelar” o Brasil também foi desmentido por Aos Fatos e Reuters Fact-Check. O Comprova já checou outros conteúdos sugerindo um cenário de crise por conta das relações internacionais do governo, a exemplo do post enganoso que relacionava o apagão à autorização para compra de energia da Venezuela.