Estudo de pesquisadores da USP não comprova relação entre uso de máscaras e mortes por covid-19
- Enganoso
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- Estudo feito por pesquisadores brasileiros usa método científico que não é capaz de estabelecer relação de causa e efeito entre o uso de máscaras e o excesso de mortes por covid-19. Os próprios autores apresentam esse aspecto nas conclusões do artigo. Especialistas ouvidos pelo Comprova apontam limitações na pesquisa, como a ausência de investigação sobre os tipos de máscaras utilizadas e em quais condições. A eficácia das máscaras varia de acordo com o material do equipamento de proteção.
Conteúdo investigado: Publicações que afirmam que uma pesquisa feita pela Universidade de São Paulo (USP) comprovou a ineficácia do uso de máscaras e sua associação ao aumento da mortalidade por covid-19 durante a pandemia.
Onde foi publicado: X e site Médicos pela Vida.
Conclusão do Comprova: Não é verdade que um estudo realizado por pesquisadores da USP comprovou que máscaras foram ineficazes e que seu uso contribuiu para o excesso de mortes por covid-19 durante a pandemia. No artigo publicado no periódico BMC Public Health, os próprios autores reconhecem que o método científico utilizado não é capaz de estabelecer relação de causalidade entre o uso do equipamento de proteção e a mortalidade pela doença. Além disso, especialistas consultados pelo Comprova apontaram limitações na pesquisa, como a ausência de investigação sobre os tipos de máscaras utilizadas e em quais condições.
O artigo foi assinado por Daniel Victor Tausk, do Departamento de Matemática, e Beny Spira, do Departamento de Microbiologia, ambos da USP, e publicado no último dia 12 de março. Mais de uma semana depois, no dia 25, uma nota do editor foi adicionada à publicação para alertar aos leitores que “a confiabilidade dos dados relatados está sob disputa”. A editora da publicação informou ainda que está reavaliando o estudo.
O professor de epidemiologia Eduardo Martins Netto, do curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), criticou a forma como os pesquisadores estruturaram a investigação científica. “O estudo tem um desenho extremamente fraco pois não investiga o uso individual, qual tipo de máscara foi usada, por quanto tempo por dia ou em qual tipo de exposição. Ele ainda coloca países como se fossem um conjunto homogêneo de pessoas, o que não é”.
Gabriel da Rocha Fernandes, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Minas Gerais, avaliou que há limitações e potenciais vieses no artigo. Segundo ele, a metodologia aponta para uma escolha seletiva de dados. “Os autores focaram desproporcionalmente na relação entre uso de máscaras e o excesso de mortalidade, ignorando outras correlações potencialmente relevantes”, destacou.
Procurado por diferentes iniciativas de checagem sobre o assunto, Gabriel Fernandes refez a análise dos dados do estudo dos pesquisadores da USP e chegou a conclusões diferentes dos autores. De acordo com ele, fatores socioeconômicos de cada país, como Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), Produto Interno Bruto (PIB) per capita e percentual de pessoas vacinadas, estão muito mais associados ao excesso de mortalidade do que o uso de máscaras.
A pesquisa utiliza o método observacional, o que significa que os autores analisaram apenas dados já existentes, o que não permite o estabelecimento de relação de causa e efeito entre o uso de máscaras e a mortalidade por covid-19. Existem outros estudos que apontam a eficácia do equipamento de proteção. Um artigo de autoria de pesquisadores da própria USP, publicado na revista Aerosol Science & Technology, em 2021, comprovou que as máscaras faciais reduzem a disseminação do vírus.
O Comprovou entrou em contato com os autores da pesquisa que serviu de referência às publicações verificadas. Beny Spira não respondeu até a publicação deste texto. Já Daniel Victor Tausk reafirmou que o estudo é observacional e que mostra “uma associação positiva entre uso de máscaras e mortalidade em excesso em países europeus”. Mas destacou que “está muito longe de ser uma comprovação e que é apenas uma hipótese que deve ser investigada”.
Também foi contatado o grupo Médicos pela Vida, via e-mail e telefone, mas até o fechamento desta verificação não houve retorno. Uma busca no site do grupo mostrou que Tausk é um colaborador eventual do blog, com uma série de textos publicados, inclusive um artigo a respeito da repercussão de sua pesquisa sobre a suposta ineficácia das máscaras.
A reportagem buscou ainda a USP. Em nota, a diretoria do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) afirmou que “o fato de um docente ter assinado um artigo científico não significa que a instituição endosse ou compartilhe integralmente as conclusões apresentadas”. A instituição reforçou que a ampla maioria dos estudos aponta que as máscaras foram importantes para a redução da transmissão da covid-19.
O Instituto de Matemática e Estatística (IME), do qual faz parte Daniel Victor Tausk, afirmou ao Comprova que enviaria uma nota sobre o caso, mas até o momento desta publicação não se posicionou.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. No X, até o dia 28 de março, o post compartilhado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) acumulou 513 mil visualizações, mais de mil comentários e oito mil compartilhamentos.
Fontes que consultamos: Foram ouvidos especialistas das áreas de Epidemiologia, Biomedicina, Bioinformática e Ciências Biológicas de diferentes instituições de ensino e pesquisa. Também foi analisado o artigo alvo da verificação e outra pesquisa da USP, realizada pelo Instituto de Física da instituição, que analisou a eficácia do uso de máscaras contra a covid-19 no Brasil.
Método de estudo não estabelece relação de causa e efeito
O estudo investigado analisou dados de 24 países europeus, referentes aos anos de 2020 e 2021. Foi utilizado o método observacional, o que significa que os autores analisaram apenas dados já existentes. Na conclusão, os próprios pesquisadores destacam que há uma limitação inerente a todos os estudos observacionais e que isso é uma das principais razões pelas quais “esse tipo de estudo não consegue estabelecer causalidade”.
Tausk e Spira afirmam ainda que outro tipo de estudo seria necessário para determinar conclusivamente se as máscaras causam efeitos adversos. Eles se referem ao ensaio clínico randomizado, o método científico considerado mais confiável. Para realizá-lo, os pesquisadores recrutam um grupo de voluntários, realizam uma intervenção e acompanham os efeitos por meses.
Portanto, o estudo em questão não é capaz de comprovar que o uso de máscaras causou o excesso de mortes durante a pandemia da covid-19. “Apesar do reconhecimento da natureza observacional, que impede o estabelecimento de relações causais, a discussão no artigo frequentemente insinua uma causalidade entre o uso de máscaras e o aumento da mortalidade. Essa interpretação extrapola os limites do desenho do estudo”, ressalta Gabriel da Rocha Fernandes, da Fiocruz Minas.
Estudo apresenta limitações
Os dados utilizados no estudo foram coletados no site do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde, da Universidade de Washington, a partir da autodeclaração. Ou seja, são frutos de relatos de pessoas que afirmaram sempre usar máscaras ao sair de casa. Para Mellanie Fontes-Dutra, professora e pesquisadora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), do Rio Grande do Sul, essa é mais uma das limitações da pesquisa.
“O autorrelato já traz vieses e fragilidades para essa variável, e não foi considerado também como essas máscaras foram usadas, que tipo de máscaras as pessoas utilizaram, elementos que interferem diretamente na sua eficiência”, explica a pesquisadora Mellanie, da Rede Análise COVID-19.
A eficácia da máscara varia de acordo com o tipo de material usado. Uma pesquisa do Instituto de Física da USP, publicada em 2021, analisou 300 máscaras comumente usadas pela população brasileira para se proteger da covid-19. O estudo apontou que as máscaras N95 apresentaram maior eficiência, em torno de 98%, enquanto as cirúrgicas acumularam 89% e as feitas de TNT somaram uma média de 78%. Já as máscaras caseiras, feitas de algodão, apresentaram uma eficiência variável, entre 20% e 60%.
Além disso, Mellanie Fontes-Dutra destaca que o estudo não leva em consideração outros fatores que podem ter contribuído para o excesso de mortes por covid-19. “A mortalidade é influenciada por questões sociodemográficas, variações dentro do próprio país quanto a adesão de medidas e políticas mitigatórias, severidade das ondas de covid-19 (que variou entre os países), entre outros aspectos”, explica.
Para a pesquisadora, considerando a metodologia usada por Tausk e Spira, não é possível afirmar que as máscaras foram “inúteis” na proteção contra a covid-19 ou que causaram excesso de mortalidade. “O próprio estudo, em suas conclusões, reforça que não é possível estabelecer causalidade entre o uso de máscaras e os elementos avaliados. Portanto, essas conclusões, se as máscaras causaram ou não excesso de mortalidade, não podem ser suportadas pelos dados do trabalho”, finaliza.
Autor defende o estudo
Procurado pelo Comprova, o professor Daniel Victor Tausk, um dos autores do estudo, reafirmou que a pesquisa utiliza o método observacional e que mostra “uma associação positiva entre uso de máscaras e mortalidade em excesso em países europeus”. Ele disse ainda que se trata apenas de uma “hipótese a ser investigada”.
Segundo Tausk, os resultados do seu trabalho seguem o que apontam estudos randomizados, que foram analisados em 2023 pela Cochrane, uma organização britânica que revisa sistematicamente descobertas científicas na área da saúde. O estudo, de acordo com o professor, “comprova que as máscaras (ao menos cirúrgicas) foram inúteis”.
No entanto, a própria revisão da Cochrane aponta, nas suas conclusões, que ainda são necessários ensaios randomizados amplos e bem elaborados para determinar a eficácia ou não das máscaras. “Há necessidade de ECRS (ensaios clínicos randomizados) que abordem a eficácia dessas intervenções em diversos cenários e populações”.
O estudo também gerou respostas da comunidade científica. No Brasil, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) publicou, em 2023, uma nota sobre a revisão. “É um erro interpretar a partir desta revisão publicada pela Cochrane que as máscaras não tiveram efeito ou tiveram pouco efeito na propagação do coronavírus durante a pandemia da Covid 19. Como também, não há evidências de alta qualidade mostrando o contrário”.
Por que o Comprova investigou essa publicação: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas e eleições e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: Outras iniciativas de checagem, como Aos Fatos e Estadão Verifica, explicaram que estudo da USP não permite concluir que uso de máscaras está relacionado a mortes na pandemia. Além disso, peças desinformativas sobre a covid-19 são comumente compartilhadas. O Comprova já publicou que post engana ao afirmar que estudo concluiu que as vacinas contra a covid-19 não são seguras e que texto engana ao dizer que cloroquina cura 98,7% dos pacientes com covid-19.
Notas da comunidade: Até a publicação desta verificação, não havia notas da comunidade publicadas junto ao post no X.