- Conteúdo verificado: Texto divulgado pelo grupo negacionista norte-americano America’s Frontline Doctors que reproduz fala do médico Christian Perronne e alega que a população vacinada contra a covid-19 é perigosa e deve ser isolada da sociedade durante os meses de inverno.
É falso que as pessoas vacinadas contra a covid-19 devem ser colocadas em quarentena porque seriam “perigosas” e enfrentam mais “problemas” do que aquelas que não receberam os imunizantes. Estudos científicos comprovam que a vacinação reduz o risco de infecção, hospitalização e morte. Além disso, pesquisas sugerem que, mesmo quando eventualmente contraem a doença, indivíduos imunizados têm menos chance de transmitir o vírus para outros.
A alegação falsa surgiu em uma conversa do médico Christian Perronne, adepto de “teorias alternativas” e acusado de espalhar desinformação sobre a pandemia na França, com um canal negacionista do Reino Unido. O discurso antivacina depois foi abraçado pela organização America’s Frontline Doctors, ligada a grupos de extrema-direita dos Estados Unidos que já foi alvo de uma série de checagens do Projeto Comprova e de veículos nacionais e estrangeiros.
Perronne realmente fez parte de um grupo consultivo europeu sobre imunização da Organização Mundial da Saúde (OMS), mas isso ocorreu antes da pandemia. Ele não integra atualmente o grupo e suas declarações não representam a posição da entidade no enfrentamento da covid-19. A organização afirma que as vacinas são eficazes e seguras e não recomendou o isolamento da população vacinada.
Especialistas consultados pelo Comprova explicam que colocar as pessoas vacinadas em quarentena durante o inverno é um discurso incorreto, sem embasamento científico. A recomendação é de que vacinados sejam isolados quando testarem positivo para a covid-19, assim como ocorre com qualquer outra pessoa. Reforçam ainda que a vacinação protege contra a doença e que o maior risco está entre aqueles que não receberam as doses.
O Comprova classificou o conteúdo como falso porque ele foi inventado e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.
Como verificamos?
O Comprova iniciou essa checagem após receber de vários leitores uma mesma corrente no WhatsApp citando o America’s Frontline Doctors, assim como outro formato, em vídeo. Esse é um sinal de que o conteúdo se espalhou nos aplicativos de mensagem.
O primeiro passo da verificação foi encontrar as postagens originais, por meio de buscas por palavras-chave. Em seguida, foram pesquisadas mais informações sobre o médico Christian Perronne, as organizações e pessoas que divulgaram essas informações na internet.
Depois, o Comprova pesquisou a posição da OMS sobre as vacinas e apurou a existência de um grupo consultivo europeu sobre imunização. Em seguida, analisou as informações atuais sobre estudos científicos que tratam sobre a segurança e a eficácia dos produtos.
Dados oficiais de saúde em Israel e no Reino Unido foram levantados para analisar uma das afirmações feitas na mensagem, assim como uma verificação anterior do projeto Comprova que abordou declarações de um médico israelense citado novamente neste boato.
O Comprova entrou em contato com dois especialistas para esclarecer o assunto em questão: o presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV) e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Flávio Fonseca e o presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Juarez Cunha.
Por fim, houve a checagem dos nomes de todos os outros médicos que supostamente teriam constatado que a vacina seria uma “arma biológica” — outra tese que não faz sentido diante do fato de que a segurança foi atestada pelas autoridades de saúde.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 30 de novembro de 2021.
Verificação
Vacinados não são ‘perigosos’
É falso que pessoas vacinadas sejam mais perigosas do que não vacinadas no contexto da pandemia. Pelo contrário, estudos científicos comprovam que os imunizantes reduzem a possibilidade de infecção pelo novo coronavírus, assim como a evolução para quadros graves, hospitalização e mortes. Evidências iniciais também sugerem que, mesmo em uma eventual contaminação, os vacinados transmitem menos o vírus para outras pessoas.
A eficácia dos produtos é medida por meio de estudos controlados, em que parte dos voluntários recebe a vacina e outro grupo, placebo. Nem médico, nem paciente sabem o que cada um tomou, em um método conhecido como duplo cego, que mitiga o risco de vieses comportamentais. Depois, as taxas de infecção, hospitalização e óbito são comparadas.
As quatro vacinas aprovadas no Brasil apresentaram as seguintes taxas de prevenção da doença: Coronavac, do laboratório Sinovac e produzida no Brasil pelo Instituto Butantan, 50,38%; Covishield, da Universidade de Oxford/Astrazeneca e produzida nacionalmente pela Fiocruz, 70,4%; a Comirnaty, da Pfizer/BioNTech, de 95%; e a Janssen, da farmacêutica Johnson & Johnson, 66,9%.
Isso significa que, nesses estudos clínicos rigorosos, com milhares de voluntários, as pessoas vacinadas tiveram menos chance de adoecer. O percentual se refere ao desfecho primário, ou seja, informa o quanto as vacinas protegem contra casos sintomáticos da doença em uma pessoa totalmente imunizada.
Os números são naturalmente ampliados quando o critério passa a ser o risco de hospitalização e de mortes — esses casos são muito mais raros entre as pessoas que receberam os imunizantes, a ponto de alguns estudos sequer terem registrado mortes entre milhares de voluntários no grupo vacinado.
Nos estudos clínicos, a Coronavac, por exemplo, demonstrou 78% de proteção contra internações, enquanto Covishield e Comirnaty tiveram 100% de eficácia nos dados iniciais da pesquisa e a Janssen, 85%. Vale ressaltar que nenhum imunizante elimina completamente a possibilidade de uma pessoa contrair covid-19 e vir a óbito, o que demonstra a necessidade de continuar se cuidando mesmo após receber a vacina em locais com alta circulação do vírus.
Todos esses dados foram analisados por órgãos de saúde de diferentes países, que concluíram que as vacinas são eficazes e seguras antes de autorizar o uso na população. Além disso, os resultados foram publicados em revistas médicas renomadas, como a The Lancet e a New England Journal of Medicine, depois que especialistas e o corpo editorial das publicações revisaram todos os aspectos técnicos das pesquisas.
A duração da proteção ainda é incerta, mas a imunidade adquirida pela vacina continua presente meses após a aplicação e funciona contra todas as variantes detectadas antes da Ômicron — esta, por ter surgido recentemente, ainda passa pela análise dos pesquisadores.
Alguns estudos levantaram a discussão de que o risco de contrair a covid-19 aumenta com o tempo e que algumas variantes, como a Delta, teriam mais sucesso em romper essa barreira. Por esse motivo, o Brasil e outros países recomendaram doses de reforço para a população.
Isolamento só para infectados
Presidente da SBV, o professor Flávio Fonseca ressalta que isolar todas as pessoas vacinadas é uma alegação incorreta, sem embasamento técnico ou científico. O que define a necessidade de isolamento é o eventual contágio, uma vez que os imunizantes reduzem a incidência de quadros graves de covid-19 e morte, mas não eliminam a possibilidade de contaminação.
Ele explica que nenhuma vacina hoje disponibilizada no país – Coronavac, Astrazeneca, Pfizer e Janssen – tem característica infecciosa para justificar o isolamento sugerido na publicação.
A Coronavac, esclarece Fonseca, é constituída por vírus morto e, portanto, não pode transmitir o patógeno de uma pessoa para outra.
A Astrazeneca e a Janssen são compostas por adenovírus não replicativos, isto é, são vírus vivos, porém manipulados geneticamente de modo que não têm capacidade de se reproduzir no ser humano e, consequentemente, de serem transmitidos.
Por fim, reforça o presidente da SBV, a vacina da Pfizer, assim como a Coronavac, não tem vírus vivo. A tecnologia utilizada pela Pfizer é do RNA mensageiro, que não se replica e não pode ser repassado pelos vacinados.
“Resumindo: nenhuma das vacinas existentes atualmente para covid-19 é caracterizada como infecciosa, capaz de causar infecção numa pessoa, ou ser transmitida de uma para outra. Então, esse conteúdo é absolutamente falso, é incorreto”, sustenta Fonseca.
Na mesma linha, o presidente da SBIm, Juarez Cunha, observa que o critério para isolamento das pessoas é o fato de estarem infectadas pelo Sars-Cov-2, e não por terem sido vacinadas.
Cunha diz ainda que a expressão “arma biológica” só se aplica aos imunizantes no sentido protetor e não de causar prejuízos. “A vacina vai fazer com que o organismo crie proteção, anticorpos para que, quando a pessoa tiver contato com vírus, já esteja com sua defesa encaminhada.”
Na avaliação do presidente da SBIm, publicações como este conteúdo verificado, que citam médicos, tentam conferir credibilidade às alegações apresentadas. Contudo, ressalta, são mentiras.
Juarez Cunha afirma que os efeitos adversos da vacina até podem ocorrer, mas são raros, e, ao contrário do alegado na postagem, a maioria dos casos de hospitalização e morte ainda hoje registrados pela covid-19 refere-se a pessoas não vacinadas.
Dados de Israel e do Reino Unido
O texto menciona a taxa de hospitalização em Israel e no Reino Unido entre os vacinados e os não vacinados para alegar que as vacinas não funcionam. A tese não se sustenta, segundo estatísticas oficiais.
O Ministério da Saúde de Israel informava 4.858 casos ativos de covid-19 no país nesta segunda-feira, 29 de novembro. Destes, 3.624 não estavam vacinados, o equivalente a 75%. Em contrapartida, a população com esquema vacinal completo respondia por 692 casos (14%). O grupo dos parcialmente protegidos contabilizava 542 (11%).
Chama atenção a quantidade de infecções em crianças de 5 a 11 anos, incluídas recentemente na campanha e ainda com baixo acesso aos imunizantes. Mas a quantidade de infectados que não receberam nenhuma dose é superior em todas as faixas etárias em Israel, independentemente do nível de cobertura.
Na contagem de casos graves, que pode ser entendida como a quantidade de internados com a doença no país, a diferença é brutal: 96 dos casos estavam entre os não vacinados (83%), 10 entre os parcialmente vacinados (9%) e 9 na população totalmente imunizada contra a covid-19 (8%).
O levantamento mostra que, mesmo utilizando apenas os dados absolutos, as hospitalizações em Israel ocorrem principalmente entre a população que não tomou a vacina. Ao se analisar a quantidade relativa, ou seja, o número de casos a cada 100 mil habitantes em cada um dos três grupos (vacinados, parcialmente vacinados e não vacinados), essa diferença é ainda mais representativa.
Isso porque a maioria dos israelenses já está imunizada contra a covid-19: 57,6% da população havia recebido as doses necessárias até 28 de novembro, além de 67% estarem ao menos parcialmente protegidos com uma dose.
A tabela divulgada pelo Ministério da Saúde, ajustando pelo tamanho desigual do público exposto, torna ainda mais evidente o fato de que a vacina reduz o risco de contrair a doença e desenvolver quadros graves, como pode ser verificado aqui (o conteúdo original está disponível em hebraico e foi traduzido por meio do Google Tradutor).
Para o Reino Unido, o Comprova não encontrou uma base de dados aberta informando o percentual de casos ativos e internações entre vacinados e não vacinados, mas a Agência de Segurança de Saúde divulga esse tipo de análise em seus boletins semanais sobre a covid-19. O documento mais recente foi publicado em 25 de novembro e compila dados das quatro semanas anteriores.
O relatório do órgão britânico mostra que as vacinas reduziram a necessidade de internação e também as mortes em todas as faixas etárias. Isso pode ser constatado em uma tabela que compara a quantidade de pessoas hospitalizadas e de óbitos pela covid-19 no Reino Unido a cada 100 mil habitantes.
Já a incidência geral de casos de covid-19 tem sido maior no grupo de vacinados em alguns espectros de idade, mesmo ponderando pelo tamanho da população exposta em cada um dos grupos. Ainda assim, esse tipo de informação deve ser analisada com cautela e não serve para contestar a efetividade das vacinas, conforme explica a própria fonte dos dados em uma página de transparência.
Segundo a Agência de Segurança de Saúde do Reino Unido, alguns exemplos de fatores que podem ocasionar um aumento ou uma redução artificial nas taxas medidas a partir da quantidade de total casos de covid-19 são:
- pessoas totalmente vacinadas podem ser mais conscientes em relação à saúde e inclinadas a fazer testes de covid-19 quando apresentam sintomas;
- muitas das pessoas que completaram o esquema vacinal primeiro pertencem a grupos de risco;
- aspectos comportamentais diferentes em cada um dos grupos podem afetar o risco de exposição ao novo coronavírus;
- o grupo de pessoas não vacinadas pode incluir indivíduos que adquiriram imunidade natural contra a doença após uma contaminação prévia.
O presidente da SBIm, Juarez Cunha, explica que, quando há um grande percentual da população imunizada, proporcionalmente, até pode haver um número maior da doença registrado entre os vacinados. Mas, segundo ele, é preciso avaliar todas as variáveis, inclusive a circulação de variantes, como a Delta, que no Reino Unido e em Israel se apresentaram de maneira diferente do Brasil.
“São muitas variáveis para analisar. Outra também é o desfecho dessas pessoas (recuperação ou morte), tanto vacinadas quanto não vacinadas. É preciso muito cuidado ao avaliar os números. Numa população em que 80% está vacinada e 20% não está, provavelmente o número de pessoas que vão se infectar, mesmo vacinadas, vai ser importante, até porque a proporção de vacinados é muito maior”, argumenta.
Segundo o governo do Reino Unido, 68,9% da população estava totalmente imunizada contra a covid-19 e 75,8% receberam ao menos a primeira dose da vacina até 28 de novembro.
De acordo com o documento da Agência de Segurança de Saúde do Reino Unido, estudos científicos com metodologias adequadas mostram que, mesmo em um cenário de dominância da variante Delta, a eficiência da vacina contra a infecção está estimada em 65% para a Astrazeneca e 80% para a Pfizer/BioNTech. Evidências apontam ainda uma redução drástica na quantidade de internações e mortes e também uma chance reduzida de transmissão no caso de uma eventual contaminação.
Declarações de médico israelense
O médico israelense citado nos conteúdos falsos que circulam no Brasil é Kobi Haviv, diretor-médico do Herzog Hospital de Jerusalém. A sua entrevista ao canal 13 foi distorcida anteriormente, como mostrou uma verificação do projeto Comprova, publicada em agosto.
Na fala, Haviv afirma que de 85% a 90% das pessoas hospitalizadas no Herzog estavam vacinadas e que a efetividade da vacina poderia estar diminuindo. O dado de 95% entre os pacientes gravemente enfermos não aparece na entrevista, apenas na legenda original em hebraico feita pela emissora local de televisão.
É falso que essa declaração demonstre que as vacinas não funcionam, como sugere o boato. O Comprova mostrou que Israel realmente apresentava uma quantidade maior de pessoas vacinadas entre as internadas naquele momento, considerando números absolutos. Entretanto, o conteúdo omite que um percentual muito maior de idosos estava imunizado naquele momento, o que torna essa comparação injusta.
Quando a análise é feita considerando o tamanho da população imunizada versus o grupo de pessoas que não receberam as vacinas — ou seja, o número de internados a cada 100 mil habitantes, como orienta o Ministério da Saúde de Israel — o país tinha uma taxa de hospitalização maior entre os não vacinados, em todas as faixas etárias. Esse cenário indica que as pessoas que não tomaram as vacinas estavam sob maior risco de precisar de suporte médico, como esperado.
O boato ainda omitia o fato de que a unidade hospitalar de Haviv atende predominantemente pessoas idosas, maior faixa etária vacinada do país, e que o médico defende as vacinas e aplicação de doses de reforço.
Teoria antivacina
Ao final da mensagem, o boato analisado pelo Comprova parece recuperar uma teoria infundada que circulou anteriormente na Alemanha e falava sobre um suposto “enfraquecimento do sistema imunológico”. O boato alega que as vacinas aumentariam, assim, o risco de morte por outras doenças que não a covid-19.
A história não passava de uma distorção maldosa de uma pesquisa holandesa, não revisada por pares, que analisou a resposta imune de 16 pessoas imunizadas com a vacina da Pfizer/BioNTech. Um dos pesquisadores envolvidos refutou a interpretação dada nas redes sociais ao estudo em entrevista à rede alemã Deutsche Welle.
“Em nosso estudo não obtivemos nenhum dado clínico que nos permita dizer que a vacina enfraqueça o sistema imunológico e que os inoculados sejam mais suscetíveis a infecções e outras doenças”, afirmou Mihai Netea, da Universidade Radboud, da cidade holandesa de Nijmegen.
De acordo com os estudos clínicos que embasaram a aprovação das vacinas contra a covid-19 no Brasil, a maioria das pessoas desenvolve efeitos colaterais de caráter leve a moderado, como dor no braço e sintomas semelhantes a uma gripe, poucos dias após a aplicação das doses. A campanha de vacinação é monitorada pelos órgãos de saúde, que avaliam constantemente a incidência de eventos graves e inesperados.
Origem da desinformação
Tanto a corrente de WhatsApp quanto o vídeo falso verificado pelo Comprova se baseiam em um texto espalhado pelo America’s Frontline Doctors, em 17 de agosto de 2021, com o título: “Especialista em imunização: pessoas não vacinadas não são perigosas; pessoas vacinadas são perigosas para os outros”.
O site é mantido por uma organização de médicos negacionistas dos Estados Unidos que costuma espalhar teses pseudocientíficas e desinformação sobre covid-19. Uma de suas ativistas mais conhecidas, por exemplo, já apareceu em um evento religioso dos Estados Unidos dizendo que as vacinas causariam efeitos adversos nunca relatados.
O grupo ganhou notoriedade ainda no ano passado, após aparecer em frente à Suprema Corte mentindo que existiria uma “cura” para a doença e que as máscaras seriam dispensáveis durante a pandemia. Esse boato foi compartilhado pelo ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e pela cantora Madonna.
Recentemente, o America’s Frontline Doctors passou a ser investigado por um subcomitê do Congresso dos Estados Unidos. O grupo é acusado de lucrar mais de US$ 6,7 milhões ao promover remédios sem eficácia comprovada ou sabidamente ineficazes contra a covid-19 ao mesmo tempo em que anunciava a prescrição do kit em consultas de telemedicina.
Houve casos em que nem isso era garantido. A revista Time encontrou centenas de clientes que pagaram por um serviço que prometia a prescrição de ivermectina e depois não receberam nada, segundo reportagem publicada em agosto deste ano.
De acordo com uma apuração do site The Intercept, o America’s Frontline Doctors mantém laços estreitos com grupos de extrema-direita dos Estados Unidos e apoiadores de Trump, como o Tea Party Patriots. Simone Gold, uma das fundadoras e principais líderes do grupo, foi presa pelo FBI por participar da invasão ao Capitólio.
O boato atribui a tese de que “vacinados precisam ser isolados” a Christian Perrone, um médico francês que ocupou a vice-presidência de um grupo consultivo europeu de especialistas em imunização da OMS, alguns anos antes da pandemia de covid-19. Ele não faz parte da composição atual do grupo, segundo o site oficial da entidade.
As falas aparecem em um vídeo de Perronne divulgado pelo America’s Frontline Doctors, sem explicar o contexto da declaração. A origem, segundo apurou o Comprova, é uma gravação de quase uma hora e meia em que Perronne conversa com um canal chamado “UK Column”. Esse site adota a linha antivacina e teorias da conspiração, como a de que o coronavírus seria uma “arma biológica” e a pandemia, uma “farsa”.
De acordo com a imprensa francesa, Perronne se notabilizou na pandemia como um defensor de medicamentos ineficazes contra a covid-19, como a hidroxicloroquina, e foi alvo de queixas formais no Conselho Nacional da Ordem dos Médicos pela prática de “charlatanismo” e por desinformar a população a respeito da pandemia.
Em perfil publicado em novembro de 2020, o Le Monde mostrou que Perronne foi uma das “estrelas” de um documentário sobre “teorias alternativas” relacionadas com a covid-19. A reportagem confirma que, antes, o médico foi presidente da Comissão de Doenças Transmissíveis do Conselho Superior de Saúde Pública e teve responsabilidades em grupos de trabalho na Agência de Medicamentos e na Organização Mundial de Saúde.
Em 17 de dezembro de 2020, ele foi demitido de seu posto de chefia no Assistance Publique-Hôpitaux de Paris (AP-HP), que administra hospitais universitários na capital francesa e região, depois de acumular polêmicas. Em nota, a instituição comunicou que o ex-chefe do departamento de doenças infecciosas e tropicais do hospital Raymond-Poincaré em Garches (Hauts-de-Seine) foi afastado de suas funções por “comentários considerados inadequados para a função que exerce”.
“Ao sugerir que a pandemia era uma emergência fabricada para beneficiar as empresas farmacêuticas, Perronne se tornou um autor líder em vendas e uma referência no círculo antivacina”, destaca o canal France24, outro veículo de mídia a abordar as ações do médico. A reportagem aponta que esse tipo de atuação se tornou um desafio para as autoridades de saúde da França.
Em abril de 2021, a revista semanal L’Express publicou uma reportagem afirmando que Perronne já havia sido “marginalizado entre os especialistas em doenças infecciosas” antes do surgimento do novo coronavírus “devido às suas posições heterodoxas sobre a doença de Lyme”. A pandemia de covid-19 teria “exposto a tendência de Christian Perronne para teorias pseudocientíficas e até conspiratórias”.
O boato analisado pelo Comprova também circulou em formato de vídeo. Um homem que apresenta um canal chamado Marcão News faz a leitura do texto do America’s Frontline Doctors. Esse é o apelido de Marcos Antonio De Oliveira Santos, um ex-candidato a vereador de São Paulo pelo PRTB, em 2020.
Quem são os outros médicos citados na publicação
No conteúdo aqui verificado, o texto é finalizado citando oito nomes de supostos médicos a fim de conferir credibilidade às alegações apresentadas. Todos eles, entretanto, já foram alvo de checagem de veículos nacionais e internacionais, ou do Comprova, por desinformação relacionada à covid-19.
Ryan Cole é um dermatologista norte-americano especializado em patologia. Em agosto, o Comprova classificou como enganoso um vídeo em que o médico sugeria o aumento de casos de câncer de endométrio como consequência da vacinação.
Antes, ele já havia questionado a segurança e eficácia da vacina, alegação que foi contestada pelo FactCheck.Org.
Cole integra a Associação de Médicos Independentes do estado de Idaho, grupo formado em 2013 por profissionais que possuem suas próprias práticas médicas, com “liberdade de diagnosticar e tratar sem sobrecarga de interesses potencialmente conflitantes”, segundo define o site da organização.
Já Luc Montagnier é um médico francês, laureado com o Nobel de Medicina em 2008 por suas descobertas referentes ao HIV, mas posicionamentos recentes sobre a covid-19 têm se mostrado polêmicos e já foram refutados, como demonstrou o Estadão Verifica em maio.
Naquela ocasião, Montagnier havia afirmado, em um vídeo, que a vacina produzia novas variantes e seria responsável pelo agravamento da pandemia. O filme foi excluído das plataformas de compartilhamento de vídeo por se tratar de conteúdo de desinformação.
O francês também já havia sido citado em uma verificação do Comprova, que negava a contaminação por HIV de pessoas vacinadas na Austrália. A afirmação não foi feita por Montagnier, porém ele era referenciado pelo autor da publicação. A checagem foi realizada em dezembro passado e, naquele período, o médico fez inúmeras conjecturas sobre o surgimento do Sars-Cov-2, inclusive que teria sido criado em laboratório na tentativa de descobrir a vacina para a Aids. O conteúdo foi desmentido.
Em seu perfil, a norte-americana Carrie Madej se apresenta como osteopata – vertente de medicina alternativa. As declarações sobre a covid-19 já foram contestadas em diversas situações, como a publicação da AFP esclarecendo que imagens de um suposto “objeto estranho com tentáculos” em frasco de vacina não tinham valor científico.
O G1 e a BBC, por sua vez, classificaram como falso, em julho do ano passado, um conteúdo em que Carrie alegava que as vacinas poderiam gerar seres geneticamente modificados.
Mais recentemente, a médica voltou a aparecer com seu discurso antivacina. No início de novembro, passou a circular um vídeo em que ela ensinava um banho para “desintoxicação” daquelas pessoas que se sentiram obrigadas a tomar o imunizante contra a covid-19. Publicação da NBC News aponta que “os ingredientes do banho geralmente não são prejudiciais, embora os supostos benefícios associados a eles sejam inteiramente fictícios.”
Outro médico norte-americano que aparece na lista para validar o conteúdo aqui verificado é Robert Malone. Ele tem uma página pessoal na internet em que, entre outras afirmações, defende o tratamento precoce e o uso de ivermectina contra a covid-19, antiparasitário que, até o momento, não tem comprovação de eficácia para pacientes infectados pelo coronavírus. Nesse site, o médico demonstra ainda apoio a um movimento nacional contra a vacinação de crianças.
Em seu perfil, Malone se apresenta como o inventor da vacina de RNA mensageiro, tecnologia utilizada em imunizantes como o Comirnaty, da Pfizer, porém o conteúdo foi considerado enganoso em uma checagem do jornal Sapo, de Portugal.
A IstoÉ Dinheiro também apresentou uma reportagem da AFP, indicando que estudos científicos equivocados alimentam a desinformação sobre a covid-19. Entre os artigos avaliados está um de Malone que havia sido publicado em uma revista médica, que depois se retratou porque havia“vários erros que afetam fundamentalmente a interpretação das conclusões”.
Nesse grupo de médicos encontra-se também a brasileira Maria Emília Gadelha, otorrinolaringologista que, por diversas vezes, teve conteúdos analisados pela equipe do Comprova.
No mais recente, vários boatos foram divulgados pela médica durante o 2° Congresso Conservador Liberdade e Democracia, realizado em São José, na Região Metropolitana de Florianópolis, no dia 14 de novembro. No vídeo gravado durante o evento, ela afirmava que a vacina contra a covid-19 aumenta casos de AVC entre pilotos de avião e também de aborto espontâneo, o que é falso.
Outra manifestação de Maria Emília alegava que as vacinas são experimentais, o que não é verdade. A médica já teve conteúdos retirados das redes sociais por compartilhar desinformação.
Embora seja reconhecida como Dr Jane Ruby, a norte-americana não é médica. Numa checagem da PolitiFact, ela é descrita como economista da saúde e “analista política da Nova Direita” com doutorado em psicologia. O conteúdo verificado foi classificado como falso por afirmar que a vacina despeja milhões de perigosas proteínas no corpo humano.
Em outra publicação, Jane foi desmentida pelo First Draft News devido a falsas alegações sobre vacinas magnéticas, enquanto a Reuters sustenta que é falso vídeo alertando sobre supostas anomalias no sangue depois da vacinação. A participação de Jane neste caso, segundo a Reuters, é em um debate com outra pessoa de perfil antivacina, espalhando a desinformação.
Na relação dos que avalizam o conteúdo, tem ainda o cientista britânico Michael Yeadon. Em dezembro passado, ele afirmava que a pandemia tinha acabado e que as vacinas não seriam necessárias, conforme checagem da AFP. Nessa publicação, é traçado o perfil de Yeadon, que se apresenta como ex-dirigente da Pfizer. A farmacêutica confirmou que ele foi funcionário da empresa, mas não ocupou cargos de alto escalão.
Outro que nega a pandemia e está na lista é Roger Hodkinson, médico registrado no estado de Alberta, no Canadá. Suas declarações já estiveram na mira da Associated Press, bem como do Comprova, que definiu como falso um tuíte que usava afirmações de Roger.
Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Comprova checa conteúdos suspeitos sobre governo federal, pandemia e eleições que tenham atingido alto grau de viralização.
Desde o início da crise sanitária, conteúdos de desinformação circulam para minimizar os efeitos e riscos do contágio por coronavírus, promover medicamentos sem eficácia para a covid-19 e desacreditar a vacina. Todo esse movimento é prejudicial porque causa dúvidas na população que, por essas alegações, pode deixar de se proteger e ficar mais vulnerável à doença.
Assim como os médicos citados nesta checagem, não é raro o Comprova verificar conteúdos enganosos ou falsos compartilhados por profissionais da saúde que se mostram antivacina, a exemplo do que sugere erroneamente que a vacinação em massa amplia a taxa de mortalidade por covid-19 ou que o órgão sanitário dos Estados Unidos supostamente comprovou que não vacinados e reinfectados não seriam capazes de transmitir a doença.
Lupa e AFP desmentiram esse mesmo boato em novembro.
Para o Comprova, falso é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.