Saúde

Investigado por: 2022-08-22

É enganoso que estudo de Harvard comprovou eficácia de hidroxicloroquina na prevenção da covid-19

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Enganoso
É enganoso um texto publicado no site Médicos Pela Vida - Covid 19 que afirma que um estudo da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, comprovou a eficácia do medicamento hidroxicloroquina para prevenção de covid-19. O artigo em questão é uma metanálise, que cruza resultados de outros estudos para tentar demonstrar uma hipótese, servindo mais para analisar, em conjunto, resultados de estudos já conduzidos do que para se chegar a uma comprovação científica. Entretanto, os autores apenas citam que “um benefício da hidroxicloroquina como profilaxia para covid-19 não pode ser descartado com base nas evidências disponíveis de estudos randomizados”. Especialistas ouvidos pelo Comprova pontuam que a metanálise em questão tem problemas, como a qualidade dos estudos selecionados e o fato de um dos textos ser de um dos próprios autores da metanálise. O estudo também não é de Harvard, como cita o site Médicos Pela Vida - Covid-19. São cinco autores da metanálise, sendo apenas dois ligados à universidade americana.

Conteúdo investigado: Texto publicado no site Médicos Pela Vida – Covid-19, e compartilhado em redes sociais, afirma que um estudo da universidade de Harvard, nos Estados Unidos, comprova que o uso do medicamento hidroxicloroquina é eficaz para profilaxia da covid-19.

Onde foi publicado: Site Médicos Pela Vida – Covid-19, Facebook, Twitter e WhatsApp.

Conclusão do Comprova: Texto publicado no site Médicos Pela Vida – Covid-19 engana ao afirmar que um estudo da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, apontou a eficácia da hidroxicloroquina na profilaxia pré-exposição de covid-19. A profilaxia pré-exposição é o uso do medicamento antes da exposição ao vírus, como forma de prevenção. Em nenhum momento, o estudo cita que o medicamento é eficaz nesse tipo de tratamento. O artigo é uma metanálise, um tipo de pesquisa que cruza resultados de outros estudos em busca da confirmação ou não de uma hipótese, e não costuma ter caráter de comprovação científica. Além disso, esse cruzamento pode ser afetado pela qualidade dos estudos analisados. É o que acontece neste caso, em que uma das pesquisas não está publicada em revistas científicas e, portanto, não foi revisada por pares. Além disso, outro dos estudos considerados é de autoria de um dos próprios cientistas que conduzem a metanálise, o que, segundo especialistas ouvidos pelo Comprova, pode trazer vieses à metanálise.

A conclusão da metanálise repercutida no site Médicos Pela Vida – Covid 19 foi de que “quando considerados em conjunto, os ensaios randomizados de profilaxia pré-exposição fornecem uma estimativa pontual de um risco aproximadamente 28% menor de covid-19 para atribuição à HCQ [hidroxicloroquina] em comparação com nenhuma HCQ entre indivíduos PCR [teste molecular para covid] negativos na randomização”. Isso quer dizer que o cruzamento dos estudos apontou que quem tomou hidroxicloroquina poderia ter 28% menos chance de contrair covid-19 em relação a quem não tomou, entre os voluntários dos sete estudos sobre profilaxia pré-exposição considerados na metanálise. Em nenhum momento os autores definem que o medicamento teve eficácia comprovada na profilaxia da doença causada pelo coronavírus. Eles pontuam apenas que “um benefício da hidroxicloroquina como profilaxia para covid-19 não pode ser descartado com base nas evidências disponíveis de estudos randomizados”.

A conclusão da metanálise foi destacada no site Médicos Pela Vida – Covid-19 como uma comprovação da eficácia da hidroxicloroquina na profilaxia de covid-19, o que não é verdade. Ela também é apontada como problemática por especialistas ouvidos pelo Comprova. Os médicos infectologistas e professores de Medicina Alexandre Zavascki e Leonardo Weissmann questionam alguns pontos: a qualidade dos estudos selecionados, dos quais um não foi publicado em revistas científicas e nem revisto por pares, etapa básica para avaliar a qualidade de um artigo científico; o fato de o estudo usar pesquisa conduzida pelos próprios autores da metanálise; e o fato de vários estudos já revisados por pares e publicados em outras revisões não terem sido utilizados.

O estudo também não é da Universidade de Harvard, como pontua o site Médicos Pela Vida – Covid-19, que pertence a grupo de profissionais da saúde que defende o tratamento precoce, que não tem eficácia comprovada contra o coronavírus. São cinco autores, dos quais apenas dois estão ligados à universidade americana. Em uma verificação da Agência Reuters sobre o mesmo tema, a universidade negou que tenha realizado a pesquisa e disse que “não interfere no que o corpo docente escolhe investigar”. “Seria mais preciso dizer ‘um estudo de integrantes do corpo docente da faculdade’”, acrescentou. A metanálise cruzou dados de 11 pesquisas, sendo sete de profilaxia pré-exposição e quatro de profilaxia pós-exposição. Também após questionamento da Reuters, a revista que publicou o estudo afirmou que foi informada de possíveis falhas no artigo e que elas estão sob análise.

Enganoso, para o Comprova, é conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Alcance da publicação: No Facebook, o maior alcance do texto foi na página Livre Brasil, em publicação feita no dia 11 de agosto. Até 16 de agosto, a postagem tinha 252 reações, 20 comentários e 112 compartilhamentos. No Twitter, o maior alcance foi do perfil do site Médicos Pela Vida, onde duas publicações linkando o texto tiveram, juntas, 3,6 mil compartilhamentos e quase 8 mil curtidas.

O que diz o autor da publicação: Procurado, o grupo Médicos pela Vida – Covid-19 respondeu com o link de uma outro texto em seu site, publicado em resposta à verificação feita pela Agência Reuters em que diz que a “checagem que é falsa”.

Como verificamos: O Comprova analisou o estudo repercutido no site Médicos pela Vida – Covid-19, e compartilhado em redes sociais, e entrevistou profissionais sobre aspectos da pesquisa. São eles: o infectologista Alexandre Zavascki, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA), professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do CNPq; e Leonardo Weissmann, médico infectologista do Instituto Emílio Ribas (São Paulo), professor do curso de Medicina da UNAERP – Campus Guarujá e diretor da Sociedade Brasileira de Infectologia.

A equipe também pesquisou estudos sobre hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 publicados em periódicos acadêmicos revisados por pares, e analisou dados nos sites das agências reguladoras dos EUA, da União Europeia e do Brasil.

Foram contatados dois dos autores do estudo que aparece no conteúdo verificado, o grupo Médicos pela Vida – Covid-19 e o Ministério da Saúde. Os autores do estudo não responderam aos questionamentos do Comprova.

O estudo e seus autores

O estudo Systematic review and meta-analysis of randomized trials of hydroxychloroquine for the prevention of COVID-19 foi publicado, no último dia 9, no European Journal of Epidemiology, publicação científica revisada por pares, o que significa alto grau de confiabilidade. O estudo, porém, realiza uma metanálise de pesquisas anteriores: das 11 analisadas, uma não teve publicação em periódicos revisados por pares, o que, segundo Alexandre Zavascki e Leonardo Weissmann, prejudica a confiabilidade e assertividade do estudo. Por ser uma metanálise, Zavascki ainda destaca que ela serve mais para analisar resultados gerais de estudos já conduzidos do que para se chegar a uma descoberta nova ou comprovação de algo.

Questionada pela Reuters sobre inconsistências no estudo, a editora sênior do European Journal of Epidemiology, Virginia Mercer, respondeu que a revista foi informada de possíveis falhas no artigo e que elas estão sob análise: “Não posso fornecer mais detalhes neste momento da investigação”, disse Mercer à Reuters.

O estudo é feito por Xabier Garcia-De-Albeniz, pesquisador associado do Departamento de Epidemiologia da Harvard e pesquisador sênior do RTI Health Solutions; Miguel A Hernán, membro da Harvard-MIT Program in Health Sciences and Technology (HST), diretor do CAUSAlab, de Harvard, membro associado do Broad Institute, e funcionário da agência reguladora americana FDA; Julia del Amo, do Ministério da Saúde da Espanha e professora no Instituto de Saúde Carlos III; Rosa Polo, pesquisadora na divisão de HIV, infecções sexualmente transmissíveis, hepatite e controle da tuberculose no Ministério da Saúde da Espanha; e José Miguel Morales-Asencio, professor da Universidade de Málaga, na Espanha.

Estudo não comprova eficácia de hidroxicloroquina para profilaxia

A metanálise, em nenhum momento, comprova a eficácia da hidroxicloroquina para profilaxia de covid-19. O que os autores pontuam é que um benefício da hidroxicloroquina como profilaxia para covid-19 não pode ser descartado com base nas evidências disponíveis de estudos considerados na análise.

Os autores ainda defendem que os achados “não estatisticamente significativos” – isto é, quando as evidências são insuficientes para provar que uma hipótese é nula ou falsa – de pesquisas feitas no início da pandemia foram amplamente interpretados como “evidência definitiva da falta de eficácia do medicamento para covid-19”. E, para eles, essa interpretação “interrompeu a conclusão oportuna dos ensaios restantes e, portanto, a geração de estimativas precisas para o gerenciamento da pandemia antes do desenvolvimento de vacinas”. Entretanto, especialistas pontuam que não foram poucos os estudos que apontaram a ineficácia da hidroxicloroquina no combate da covid-19, seja na pré ou pós-exposição ao vírus.

A metanálise, que é o estudo citado no texto, não aponta resultados definitivos e depende muito da qualidade dos estudos que são selecionados para avaliação, como pontua o médico infectologista no HCPA e professor da Faculdade de Medicina da UFRGS Alexandre Zavascki. “A metanálise usa um método estatístico para analisar os resultados gerais de outros estudos. O que uma metanálise não faz é avaliar a qualidade desses estudos”, diz o infectologista.

Erro básico de classificação

A metanálise usada como referência no texto do site Médicos Pela Vida – Covid-19 tem por base 11 estudos randomizados concluídos: 7 estudos de profilaxia pré-exposição (administração de hidroxicloroquina antes da exposição à covid-19) e 4 estudos de profilaxia pós-exposição (administração de hidroxicloroquina depois da exposição à covid-19). O estudo ainda cita que todas as pesquisas são duplo-cego (quando participantes e pesquisadores não sabem quem recebeu o medicamento e quem ingeriu o placebo). Porém, Zavascki pontua esse como um dos erros da metanálise, já que um dos estudos não é duplo-cego. Em checagem sobre o mesmo estudo da Agência Reuters, um dos autores se defendeu, dizendo que o erro será corrigido, mas que “o fato de um dos ensaios ter sido aberto não afeta os resultados da metanálise”.

Além disso, o infectologista e professor da UFRGS pontua o fato de que nem todos foram publicados em revistas científicas. O Comprova identificou um dos estudos ainda em preprint (ou seja, sem publicação), no site MedRxiv. Nele, há uma mensagem que informa que “o artigo é uma pré-impressão e não foi revisado por pares” e que, por isso, “não deve ser utilizado para orientar a prática clínica”.

“Isso chama muito a atenção. A base preprint não tem nenhum tipo de análise crítica, ou seja, você publica, escreve alguma coisa, e você põe lá e fica publicado, fica público”, explica Zavascki. “Mas o estudo não passa por uma revisão antes de ser publicado, como ocorre em uma revista científica”, completa.

Pesquisa de autor da metanálise foi incluída

Outra situação que afeta a qualidade da metanálise é que, entre as pesquisas selecionadas, uma foi conduzida por um dos próprios autores que fazem a metanálise, Dr. Xabier Garcia-De-Albeniz, como pode ser visto aqui. Esse tipo de escolha não é recomendada por especialistas, pois pode trazer interferência nos resultados. O médico infectologista Leonardo Weissmann acrescenta que a “falha na análise de vieses (erros metodológicos) nos estudos avaliados tende a produzir conclusões que diferem da realidade”.

Weissmann também pontua que nem todas as evidências sobre o tema foram avaliadas. E que isso se comprova pelo fato de que essa metanálise, publicada em agosto deste ano, “tem menos artigos analisados do que a revisão Cochrane, considerada a melhor do mundo, de fevereiro do ano passado”.

A Cochrane é uma rede internacional com sede no Reino Unido, uma organização sem fins lucrativos que publica revisões sistemáticas de estudos primários sobre saúde humana e políticas de saúde. “Além disso, entre os estudos omitidos nesta metanálise, há alguns muito bons e com resultados negativos para o uso da hidroxicloroquina”, acrescenta o infectologista do Emílio Ribas.

Estudos sobre a hidroxicloroquina

Pesquisas publicadas em periódicos científicos revisados por pares, ou seja, com alto grau de confiabilidade, concluíram não haver comprovação científica de eficácia da hidroxicloroquina tanto na fase de pré-exposição ao vírus da covid-19 quanto na pós-exposição.

O estudo Hydroxychloroquine versus placebo in the treatment of non-hospitalised patients with COVID-19 (COPE – Coalition V): A double-blind, multicentre, randomised, controlled trial, conduzido pelo grupo Cope – Coalition Covid-19 Brazil V Investigators, e publicado na revista The Lancet Regional Health – Americas, em 31 de março de 2022, foi feito com 1.372 pacientes ambulatoriais com formas leves ou moderadas de covid-19. Um grupo recebeu hidroxicloroquina e outro, placebo.

O estudo apontou que o uso de hidroxicloroquina não reduziu o risco de internação em comparação com o grupo que recebeu placebo. Os pesquisadores, então, concluíram que não há indicação para o uso rotineiro de hidroxicloroquina para tratamento de covid-19 no ambulatório.

O grupo Cope – Coalition Covid-19 Brazil V Investigators é coordenado pelas seguintes instituições: Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Hospital Albert Einstein, Hospital do Coração, Hospital Sírio Libanês, Hospital Moinhos de Vento, A Beneficência Portuguesa de São Paulo, Brazilian Clinical Research Institute (BCRI) and Brazilian Research in Intensive Care Network (BRICNet). O mencionado estudo foi conduzido por 39 profissionais ligados a essas instituições.

Outros estudos chegaram a conclusões semelhantes:

Updates on Hydroxychloroquine in Prevention and Treatment of COVID-19 – Publicado em 23/08/2021 pelo The American Journal of Medicine.

Effect of Hydroxychloroquine on Clinical Status at 14 Days in Hospitalized Patients With COVID-19 – Publicado em 09/11/2020 pela revista acadêmica da American Medical Association

A Randomized Trial of Hydroxychloroquine as Postexposure Prophylaxis for Covid-19 – Publicado em 06/08/2020 pelo The New England Journal of Medicine.

Em relação à pré-exposição ao vírus da covid-19, estudos também concluíram não haver comprovação de eficácia no uso da hidroxicloroquina para prevenção da doença:

Efficacy and Safety of Hydroxychloroquine vs Placebo for Pre-exposure SARS-CoV-2 Prophylaxis Among Health Care Workers – Publicado em 30/09/2020 pela revista da American Medical Association.

Efficacy and safety of hydroxychloroquine as pre-and post-exposure prophylaxis and treatment of COVID-19: A systematic review and meta-analysis of blinded, placebo-controlled, randomized clinical trial – Publicado em 28/08/2021 pela revista The Lancet Regional Health – Americas.

Histórico na utilização de hidroxicloroquina na pandemia

Com a pandemia da covid-19, houve um esforço da comunidade científica internacional para identificar um medicamento que pudesse ser eficaz contra a doença. O uso da hidroxicloroquina passou a ser considerado quando um estudo, publicado em 18 de março de 2020, na revista Nature, mostrou que o medicamento poderia bloquear a infecção por Sars-CoV-2 em células derivadas de rins de macacos.

O estudo, que antecedeu os testes em humanos citados anteriormente, impulsionou a prescrição do medicamento no tratamento da covid-19. No dia 28 daquele mês, a Federal Drug Administration (FDA), a agência reguladora dos EUA, havia concedido a autorização de uso emergencial da hidroxicloroquina. Porém, ela foi revogada pela FDA três meses depois, em 15/06/2020, após novos dados apontarem para a não efetividade no tratamento da covid-19.

“Além disso, à luz de eventos adversos cardíacos graves em andamento e outros efeitos colaterais graves, os benefícios conhecidos e potenciais de CQ (cloroquina) e HCQ (hidroxicloroquina) não superam mais os riscos conhecidos e potenciais para o uso autorizado”, disse a FDA à época.

Medicamentos autorizados no tratamento da covid-19

O Comprova fez um levantamento sobre os medicamentos autorizados pelas agências reguladoras dos EUA, da União Europeia e do Brasil para o tratamento da covid-19. A hidroxicloroquina não consta nas listas disponíveis nos sites da FDA, EMA e Anvisa.

Em consulta ao sistema Bulário Eletrônico, no site da Anvisa, sobre hidroxicloroquina, foram verificadas as bulas do medicamento produzido por três fabricantes: Eurofarma, Sanofi Medley e EMS. Não há recomendação de uso contra a covid-19.

Questionado se há testes em andamento para avaliar a eficácia da hidroxicloroquina, o Ministério da Saúde respondeu que “não há solicitação de registro ou indicação em bula da hidroxicloroquina para tratamento de Covid”.

Por que investigamos: Investigamos conteúdos suspeitos que viralizaram nas redes sociais sobre as eleições presidenciais, a pandemia e políticas públicas do governo federal. No caso do material investigado, a publicação confunde leitores sobre o uso de um medicamento que não tem comprovação científica de qualquer eficácia no tratamento da covid-19, seja na pré ou pós-exposição à doença. Dessa forma, o conteúdo coloca a saúde da população em risco.

Outras checagens sobre o tema: A Agência Reuters publicou uma checagem que concluiu como falsa a afirmação do site Médicos Pela Vida – Covid 19. A Agência Lupa também classificou o texto como falso.

A hidroxicloroquina foi alvo de outras verificações do Comprova, como a que enganava ao afirmar que estudo com o medicamento comprova eficácia no “tratamento precoce” e a de vídeo de médico, também enganoso, dizendo que a hidroxicloroquina funciona contra a covid-19.