Conteúdo analisado: Publicações no WhatsApp e nas redes sociais que citam o artigo 142 para incentivar apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) a participar de manifestações pedindo “intervenção militar” ou “intervenção federal”.
Comprova Explica: Desde a eleição de Lula, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro contrários ao resultado do pleito vêm citando o artigo 142 da Constituição de 1988 para pedir que o Exército promova uma “intervenção militar” ou “intervenção federal”, o que configuraria um golpe de Estado. “Brasil nas ruas — Convocação nacional — Todas as capitais, em especial Brasília, para exigir o cumprimento do artigo 142”, afirma um post que viralizou, chamando a população para atos próximos às bases do Exército em 2 de novembro. Os atos de bloqueio nas estradas seguiram a mesma convocação.
Postagens deste tipo foram alimentadas por Bolsonaro que, desde 2020, faz declarações com ameaças antidemocráticas, por vezes com citação ao Exército. “Todo mundo quer cumprir o artigo 142. E, havendo necessidade, qualquer dos Poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil”, disse ele em abril daquele ano. No entanto, declarações como esta não têm respaldo da Constituição.
O artigo 142 afirma que “as Forças Armadas (…) são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Ou seja, a Constituição não prevê que as Forças Armadas possam ser usadas para rejeitar o resultado da eleição, como prerrogativa de um golpe, nem atuar sem a autorização dos Poderes.
Frente às afirmações dos manifestantes que defendem o golpe e aos questionamentos que surgem, a seção Comprova Explica decidiu detalhar o artigo 142 e suas implicações.
Como verificamos: O primeiro passo foi buscar a Constituição Federal e ler seu artigo 142. A equipe também pesquisou reportagens sobre o tema, os protestos e as afirmações de Bolsonaro referentes ao assunto.
O Supremo Tribunal Federal (STF) foi procurado para saber qual é a interpretação da Corte a respeito do artigo. Sem resposta, houve pesquisa sobre manifestações de ministros do STF sobre o tema. Também procuramos o Ministério da Defesa para entender como a pasta interpreta o artigo e os atos antidemocráticos que acontecem em todo país. Não houve retorno até a publicação desta checagem.
Por último, a reportagem entrevistou Wallace Corbo, professor de Direito Constitucional da FGV Direito Rio, a cientista política Tathiana Chicarino, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP), e Vicente Braga, presidente da Associação Nacional dos Procuradores Estaduais e do Distrito Federal (Anape).
O que diz o artigo 142 e o que ele representa na Constituição?
Ao contrário do que têm pregado apoiadores do presidente Bolsonaro, o artigo 142 da Constituição Federal de 1988, em vigência no Brasil, não tem dispositivos que concedam às Forças Armadas o poder de arbitrar conflitos entre os Poderes ou de fazer qualquer tipo de intervenção militar ou federal. O artigo começa determinando que “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
As Forças Armadas são órgãos de Estado, cuja ação independe das disputas políticas. Logo, como destaca documento enviado pela Secretaria-geral da Mesa da Câmara dos Deputados à Presidência da República em agosto de 2020, apesar de estarem as Forças Armadas subordinadas ao presidente, ambos estão ao alcance da Constituição. Ou seja, a autoridade do presidente é “suprema” perante as demais autoridades militares, mas não diante da ordem constitucional.
A missão das Forças Armadas no que tange à soberania da República responde especialmente à defesa da integridade territorial e de suas instituições frente a ameaças estrangeiras. Para a garantia da lei e da ordem, as Forças Armadas podem ter, de acordo com entendimento constitucional, ação requerida em situações nas quais os responsáveis pela segurança pública estejam impossibilitados de desempenhar suas atividades. Nesses casos, a ação, que tem caráter de apoio, deverá ter sinalização do tempo de duração e delimitação do espaço de atuação.
O que é intervenção federal e quando pode ser aplicada?
Sendo o Brasil uma República Federativa, os governos nos âmbitos municipal, estadual e federal têm suas próprias responsabilidades em gestão e políticas, sem que nenhum dos poderes interfira nas atribuições dos demais. No entanto, existem casos específicos em que a União é autorizada a intervir nos Estados e Distrito Federal, movimento este chamado de intervenção federal. Na prática, quando aplicada, o governo estadual perde totalmente, ou em parte, suas competências até que a situação volte ao normal.
Prevista no artigo 21 da Constituição Federal e regulada pelo artigo 34, a intervenção federal pode ser aplicada por motivos de segurança. Conforme mostrou reportagem do UOL, o instrumento entra em cena em sete situações:
1 – Manter a integridade nacional;
2 – Repelir uma invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
3 – Encerrar “grave comprometimento da ordem pública”;
4 – Garantir o livre exercício dos Poderes nos Estados;
5 – Reorganizar as finanças de Estados, em determinados casos;
6 – Garantir a execução de uma lei federal ou decisão judicial;
7 – Assegurar a observância de determinados princípios constitucionais.
Presidente da Anape, Vicente Braga destaca que em qualquer caso de intervenção constitucional é preciso seguir o rito descrito no artigo 36, que requer a solicitação de um dos Poderes. “O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembleia Legislativa do Estado, no prazo de 24 horas”, diz a legislação. A Constituição prevê que, cessados os motivos da intervenção, “as autoridades são afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal”. A norma cita “Assembleia Legislativa” porque também existe a previsão de intervenção de estados em municípios.
Questionado se há diferentes interpretações sobre o assunto no meio jurídico, Braga respondeu que a intervenção constitucional existe nos casos restritos ao artigo 34 e seguintes da Constituição, não se justificando no caso em que o resultado das eleições é contestado por uma parte da população.
Ainda com base na Constituição, a depender da situação, a intervenção pode ser decretada por um dos três Poderes da União: Executivo, Legislativo ou Judiciário. Não há previsão de normas específicas sobre o prazo, a abrangência e as condições de aplicação da intervenção. No entanto, se for decretada pelo governo federal, a aplicação é imediata. Mas, ainda assim, há a necessidade de passar pelo Congresso. Segundo a Constituição, propostas de emenda à ela não podem ser votadas “na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio”.
Vale destacar que a possibilidade de intervenção federativa existe desde 1891, quando foi promulgada a primeira Constituição pós-proclamação da República. No país, a última vez que o instrumento foi utilizado foi em 2018, no Rio de Janeiro. A intervenção durou de janeiro a dezembro, e o Decreto nº 9.288 foi assinado pelo então presidente da República, Michel Temer (MDB). Na ocasião, o então governador Luiz Fernando Pezão (MDB) pediu ajuda da União por conta de uma crise na segurança pública.
Conforme informações do governo do Rio de Janeiro, “o Gabinete de Intervenção Federal atuou na área de gestão, fornecendo as condições necessárias para um melhor funcionamento das secretarias intervencionadas. Em paralelo, operações lideradas pelo Comando Conjunto, em parceria com os órgãos de segurança pública, contribuem para restabelecer a segurança no Rio de Janeiro”.
O que dizem os especialistas
Wallace Corbo, professor da FGV Direito Rio, afirma que a discussão sobre o artigo 142 permitir a intervenção militar foi “fabricada” a partir de 2014. O artigo 142 é claro, em sua opinião, ao conferir às Forças Armadas a atribuição de defesa do país diante de ataques externos e internos que ameacem a integridade do Estado. Em situações excepcionais, elas podem ser acionadas pelos Poderes civis para agir como auxiliar em situações graves de comoção nacional.
As Forças Armadas, porém, não correspondem a um Poder Moderador – figura inexistente na Constituição de 1988. Corbo afirma que a Constituição brasileira tem claro caráter democrático, na qual não cabe a função moderadora. O texto constitucional prevê apenas três Poderes –Executivo, Legislativo e Judiciário – e, no caso de conflito, o árbitro é o STF, que deve atuar dentro dos limites da Constituição. As Forças Armadas estão abaixo dos Poderes e não têm atribuição de interferir nos resultados eleitorais. A missão de conduzir e homologar as eleições é exclusiva da Justiça Eleitoral.
“Mentes autoritárias, nostálgicas do período militar, buscam na Constituição os instrumentos para destruí-la. Como dizia Thomas Jefferson, a Constituição não é um pacto suicida. Não pode ser usada para a sua destruição”, afirmou Corbo referindo-se a um dos “pais fundadores” dos Estados Unidos, ex-presidente americano, autor da Declaração de Independência e um dos principais formuladores da Constituição de 1787.
Para Corbo, as atuais manifestações com bloqueio em rodovias no Brasil pedem a subversão do pleito eleitoral – o que não é legítimo — e o golpe militar — o que não é constitucional. Ele avalia que o movimento ultrapassou os limites do direito de manifestação e se tornou um ato ilícito. “Portanto, configura crime contra o Estado e a ordem constitucional e precisa ser investigado. Cidadãos comuns e autoridades que tenham agido para contribuir com essas manifestações ou se omitido devem ser responsabilizados”, afirmou.
Na avaliação do professor, a Lei Antiterrorismo (Lei 13.260/2016) pode ser aplicada nesse caso, dado o fato de as manifestações terem se caracterizado pela propagação do terror social e pelo objetivo de desestabilizar a ordem democrática.
Para a cientista política Tathiana Chicarino, professora da FESP-SP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), o artigo 142 não deveria estar na Constituição, “para não dar margem a esses tipos de interpretações golpistas”. De acordo com ela, os manifestantes usam o trecho final do texto (‘e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem’) para pedir intervenção militar.
“Eles argumentam que não há ordem e pronto, que se chamem as Forças Armadas para fazer esse suposto apaziguamento assim como foi feito em 1964”, diz ela. Chicarino diz que os manifestantes dos atos antidemocráticos instauram um estado de desordem e de caos para depois chamar o Exército. “Não é um discurso novo no Brasil, mas agora há as forças das redes sociais.”
Uso das Forças Armadas para intervenção já foi refutado em outras oportunidades
A tese de que as Forças Armadas seriam garantidoras do equilíbrio entre os Poderes, com função de Poder Moderador, ganhou peso com declaração do procurador-geral da República, Augusto Aras, em entrevista a um programa da Rede Globo na noite de 1º de junho de 2020. Na ocasião, ele afirmou: “Quando o artigo 142 estabelece que as Forças Armadas devem garantir o funcionamento dos Poderes constituídos, essa garantia é no limite da garantia de cada Poder. Um Poder que invade a competência de outro Poder, em tese, não há de merecer a proteção desse garante da Constituição”.
No dia seguinte, a Procuradoria-Geral da República divulgou nota para corrigir essa interpretação. “A Constituição não admite intervenção militar. Ademais, as instituições funcionam normalmente”, afirmou o próprio Aras na nota. “Os Poderes são harmônicos e independentes entre si. Cada um deles há de praticar a autocontenção para que não se venha a contribuir para uma crise institucional”, completou.
Em 10 de junho de 2020, o ministro do STF Luís Roberto Barroso rejeitou pedido de regulamentação do artigo 142, com vistas a atribuir às Forças Armadas o Poder Moderador. O ministro entende que a Constituição de 1988 é clara ao impor mecanismos de pesos e contrapesos entre os Poderes, que se mostraram capazes de dirimir crises institucionais desde o início da redemocratização. Para Barroso, adotar o Poder Moderador, abandonado desde a primeira Constituição da República (1891), significaria retrocesso e a adesão a resquícios absolutistas da Constituição do período monárquico.
“Com a Constituição de 1988, o Brasil fez sua transição para um Estado Democrático de Direito. Nessa medida, submeteu o poder militar ao poder civil, e todos os Poderes à Constituição”, afirmou Barroso em sua decisão. “Em nenhuma hipótese, a Constituição submete o poder civil ao poder militar. É simplesmente absurda a crença de que a Constituição legitima o descumprimento de decisões judiciais por determinação das Forças Armadas. Significa ignorar valores e princípios básicos da teoria constitucional. Algo assim como um terraplanismo constitucional”, completou.
Em sua decisão, Barroso inclui entendimentos da Câmara dos Deputados, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e do Ministério da Defesa.
Houve manifestações sobre o tema por outros integrantes do STF, como o ministro Luiz Fux, que reforçou que as Forças Armadas são órgãos do Estado e não do governo, e devem atuar na defesa da pátria, garantia dos poderes constitucionais e da lei e ordem.
A decisão de Fux foi dada dois dias após a de Barroso no âmbito de ação apresentada pelo PDT. Para o ministro, a chefia das Forças Armadas é poder limitado, “excluindo-se qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao presidente da República”.
Em entrevista ao Valor Econômico, publicada em 4 de junho de 2020, o ministro Gilmar Mendes, do STF, afirmou ser “irresponsável” e “tese de lunáticos” a interpretação de que o artigo 142 legitimaria intervenção das Forças Armadas. Ele ressaltou que o “guardião da Constituição” é o STF e que as “Forças Armadas não são milícias de uma dada facção partidária”.
Em comunicado no dia 31 de outubro, o procurador-chefe do Ministério Público Federal em Minas Gerais, Patrick Salgado Martins, afirmou que “em nenhuma linha do artigo 142 da Constituição da República consta como missão das Forças Armadas promover golpe de Estado”.
Por que explicamos: O Comprova investiga conteúdos suspeitos sobre a pandemia, eleições presidenciais e políticas públicas no governo federal que circulam nas redes sociais. A seção Comprova Explica é utilizada para a divulgação de informações a partir de conteúdos que viralizam e causam confusão, como o artigo 142 e os pedidos de intervenção feitos por bolsonaristas. O Brasil é uma República democrática e qualquer tentativa de golpe, como esses protestos, ameaçam o sistema consagrado na Constituição de 1988.
Outras checagens sobre o tema: O Comprova vem checando diversos conteúdos de desinformação que tentam colocar a democracia em risco, como os que questionam o sistema eleitoral. Recentemente, foi publicado que post engana ao sugerir fraude relacionada a inserções de propaganda eleitoral do PL em rádios, que vídeo de Boletins de Urnas que mostram Bolsonaro com mais votos do que Lula não prova problema na apuração e que gravação que insinua fraude em votação em Maceió reproduz infográfico com erro.