O Projeto Comprova é uma iniciativa colaborativa e sem fins lucrativos liderada pela Abraji e que reúne jornalistas de 42 veículos de comunicação brasileiros para descobrir, investigar e desmascarar conteúdos suspeitos sobre políticas públicas, eleições, saúde e mudanças climáticas que foram compartilhados nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.
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Comprova Explica

Investigado por: 2023-08-10

Autorização da ozonioterapia no país está condicionada à aprovação da Anvisa

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Comprova Explica
Posts acusam o governo federal de negacionista por ter sancionado uma lei que autoriza a ozonioterapia no país. No entanto, o texto permite a prática somente com o uso de equipamentos para finalidades cuja eficácia e segurança sejam aprovadas pela Anvisa. Até o momento, a técnica foi aprovada pelo órgão somente para fins odontológicos e estéticos.

Conteúdo analisado: Após a sanção da Lei 14.648, de 4 de agosto de 2023, que autoriza a realização da ozonioterapia em território nacional, uma publicação no Telegram questiona “quem é o negacionista agora?”, já que a prática não tem comprovação científica de eficácia para aplicações médicas. A pergunta faz referência às críticas direcionadas ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) durante a condução da pandemia da covid-19. Naquele período, algumas pessoas afirmaram que a covid-19 poderia ser tratada com ozonioterapia, algo sem comprovação científica.

Comprova Explica: A sanção da Lei 14.648 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) resultou em uma série de postagens nas redes sociais acusando o governo de negacionista. As alegações se baseiam em manifestações de entidades médicas, como o Conselho Federal de Medicina (CFM), que afirmam não haver comprovação científica suficiente sobre segurança e efetividade da prática em medicina.

Porém, a lei sancionada afirma que “a ozonioterapia somente poderá ser aplicada por meio de equipamento de produção de ozônio medicinal devidamente regularizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou órgão que a substitua”.

Segundo a Anvisa, até o momento, os únicos equipamentos regularizados pela agência para uso da ozonioterapia são para fins odontológicos e estéticos, cuja segurança e eficácia foram aprovadas. E não para aplicações médicas em pacientes.

Como verificamos: O Comprova consultou o Diário Oficial da União (DOU) do dia 7 de agosto de 2023, a fim de acessar a Lei 14.648, que autoriza a prática da ozonioterapia no país. A partir disso, foram consultados comunicados, notas à imprensa e documentos oficiais por parte do governo federal, do Ministério da Saúde e da Anvisa sobre o procedimento.

Em seguida, para entender a tramitação do projeto de lei no Congresso, foram consultados os sites da Câmara dos Deputados e do Senado. Notas e resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM), Associação Médica Brasileira (AMB), Associação Brasileira de Ozonioterapia (Aboz), Conselho Federal de Odontologia (CFO), Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e Conselho Federal de Farmácia (CFF), que tratam sobre a prática com ozônio, também foram consultadas.

Para entender sobre o uso da ozonioterapia durante a pandemia, buscamos por verificações e reportagens da época relacionadas ao assunto. Por fim, entramos em contato com o Ministério da Saúde e com a Anvisa.

Lei autoriza ozonioterapia somente em casos aprovados pela Anvisa

A Lei 14.648, de 4 de agosto, que autoriza a ozonioterapia no território nacional, foi sancionada pelo presidente Lula com publicação no Diário Oficial da União em 7 de agosto. O texto havia sido enviado para sanção presidencial no dia 17 de julho, após ter sido aprovado pela Câmara e pelo Senado. O documento assinado pelo presidente é o mesmo remetido pelo Senado Federal após tramitação nas duas casas legislativas. Segundo a CNN Brasil, antes de sancionar a lei, o Palácio do Planalto consultou a Anvisa, que não se opôs.

A lei autoriza que a ozonioterapia seja aplicada somente por meio de equipamento de produção de ozônio medicinal regularizado pela Anvisa. Até o momento, segundo comunicado da agência, os equipamentos aprovados são exclusivamente para fins odontológicos e estéticos, nos seguintes procedimentos:

  • Dentística: tratamento da cárie dental – ação antimicrobiana;
  • Periodontia: prevenção e tratamento dos quadros inflamatórios/infecciosos;
  • Endodontia: potencialização da fase de sanificação do sistema de canais radiculares;
  • Cirurgia odontológica: auxílio no processo de reparação tecidual;
  • Estética: auxílio à limpeza e assepsia de pele.

Na nota técnica de junho de 2022 anexada ao comunicado, a Anvisa informa que tem recebido “diversas submissões de regularização de dispositivos médicos emissores de ozônio cujas indicações de uso visam a aplicação da técnica de ozonioterapia para diversos fins”. No entanto, somente os equipamentos para os procedimentos descritos acima tiveram segurança e eficácia aprovadas pela Anvisa.

A nota técnica ressalta que o uso de equipamentos para aplicação de ozonioterapia para fins diversos daqueles aprovados pelo órgão constitui infração sanitária, sujeita a sanções previstas na Lei 6437/77. E que denúncias podem ser feitas à Ouvidoria da Anvisa (pelo número 0800 642 9782 ou pelo site da Ouvidoria).

A autorização prevista na lei é para aplicação da ozonioterapia em caráter complementar. Segundo o Ministério da Saúde, práticas complementares não substituem o tratamento tradicional: “Elas são um adicional, um complemento no tratamento e indicadas por profissionais específicos conforme as necessidades de cada caso”.

Processo de aprovação na Anvisa

Ao Comprova, a Anvisa esclareceu que os equipamentos emissores de ozônio para aplicação em odontologia e estética foram aprovados gradualmente, à medida que as empresas interessadas em regularizá-los enviavam pleitos para a agência, que avaliou os estudos que embasavam os produtos quanto à eficácia e segurança. Esses estudos, segundo a Anvisa, compõem os dossiês técnicos dos produtos e são informações sob sigilo empresarial.

Ainda de acordo com a agência, foram submetidos nos últimos anos pleitos relacionados a outras aplicações, como para dor lombar, artrite, artrose e diabetes. Porém, conforme o órgão, não houve comprovação de eficácia para essas finalidades.

Em comunicado de 7 de agosto, a Anvisa informa que novas indicações de uso da ozonioterapia poderão ser aprovadas. Para tanto, são necessárias novas submissões de pedidos de regularização de equipamentos emissores de ozônio pelas empresas interessadas, com apresentação dos estudos necessários à comprovação de sua eficácia e segurança.

Projeto de Lei foi apresentado por senador em 2017

O projeto (PL 227/17) que deu origem à lei foi apresentado pelo então senador Valdir Raupp em 2017. O texto original, que foi modificado, previa autorização para a prescrição da ozonioterapia como tratamento médico de caráter complementar. Dentre as justificativas, o senador destacou a aplicação da ozonioterapia como prática reconhecida pelo sistema de saúde de países como Alemanha, China, Rússia, Cuba, Portugal, Espanha, Grécia, Turquia e em 32 estados dos Estados Unidos. E que a técnica pode ser usada no tratamento de patologias de origem inflamatória, infecciosa e isquêmica.

O PL seguiu para a Câmara em novembro de 2017, onde recebeu a numeração PL 9001/2017 e foi modificado. Na redação final, foi retirada a prescrição da ozonioterapia como tratamento médico. O texto não foi para o plenário da casa legislativa por ser de caráter conclusivo. Esse tipo de projeto só precisa ser aprovado pelas duas comissões designadas para análise. O projeto deixa de ter essa característica caso as comissões dêem pareceres divergentes sobre o assunto (uma aprovar e a outra reprovar) ou se 52 deputados (10% da Câmara) assinarem um recurso contra esse rito após a aprovação nas comissões – o que não aconteceu.

Com a aprovação pelas comissões de Seguridade Social e Família e de Constituição e Justiça e de Cidadania, o texto final, que seguiu de volta para revisão no Senado em maio de 2023, foi o mesmo remetido ao Palácio do Planalto e sancionado pelo presidente Lula em agosto deste ano.

O que é a ozonioterapia?

De acordo com o Conselho Federal de Medicina, a ozonioterapia é um procedimento terapêutico que aplica uma mistura de dois gases nos pacientes: o oxigênio e o ozônio. A aplicação pode ser feita de diferentes formas, como endovenosa, retal, intra-articular, local e intramuscular.

Na nota técnica da Anvisa de junho de 2022, a agência explica que o ozônio é um “gás com forte poder oxidante e bactericida”. Por conta disso, seu uso deverá ser destinado apenas para fins odontológicos e estéticos, com o objetivo de tratar inflamações e infecções nessas áreas, além de limpeza de pele. Em outras aplicações, esse gás costuma ser utilizado para desinfecção de ambientes hospitalares e no tratamento de água.

Em 20 de abril de 2018, o CFM publicou uma resolução que torna a ozonioterapia um procedimento de caráter experimental. Com isso, os tratamentos médicos só poderão utilizar essa abordagem se forem voltados para estudos, e desde que sigam critérios definidos pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Dentre as regras, está a concordância dos participantes com as condições da pesquisa, a garantia de sigilo e anonimato, a oferta de suporte médico-hospitalar em caso de efeitos adversos e a não cobrança do tratamento em qualquer uma de suas etapas.

O conselho também pontuou que, a pedido da Associação Brasileira de Ozonioterapia, avaliou até aquele momento mais de 26 mil trabalhos sobre o assunto. A conclusão, no entanto, foi de que o uso medicinal dessa prática ainda precisa de mais estudos, “com metodologia adequada e comparação da ozonioterapia a procedimentos placebos, assim como estudos comprovando as diversas doses e meios de aplicação de ozônio”, conforme consta no site do CFM.

Ozonioterapia foi incorporada ao SUS como prática complementar em odontologia em 2018

Em 2018, o Ministério da Saúde incluiu a ozonioterapia no rol de Práticas Integrativas e Complementares (Pics) do SUS. Em resposta ao Comprova, a pasta informou, por telefone, que a inclusão se referia somente às práticas odontológicas que, à época, já haviam sido autorizadas pela Anvisa.

Em 2015, a Resolução CFO-166 do Conselho Federal de Odontologia reconheceu e regulamentou o uso pelo cirurgião-dentista da prática da ozonioterapia. No anexo da Resolução, o CFO elenca as áreas de aplicação da técnica em odontologia. Estão listadas as quatro com equipamentos de aplicação de ozônio já aprovados pela Anvisa (listada acima), acrescidas de outras duas ainda sem aprovação pela agência:

– Dor e disfunção de ATM: atividade antiálgica e antiinflamatória;

– Necroses dos maxilares: osteomielite, osteorradionecrose e necroses induzidas por medicamentos.

Em 2020, no Parecer Normativo nº 001/2020/COFEN, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) regulamentou a ozonioterapia como prática do enfermeiro. Em um trecho, o parecer determina que a técnica “somente seja aplicada através de equipamento de produção de ozônio medicinal devidamente certificado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”.

Determinação semelhante tem a Resolução nº 685, de 30 de janeiro de 2020, do Conselho Federal de Farmácia (CFF), que regulamenta a atribuição do farmacêutico na prática de ozonioterapia. No artigo 4º, em que são descritas as atribuições do profissional na prática da ozonioterapia, lê-se no inciso IX: “Utilizar equipamentos e materiais apropriados, devidamente registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”.

Relação com a pandemia

Após a Organização Mundial de Saúde (OMS) caracterizar o estado de contaminação pelo coronavírus como uma pandemia, o uso da ozonioterapia como tratamento complementar para a doença passou a ser discutido no Congresso Nacional. Em abril de 2020, mês seguinte ao anúncio da OMS, a deputada federal Paula Belmonte (Cidadania-DF) apresentou o Projeto de Lei 1.383, que permitia a prática como um tratamento complementar aos infectados pelo SARS-CoV-2.

De acordo com a autora da proposta, apesar de não existirem evidências científicas de que a ozonioterapia teria efetividade na prevenção ou tratamento da covid-19, seria uma forma de possibilitar que “a comunidade médica utilize o tratamento quando julgar necessário”.

Em julho do mesmo ano, o texto do PL foi alvo de debate pela Comissão Externa da Câmara dos Deputados sobre o tratamento da doença. Os defensores argumentaram que a prática poderia evitar o agravamento do quadro do paciente e reduzir o tempo de internação. Já aqueles que discordavam pontuaram a falta de evidências científicas sobre a eficácia do procedimento, manifestando a necessidade de estudos experimentais para a aplicação.

Em agosto, o prefeito de Itajaí (SC), Volnei Morastoni (MDB), anunciou em uma transmissão ao vivo que a cidade iria adotar a aplicação de ozônio por via retal como uma medida de tratamento contra a covid-19 em pacientes com confirmação de infecção pelo vírus e com sintomas. O município estaria incluído em um estudo da Associação Brasileira de Ozonioterapia para avaliar a efetividade do procedimento contra a doença. O projeto chegou a ser adiado, mas posteriormente retornou e, até janeiro de 2021, tinha atendido 81 voluntários na rede pública da cidade. No site da Aboz, no entanto, não há informações ou dados sobre a eficácia do tratamento, prometida para abril de 2021.

À época, o Comprova fez uma verificação sobre a declaração feita por Morastoni e concluiu que não existiam evidências científicas que comprovassem a relação entre a ozonioterapia e o tratamento da covid-19.

A Anvisa concluiu, em outubro de 2020, que a ação desinfetante do ozônio não tem efetividade contra o SARS-CoV-2. A agência também ressaltou o caráter perigoso da ação do gás em humanos, podendo gerar lesões na pele, nas vias respiratórias e nos olhos, além de reações alérgicas.

Por que explicamos: O Comprova Explica tem a função de esclarecer temas em discussão nas redes sociais e que são alvos de desinformação. Durante a pandemia da covid-19, conteúdos falsos defendendo a ozonioterapia como forma de tratamento para a doença foram explorados politicamente e disseminados no ambiente digital, gerando dúvidas sobre o procedimento. Assim, a apresentação das práticas em que o uso da ozonioterapia tem comprovação científica e é permitido pelas autoridades sanitárias busca levar compreensão sobre o tema à população em um contexto de desordem informacional.

Outras checagens sobre o tema: Durante a pandemia de covid-19, o Fato ou Fake, do G1, também investigou a prática da ozonioterapia no tratamento da doença e apresentou que não há evidências científicas de que a aplicação do ozônio mate o vírus.

Conteúdos sobre tratamentos e procedimentos médicos costumam ser alvos de desinformação e são verificados pelo Comprova. Recentemente, a iniciativa verificou que a OMS não admitiu que bebês de mães vacinadas estão nascendo com problemas no coração, que as vacinas não têm vírus e fungos ‘do câncer’ e que o Ministério da Saúde não proibiu vacinas contra a covid-19.

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Investigado por: 2023-08-09

Entenda as variantes que podem reduzir o valor do Bolsa Família

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O Programa Bolsa Família do governo federal costuma ser alvo de desinformação e, recentemente, um vídeo dizendo que o repasse de R$ 600 seria uma “mentira do presidente Lula” viralizou. Diferentemente do que sugere a postagem, o programa permanece com o valor mínimo de R$ 600. Ocorre que ele possui condicionantes que podem aumentar ou diminuir o valor do benefício, a exemplo do empréstimo consignado, algo que acarreta no débito automático da dívida, valor que pode chegar a 50% do repasse mensal. Além disso, as famílias que tiveram um aumento na renda per capita estabelecida para participar do Bolsa Família (R$ 218), mas ainda não têm renda por pessoa superior a R$ 660, entram na regra de proteção do programa, que prevê a permanência da assistência, mas com metade do valor, fixado em R$ 300.

Conteúdo analisado: Em um vídeo publicado no Kwai, uma mulher diz que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prometeu R$ 600 de Bolsa Família durante a campanha presidencial e afirma que “não é isso o que está acontecendo”. Segundo ela, que fez a gravação em frente a uma lotérica, isso teria gerado a revolta de pessoas que foram sacar o benefício e só receberam metade do valor prometido.

Comprova Explica: O Programa Bolsa Família é recorrentemente alvo de peças de desinformação nas redes sociais. Muitas delas afirmam que o governo federal cortou beneficiários aleatoriamente ou reduziu o valor de maneira deliberada.

O Bolsa Família permanece com o valor inicial de R$ 600, ao contrário do que sugerem algumas postagens virais. No entanto, o programa possui condicionantes, que podem aumentar ou diminuir o valor do benefício. Assim, para sanar dúvidas sobre o assunto, a seção Comprova Explica traz detalhes sobre os critérios do programa.

Como verificamos: Primeiramente, foi necessário identificar onde a gravação foi realizada. O vídeo fornece elementos que ajudam a identificar o local, como a filmagem da frente da lotérica e outros estabelecimentos ao redor. Assim, com uma busca no Google, o Comprova encontrou alguns resultados e pôde confirmar o local por meio de uma consulta no Street View. A lotérica fica em Fortaleza, capital do Ceará.

A captura de tela do vídeo analisado (à esquerda) permite identificar alguns elementos do local, como o número do estabelecimento

Por meio do Street View (à direita), recurso do Google Maps que oferece vistas panorâmicas, o local da gravação foi encontrado

Para encontrar informações sobre as regras do Bolsa Família, o Comprova pesquisou no Google pelos termos “bolsa família 2023” e “redução do bolsa família”, que resultou em explicações sobre os conceitos de “empréstimo consignado” e “regras de proteção”, os quais podem fazer com que o dinheiro recebido ao mês seja reduzido.

Por fim, o Comprova entrou em contato com a autora do vídeo pelo chat do Instagram e do Facebook, mas não houve retorno até o fechamento deste material.

Bolsa Família

O Programa Bolsa Família (PBF) foi criado em outubro de 2003, no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e tem como objetivo a transferência direta de renda para famílias em situação de pobreza e extrema pobreza em todo o país. Segundo o governo federal, em junho de 2023, o programa apoiou cerca de 18,5 milhões de famílias na pobreza absoluta.

Em 2021, no governo de Jair Bolsonaro (PL), o programa foi extinto e substituído pelo Auxílio Brasil. Entretanto, neste ano, na terceira gestão Lula, voltou a ser chamado de Bolsa Família.

Conforme informações disponíveis no site do governo federal, a nova estrutura do Bolsa Família prevê R$ 600 para cada família. A reestruturação do programa conta, ainda, com os seguintes benefícios adicionais:

  • benefício Primeira Infância (0 a 6 anos): R$ 150 por criança;
  • benefício Variável Familiar: R$ 50 para gestantes, crianças e adolescentes (7 a 18 anos).

Para receber o suporte financeiro mensalmente, os beneficiários assumem compromissos relacionados à saúde e à educação. A principal regra do governo para conceder o benefício em 2023 prevê que “a família tenha renda mensal de até R$ 218 por pessoa”. Os demais critérios que os beneficiários devem atender são:

  • acompanhamento pré-natal;
  • acompanhamento do calendário de vacinação;
  • acompanhamento do estado nutricional das crianças menores de 7 anos;
  • para as crianças de 4 a 5 anos, frequência escolar mínima de 60%;
  • para os beneficiários de 6 a 18 anos incompletos que não tenham concluído a educação básica, frequência escolar mínima de 75%;
  • ao matricular a criança na escola e ao vaciná-la no posto de saúde, é preciso informar que a família é beneficiária do Bolsa Família.

Regra de Proteção

Em nota, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) disse que não há como afirmar o que ocorreu com os beneficiários que aparecem na gravação analisada, uma vez que, para consultar a situação de cada um, é preciso dados como nome completo, Número de Identificação Social (NIS) e CPF. No entanto, a pasta afirmou que a Regra de Proteção pode ser uma das possibilidades que explicam o ocorrido.

Como já informado, para receber o Bolsa Família, cada integrante da família deve receber menos de R$ 218 por mês. Desde junho, no entanto, o governo começou a aplicar a Regra de Proteção, estabelecida pelo artigo 6º da Lei 14.601/23. A nova regra é válida para famílias que superaram o limite per capita de entrada no Bolsa Família (R$ 218), mas ainda permanecem com a renda abaixo de meio salário-mínimo (R$ 660). Assim, conforme as regras do programa, essas pessoas receberão metade do auxílio (R$ 300).

“A inclusão dessas famílias na Regra de Proteção se deu, principalmente, em razão da medida de integração da base do Cadastro Único para Programas Sociais com a base do Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS), que concentra registros administrativos referentes à renda, vínculos de emprego formal e benefícios previdenciários e assistenciais pagos pelo INSS”, explicou o MDS, em nota enviada ao Comprova.

De acordo com a pasta, esse cruzamento qualifica a base de dados que é utilizada para selecionar famílias e gerenciar os benefícios após a entrada no programa. Segundo o governo federal, a nova regra é “um reflexo das novas informações de renda das famílias beneficiárias, que tiveram melhora da sua condição financeira”.

Ao Comprova, o ministério informou que mais de 1,48 milhão de famílias foram incluídas na Regra de Proteção no mês de julho – o que afetou o valor médio do benefício. A pasta atesta que as famílias que não estão inclusas na nova regra continuam recebendo o valor de R$ 600.

Empréstimo consignado

Procurada pelo Comprova, a Fortuna Loterias, onde o vídeo viral foi gravado, disse que não houve revolta entre os clientes e que o pagamento foi realizado normalmente. Os valores reduzidos, de acordo com o estabelecimento, ocorreram em razão de descontos de empréstimo.

Em setembro de 2022, o governo federal autorizou o empréstimo consignado para os beneficiários do Auxílio Brasil. Nesse tipo de empréstimo, ficou especificado que as parcelas futuras seriam descontadas diretamente do valor do benefício. Em janeiro deste ano, contudo, a linha de crédito consignada foi suspensa para definição de novas regras.

Embora o governo já tenha divulgado as mudanças, a Caixa Econômica ainda não restabeleceu a disponibilidade de novos empréstimos. Os contratos já realizados, no entanto, seguem válidos e as prestações são descontadas mensalmente do benefício. As regras do empréstimo consignado também especificavam que, mesmo que a família deixasse de receber o auxílio, ela deveria arcar com os custos de débito do empréstimo realizado.

Este é mais um dos motivos que podem afetar o valor do benefício repassado a cada família beneficiária do Bolsa Família em 2023, reduzindo-o em até a metade do valor, sem considerar os juros, que podem ser de até 3,5% ao mês.

Por que explicamos: O Comprova Explica tem a função de esclarecer temas importantes para que a população compreenda assuntos em discussão nas redes sociais que podem gerar desinformação. Falar sobre as regras do Bolsa Família, bem como sobre as variantes que podem acarretar na redução do valor repassado mensalmente às famílias, é importante diante dos casos de desinformação em torno do tema. Como informado, os casos especificados neste material, em que há redução do benefício, são previstos pelas regras do programa.

Outras checagens sobre o tema: Peças de desinformação associadas ao governo Lula e ao Bolsa Família são frequentemente checadas pelo Comprova, como vídeo que mente ao afirmar que mães chefes de família teriam sido proibidas de receber Bolsa Família.

 

Comprova Explica

Investigado por: 2023-08-09

Entenda o caso de Maria da Penha, que originou lei de proteção a mulheres vítimas de violência no Brasil

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Maria da Penha foi vítima de uma tentativa de homicídio enquanto dormia, em maio de 1983, na cidade de Fortaleza (CE). Na época, o marido dela, Marco Antonio Heredia Viveros, que viria a ser condenado pelo crime, contou à polícia que ele e a esposa tinham sofrido um assalto na própria casa. A versão, contudo, caiu por terra ao longo da investigação, sendo rejeitada duas vezes pelo Tribunal do Júri.

Conteúdo analisado: Vídeos publicados nas redes sociais e no YouTube afirmam que Maria da Penha ficou paraplégica depois de ser baleada por criminosos durante um assalto em sua casa, em 1983, e não pelo então marido Marco Antonio Heredia Viveros. As publicações alegam que a Lei Maria da Penha foi fundamentada em cima de uma mentira, uma vez que Viveros teria sido incriminado pela esposa por ciúmes, após ela descobrir uma traição.

Comprova Explica: Em 2022, 18,6 milhões de mulheres brasileiras sofreram algum tipo de agressão, segundo dados divulgados este ano pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública – destas, 50.962 foram agredidas diariamente. Na maioria dos casos, os agressores foram ex-companheiros (31,3%) ou o parceiro atual (26,7%). Desde 7 de agosto de 2006, as mulheres no Brasil contam com uma lei de proteção contra a violência doméstica, a Lei Maria da Penha. Este ano, a lei completou 17 anos, e dúvidas sobre o caso que deu origem ao dispositivo legal voltaram a movimentar a internet.

Nas redes sociais, vídeos que somam mais de 700 mil visualizações afirmam que a Lei Maria da Penha foi fruto de uma farsa, já que a farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica após ser baleada pelo marido nas costas enquanto dormia em 1983, teria sido, segundo as versões falsas, alvo de assaltantes. O marido, o colombiano naturalizado brasileiro Marco Antonio Heredia Viveros, teria sido incriminado por ela por ciúmes, após descobrir uma traição.

Essa é, na verdade, a versão de Viveros. Os vídeos recentes não trazem nenhum elemento novo ao caso – apenas reciclam o que ele disse à polícia e à Justiça e que não foi aceito pelos tribunais do júri aos quais ele foi submetido nos dois julgamentos que o condenaram por tentativa de homicídio qualificado, em 1991 e em 1996. E não é a primeira vez que ela viraliza na web. Em junho de 2022, a partir de um trecho do programa +1Podcast, da Jovem Pan News, começaram a ganhar força nas redes sociais conteúdos com a falsa alegação de que Maria da Penha tinha sido baleada por assaltantes, e não pelo marido.

Diversas agências de checagem e veículos de comunicação já produziram materiais desmentindo essa tese: Aos Fatos, Fato ou Fake, Estadão, UOL. Na época, o Instituto Maria da Penha (IMP) divulgou uma nota repudiando a divulgação de informações falsas a respeito do caso de violência doméstica.

Superintendente e cofundadora do IMP, Conceição de Maria disse ao Comprova que, mais do que responsabilizar agressores, a Lei Maria da Penha “viabilizou um verdadeiro programa para o Estado brasileiro enfrentar e prevenir a violência doméstica e familiar contra as mulheres”. Segundo ela, as redes sociais são aliadas, mas infelizmente podem ser usadas “na contramão de boas causas, levando desinformação e deslegitimando o que de melhor conseguimos”.

Conceição declarou que “a violência doméstica e familiar tende a aumentar com a disseminação de discursos de ódio na internet” e acrescentou que “relativizar a violência é uma conduta frequentemente identificada em grupos que atuam tentando fragilizar e deslegitimar a luta das mulheres, o que deve ser combatido tanto pelas instituições quanto pela imprensa e toda a sociedade”.

Em nota, o Ministério Público do Ceará (MPCE) disse que a tese de que Maria da Penha ficou paraplégica após ser atingida por um tiro durante um assalto, e não como decorrência de agressão por tentativa de homicídio perpetrada pelo marido, foi uma estratégia da defesa de Viveros e foi rechaçada. “O processo ocorreu com toda a possibilidade de contraditório e ampla defesa, de ambas as partes. Mediante análise das provas, a Justiça determinou que o ex-marido de Maria da Penha cometeu dupla tentativa de homicídio contra a vítima”, diz a nota.

A defesa de Viveros foi procurada, mas não respondeu até a publicação deste texto.

Diante de tanta desinformação, a seção Comprova Explica decidiu trazer detalhes sobre o caso.

Como verificamos: Para explicar o caso, o Comprova solicitou à 1ª Vara do Júri de Fortaleza a íntegra dos autos do processo. São mais de 1,7 mil páginas, que incluem o inquérito policial, os laudos periciais, depoimentos de testemunhas, denúncia do Ministério Público, toda a fase de instrução do processo, as audiências e dois julgamentos pelo Tribunal do Júri (júri popular), além dos recursos da defesa e mandado de prisão.

Também foi acionado o MPCE, para saber se havia novidades em relação a versões sobre o caso, o Instituto Maria da Penha e o atual advogado de Viveros.

O que foi o caso de Maria da Penha?

Maria da Penha Maia Fernandes nasceu em Fortaleza, em 1º de fevereiro de 1945. Ela é farmacêutica bioquímica, autora do livro “Sobrevivi…posso contar” (1994) e fundadora do Instituto Maria da Penha.

Em 1974, quando cursava o mestrado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), Maria da Penha conheceu o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. À época, Viveros fazia pós-graduação em Economia na mesma instituição.

Eles começaram a namorar e, dois anos depois, em 1976, casaram-se. Após o nascimento da primeira filha e da conclusão do mestrado de Maria da Penha, os dois se mudaram para Fortaleza, onde nasceram as outras duas filhas do casal.

As agressões de Viveros contra a esposa, segundo o site do IMP, começaram quando o colombiano obteve a cidadania brasileira e se estabilizou profissional e economicamente no Brasil. “Agia sempre com intolerância, exaltava-se com facilidade e tinha comportamentos explosivos não só com a esposa, mas também com as próprias filhas”, diz a publicação.

Em maio de 1983, aos 38 anos, Maria da Penha foi vítima de uma tentativa de homicídio (à época, o feminicídio ainda não tinha sido tipificado) por parte de Viveros. Enquanto dormia, foi baleada com um tiro nas costas, que a deixou paraplégica devido a lesões irreversíveis na terceira e quarta vértebras torácicas, laceração na dura-máter e destruição de um terço da medula esquerda.

A denúncia do MPCE, que resultou na condenação de Viveros pelo crime, também aponta que ele tentou eletrocutá-la durante o banho meses depois do tiro, quando ela havia retornado para casa após quatro meses internada, em tratamento médico.

O homem declarou à polícia que o que aconteceu no primeiro caso foi uma tentativa de assalto, versão que não se sustenta a partir de depoimentos de vizinhos e das empregadas domésticas que trabalhavam na casa da família. Mesmo assim, a tese voltou a ser difundida recentemente.

A pedidos de jornalistas do Projeto Comprova, a 1ª Vara do Júri de Fortaleza, onde o crime foi julgado, concedeu acesso à íntegra dos autos do processo criminal a respeito da tentativa de homicídio que deixou Maria da Penha paraplégica. Com base no processo, o Comprova explica o que aconteceu desde o início da manhã de 29 de maio de 1983 até o fim de julho de 2023, quando a defesa de Viveros pediu que o caso fosse desarquivado.

O que aconteceu no início da manhã de 29 de maio de 1983?

Maria da Penha, então com 38 anos, foi baleada com um tiro de espingarda enquanto dormia em sua casa, na Rua Fausto Cabral, nº 116, no bairro Papicu, em Fortaleza. Na casa, além dela, viviam Viveros, então com 36 anos, as três filhas do casal – Viviane, 6 anos; Claudia Fernanda, 4; e Fabíola, 2. Também dormiam no imóvel duas empregadas domésticas, Francisca Olindina Salvador de Abreu e Rita Teles Sousa, em um quarto separado da casa por um portão de ferro, próximo à área de serviço. Além de Maria da Penha, Viveros foi baleado no ombro direito, o que foi atestado pelo exame de corpo de delito feito no dia 6 de junho de 1983, uma semana após o caso, e assinado pelos peritos médicos Marco Fábio Mota Soares e Manoel Paulo da Ponte Neto, do Instituto Médico Legal do Ceará (leia mais abaixo sobre a perícia).

Qual era a tese inicial da polícia?

A primeira tese investigada pela Polícia Civil do Ceará foi a mesma apresentada por Viveros, de que a casa da família tinha sido alvo de um arrombamento. Inicialmente, o delegado à época responsável pela Delegacia de Furtos e Roubos de Fortaleza, José Nival Freire da Silva, tratou tanto ele quanto Maria da Penha como vítimas de um assalto.

O delegado chegou a determinar, no dia seguinte ao crime, que, a partir daquela data, todos os suspeitos ou presos em flagrante por roubo encaminhados àquela delegacia fossem investigados acerca do “assalto à mão armada” na casa de número 116 na Rua Fausto Cabral, onde vivia o casal.

| Fotografia feita e anexada ao processo em 1996 mostra fachada da casa onde viviam Maria da Penha e Marco Antonio.

| Rua Fausto Cabral, bairro Papicu, em Fortaleza, onde aconteceu o crime. Foto feita e anexada ao processo em 1996.

O que Viveros disse em depoimento?

Viveros manteve versões bem parecidas da história em depoimentos à Polícia Civil e à Justiça, embora, no segundo depoimento à polícia, tenha ficado em dúvida sobre o número de tiros disparados. No primeiro, prestado ao delegado José Nival em 7 de junho de 1983, ele disse que, naquela madrugada, por volta das 5h15, estava dormindo em seu quarto junto com sua esposa quando “despertou por ouvir seu cachorro latir, tendo se levantado, ocasião em que ouviu também alguns ruídos no teto da casa”.

Ele acrescentou que esses barulhos eram normais, provocados por gatos, mas que “neste dia, após ouvir estes ruídos, parou um pouco e ficou prestando atenção o que seria aquele barulho”. Viveros então disse que resolveu levantar e pegar um revólver e uma lanterna que estavam perto de sua cama. De lá, foi aos quartos das filhas, onde ligou a lanterna e constatou que tudo estava normal. O próximo passo foi ir até a cozinha e a lavanderia para verificar se havia alguém na casa. Foi quando, segundo ele, a cachorra latiu novamente e ele percebeu uma sombra em uma abertura no teto que dava acesso ao forro da casa.

Viveros afirmou que apontou o revólver para a abertura do teto usando as duas mãos e que, neste momento, ouviu um disparo vindo do interior da casa – seria, em sua versão, o tiro que atingiu a esposa. Também afirmou que, “no momento preciso em que ia disparar a arma em direção ao citado buraco foi agredido de surpresa, pelas costas, sentindo que alguém colocara uma corda em seu pescoço”. À proporção em que essa pessoa apertava seu pescoço, ela tentava lhe tomar a arma com a outra mão e lhe dava porradas com o braço e com o joelho, jogando-o contra a parede.

| Trecho de depoimento de Marco Antonio Heredia Viveros à polícia em 7 de junho de 1983, retirado de autos do processo, cujo acesso foi autorizado pela 1ª Vara do Júri de Fortaleza.

Ainda conforme o relato de Marco Antonio, neste momento, um segundo assaltante tentou lhe tomar a arma, enquanto ele chutava e continuava tentando se livrar do outro oponente, sem conseguir atirar contra o homem caído por conta da posição em que estava durante a luta.

A ata do depoimento descreve o momento em que ele foi atingido: “A luta continuou, tendo o depoente, de repente, sentido que o segundo agressor tomava a arma de sua mão e apontava para sí (depoente), ocasião em que o depoente, de imediato, pegou na mão do segundo agressor, desviando a arma, momento em que ele disparou e atingiu depoente na altura do ombro direito”.

Ele contou à polícia que, após o tiro, ouviu a voz de uma mulher dentro da casa gritar: “Negão, vamos embora”. Os assaltantes, segundo Viveros, fugiram após ele ser baleado e perder os sentidos, levando 375 mil cruzeiros em espécie (aproximadamente R$ 136, em valores atuais) e seu revólver. Ele afirmou que só foi se recordar de alguma coisa no dia seguinte, no Hospital Geral de Fortaleza – embora tenha sido levado para outra unidade, o Instituto José Frota.

Viveros acrescentou que soube por intermédio das empregadas da casa e dos vizinhos que os assaltantes fugiram pela porta principal e pelo portão da garagem, já que os dois acessos foram encontrados abertos pelas trabalhadoras quando elas foram gritar por socorro. Por fim, contou que só soube que Maria da Penha tinha sido baleada no dia 1º de junho, pela equipe médica, e que a polícia contou apenas no quinto dia após o crime que ela tinha sido atingida por um tiro de escopeta (espingarda). Disse ainda que não sabia se ela tinha sido atingida na cama ou andando pela casa, já que ficou inconsciente após levar um tiro no ombro.

O que disse a perícia?

Uma equipe de perícia esteve no local do crime no dia 30 de maio de 1983, ocasião em que ainda se trabalhava com a tese de assalto. No entendimento dos peritos, os assaltantes teriam entrado na garagem da casa escalando um muro; usado, possivelmente, uma chave de fenda para arrombar o porta-malas do carro estacionado; retirado de dentro do veículo um macaco mecânico, do tipo sanfona; e, finalmente, posicionado a ferramenta entre as pérgolas do jardim de inverno, forçando-as na abertura, para conseguir acessar o interior da casa.

Os peritos atestaram que a porta principal da casa tinha características de arrombamento, bem como sinais de luta corporal na sala e no escritório. “No quarto do casal verificou-se sobre o colchão da cama mancha avermelhada que ficou evidenciado ser sangue, além de se constatar sinais de luta na referida dependência”, dizem os autos.

No terreno baldio ao lado da casa, os peritos encontraram um cartucho intacto, calibre 20, de fabricação nacional da C.B.C Cruzeiro e uma luva de tecido de algodão com manchas de óleo diesel, na cor bege clara.

O exame da arma de fogo usada no crime, uma espingarda, foi realizado em 9 de fevereiro de 1991 pelo diretor Francisco Antonio Mendonça Barbosa e pelos peritos Francisco de Assis Oliveira Filho e Ranvier Feitosa Aragão, no Instituto de Criminalística da Secretaria de Segurança Pública, em Fortaleza (CE). Até a conclusão do inquérito, em julho de 1984, a espingarda não havia sido apreendida pela polícia, e os autos do processo não deixam claro quando ou como a arma foi localizada.

Aos peritos, foi apresentada uma arma de fogo classificada como espingarda de pressão de calibre 4,5mm, modelo LL 300, número de série 90740, acabamento oxidado, com empunhadura e coronha de madeira, massa de mira fixa, capacidade para um só tiro, cano raiado com orientação dextrogira (que se volta para a direita). O estado de funcionamento da arma era bom e ela estava apta para realização de disparo.

Entre as observações feitas pelos peritos estava a de que seria impossível ao ser humano “distinguir os calibres nominais das armas (revólver calibre 38 e espingarda calibre 20) pelas intensidades dos sons característicos de suas cargas de propulsão, em qualquer circunstância”. Ou seja, os sons poderiam ser ouvidos, mas não distinguidos em seus calibres. Eles também não conseguiram precisar de que distância o tiro foi disparado.

Por fim, há os exames de corpo de delito feitos em Viveros e Maria da Penha. O dele foi feito no dia 6 de junho, e os peritos médicos Marco Fábio Mota Soares e Manoel Paulo da Ponte Neto confirmaram ferimento por arma de fogo na região do ombro direito. Eles apontaram que o tiro provocou “ofensa à integridade corporal ou à saúde do paciente”, mas negaram que o ferimento tivesse resultado em incapacidade para as ocupações habituais, em perigo de vida ou em debilidade, incapacidade ou deformidade permanente.

| Maria da Penha disse à polícia ter encontrado documentos pessoais seus em pasta no escritório do marido.

Não foi o mesmo para Maria da Penha. O primeiro exame de corpo de delito nela foi feito também em 6 de junho de 1983 pelas peritas médicas Alzira Guerra Saldanha e Maria Solange Nobre Sampaio, ainda no Hospital Geral de Fortaleza. Elas apontaram que a paciente tinha sido atingida com um tiro na região dorsal, que se encontrava paraplégica e se queixava de dores na região torácica. Confirmaram que o tiro provocou “ofensa à integridade corporal ou à saúde da paciente”, que havia resultado em incapacidade para as atividades habituais por mais de 30 dias, em perigo de vida e em debilidade permanente.

Sobre o tiro ter causado “incapacidade permanente para o trabalho, ou enfermidade incurável ou deformidade permanente”, disseram que era necessário aguardar um novo exame após a conclusão do tratamento, o que acabou confirmado pelo exame de sanidade feito em 10 de fevereiro de 1984 pelos peritos médicos Almir Gomes de Castro e Múcio Roberto Alves Pereira: eles constataram que Maria da Penha teria “paralisia irreversível de membros inferiores”.

O que Maria da Penha disse em seus depoimentos?

Após ser baleada nas costas enquanto dormia, Maria da Penha ficou internada por cerca de dois meses no Hospital Geral de Fortaleza e, depois, viajou a Brasília (DF), onde se submeteu a um tratamento até meados de outubro de 1983, de acordo com os autos do processo. Só em janeiro de 1984 é que ela foi ouvida pelo delegado responsável pelo inquérito, José Nival, da Furtos e Roubos.

No depoimento prestado no dia 10, ela disse que acordou por volta das 6h do dia 29 de maio de 1983 com um barulho de um tiro e que, primeiro, não percebeu que tinha sido atingida, mas que “passou a perder as forças e notou que alguma coisa parecida com sangue borbulhava em suas costas”. Em seguida, ela ouviu barulhos na casa, como se fosse uma luta corporal, e ouviu uma das filhas chorar. O barulho de um segundo disparo de arma de fogo foi percebido na sequência.

| Trecho do depoimento de Maria da Penha à polícia em 10 de janeiro de 1984.

Ela, então, chamou por Rita, uma das empregadas, e pediu a ela que ligasse para duas amigas, já que não queria assustar a mãe, mas soube, em seguida, que a linha telefônica estava cortada. Pediu, então, que a moça telefonasse da casa de um vizinho. Quem chegou primeiro para prestar socorro foi um casal de médicos que morava na rua, que a examinou e disse que o caso era muito grave.

Maria da Penha relatou à polícia que ficou sabendo no hospital que tinha sido atingida por um tiro de espingarda. Acrescentou que soube por uma das empregadas da casa que o marido tinha uma arma como aquela e que, 30 dias após o crime, a funcionária havia conferido se a arma estava no guarda-roupa em que ficava guardada, mas não estava.

No depoimento, ela afirmou que era casada com Viveros há cinco anos e que os dois tiveram três filhas, mas que “seu esposo toda vida foi uma pessoa muito grosseira e agressiva com todos de casa; que devido aos maus-tratos sofridos por parte de seu esposo a declarante diz que já estava resolvida a se separar dele” e que “no dia em que saiu de casa para morar com a mãe (após o crime), descobriu que o seu marido tinha uma amante chamada Auxiliadora, moradora de Natal (RN), com quem trocava cartas”.

| Trecho do depoimento de Maria da Penha à polícia em 10 de janeiro de 1984.

Por fim, ela disse ter estranhado que os assaltantes não tivessem roubado suas joias, que estavam expostas, nem usado o carro do marido na fuga, e disse não entender por que tinha sido baleada dormindo, já que não oferecia qualquer obstáculo à ação dos supostos criminosos.

Em que momento Viveros passou de vítima a suspeito do crime?

Entre janeiro e fevereiro de 1984, o delegado José Nival Freire da Silva ouviu as duas empregadas da casa: primeiro, Francisca, e depois Rita. As duas dormiam em um quarto isolado, separado da casa por um portão de ferro, perto da área de serviço. Ambas acordaram com os gritos de socorro vindos de Viveros, mas nenhuma das duas ouviu os tiros.

Os depoimentos das trabalhadoras foram fundamentais para o avanço da investigação porque elas contaram à polícia sobre a rotina da casa e o comportamento grosseiro de Viveros, tanto com a esposa quanto com as empregadas e as próprias filhas. Disseram que ele costumava aplicar castigos físicos às meninas, que, frequentemente, precisavam ser tratadas com pomadas, dada a força dos golpes.

Também afirmaram categoricamente que Viveros possuía uma espingarda – arma que ele não havia mencionado à polícia e que, depois, negou ter, tanto em um segundo depoimento quanto em duas acareações. Ainda assim, elas mantiveram seus depoimentos. Francisca disse ter visto a espingarda dentro de um guarda-roupa cerca de 30 dias antes do crime:

| Em depoimento à polícia, a empregada doméstica Francisca Olindina disse ter visto espingarda dentro de guarda-roupa quando limpava pares de sapato.

No depoimento prestado ao delegado em fevereiro, Rita confirmou a existência da espingarda e disse ter observado a arma sendo limpa por Viveros:

| Também em depoimento à polícia, a empregada Rita disse ter visto Marco Antonio limando uma espingarda.

Rita confirmou que o patrão “tratava mal” a esposa, as filhas e as empregadas e, assim como Francisca, confirmou que, após o suposto arrombamento, as joias de Maria da Penha e de Viveros, assim como as chaves do carro dele, estavam em locais de fácil acesso. Algumas, inclusive, estavam sobre o mesmo móvel em que o dinheiro levado pelos supostos assaltantes se localizava.

Três dias após o depoimento de Rita, em 9 de fevereiro de 1984, o delegado José Nival Freire da Silva deu sinais de que desconfiava de Viveros: enviou um ofício ao Departamento de Polícia Federal pedindo informações sobre os antecedentes dele, inclusive em seu país de origem, a Colômbia.

O delegado justificou o pedido dizendo que “a pessoa supra qualificada foi vítima de suposto assalto à mão armada juntamente com sua esposa Maria da Penha Maia Fernandes Heredia, resultando ferimentos leves no mesmo, enquanto que sua mulher encontra-se atualmente paraplégica, existindo indícios de que a ação delituosa (assalto) tenha sido simples simulação”.

| Em documento endereçado à PF, delegado fala pela primeira vez nos autos na possibilidade de “simulação”.

A Polícia Federal respondeu ao titular da Delegacia de Furtos e Roubos que nada constava em desfavor de Viveros. Já a Polícia Civil investigava o paradeiro de um carro dele, um Passat (veja mais detalhes abaixo).

Em junho de 1984 foi quando as coisas mudaram de vez. Uma operação de busca e apreensão na casa de Viveros levou policiais a um revólver da marca Taurus, em nome do novo suspeito. Mais tarde, a Justiça apontaria esta arma como a mesma que Viveros disse ter sido levada no dia do crime pelos supostos assaltantes. Em 28 de junho, ele foi interrogado novamente; desta vez, não mais como vítima, mas como suspeito do crime.

Alguém testemunhou o tiro contra Maria da Penha?

Não. Ela estava dormindo no momento do disparo e não viu o atirador, assim como as filhas crianças e as duas empregadas domésticas, que acordaram com os gritos de socorro do então marido. No entanto, os depoimentos de vizinhos ajudaram a apontar incongruências na história relatada por Viveros. Ele disse que acreditava que os supostos assaltantes tinham fugido pela porta da frente da casa e pela garagem, e que não achava que a fuga teria ocorrido pelos fundos por causa da presença da cachorra da família.

No entanto, nenhum dos vizinhos que saiu à rua após ouvir os tiros testemunhou alguém fugindo, tampouco as empregadas da casa. O primeiro vizinho a aparecer foi o engenheiro agrônomo José Osvaldo Araújo, que ouviu um dos disparos e chamou a polícia. Apesar de Marco Antonio ter dito que ficou insconsciente, o vizinho disse tê-lo visto sair de casa e ir andando até a viatura da polícia que o levou ao hospital.

Outro que não aparece entre as testemunhas, mas é citado em muitos depoimentos e no relatório final do inquérito policial, é o vigia José Nilson da Silva. Ele trabalhava em uma casa em construção em frente à residência do casal e afirmou que não viu ninguém sair da casa de Maria da Penha após os tiros.

| Trecho do relatório final do inquérito policial.

Francisco Brasileiro Marques de Sousa é outra testemunha de acusação. Os fundos da casa dele dão para os fundos da casa do casal, e ele contou à polícia que estava acordado quando ouviu os dois tiros, com um intervalo de dois a três minutos entre eles. Ele também ouviu os gritos de socorro e colocou um banco ao lado do muro de sua casa para olhar para o outro lado, mas não viu ninguém fugindo. Também disse que, no terreno baldio ao lado do imóvel, não tinha onde se esconder.

No relatório final do inquérito, o delegado destaca que esse intervalo entre um tiro e outro mencionado por Francisco era “tempo suficiente para o indiciado fingir uma suposta luta e se autolesionar”.

Também vizinho, Helio Teixeira Maia não estava no local no momento dos tiros, mas ouviu do vigia José Nilson que ninguém tinha saído do imovel. Contou que, dias depois, os vizinhos decidiram fazer uma reunião para contratar vigilantes noturnos e que Viveros foi à reunião sem demonstrar trauma, o que causou estranheza.

A última testemunha de acusação, Angelita Barreto Fernandes, também não presenciou o fato, mas era vizinha da mãe de Maria da Penha e, a pedido de uma irmã, foi até o hospital. Sem saber que Maria havia sido atingida, encontrou com Viveros aguardando para fazer um raio-x, usando uma pulseira dourada que havia permanecido em seu braço mesmo após a luta corporal narrada por ele. Marco Antonio lhe perguntou pela esposa e, em seguida, disse que estava “banido”, sem explicar o que significava. Angelita disse ter ouvido de uma irmã de Maria da Penha que Viveros tinha coberto o rosto com um lençol já no hospital e dito que havia sido “muito burro”.

Nenhuma das testemunhas de defesa do então marido presenciou o crime. Todas ouviram falar do caso pelos jornais ou por ele mesmo. Falaram sobre uma campanha para arrecadar dinheiro para que ele fosse a Brasília, onde Maria da Penha estava sendo tratada, e comentaram sobre a relação normal dele com a família.

O que disse Maria da Penha no segundo depoimento à polícia?

No segundo depoimento, de 3 de julho de 1984, após a polícia informar sobre novas linhas de investigação, Maria da Penha disse que, ao perceber que foi atingida, “logo teve o pressentimento de que seu esposo seria o autor o disparo”, e que ouviu barulhos pela casa seguidos de outro disparo, mas que, de onde ela estava, não era possível dizer se a luta acontecia mesmo ou não.

Ela relatou que, um mês após voltar do tratamento médico em Brasília, ela entrou na Justiça com um pedido de separação de corpos – uma medida que antecede o divórcio – motivada pelos maus-tratos dele, que não permitia que ela se relacionasse com os familiares ou que recebesse visitas de vizinhos. Na partilha, Viveros ficou com um carro modelo Chevette, já que havia dito que seu veículo, um Passat, tinha sido perdido em uma batida – mais tarde, a polícia descobriu que o carro tinha sido vendido. Ela também relatou que ele maltratava as filhas, que tentou pressioná-la a fazer um seguro de vida em que ele seria o beneficiário e citou um caso envolvendo um chuveiro.

Segundo Maria da Penha, o marido instalou um chuveiro elétrico para que ela tomasse banho em casa, já de volta a Fortaleza após tratamento na capital federal, mas o chuveiro dava choques e ela o questionou sobre isso. Ele teria dito que era porque faltava um fio-terra, mas que colocaria depois. Ela contou que não usou mais o chuveiro temendo ser eletrocutada e que este temor vinha dos maus-tratos que sofria, o que fez com que ela acreditasse que os choques eram propositais.

No depoimento durante a fase de instrução do processo, ela repetiu a versão. Afirmou que acordou com o barulho de um estampido e uma sensação de queimadura nas costas e que, imediatamente, pensou que o tiro tivesse partido do marido. Acrescentou que ficou imóvel, temendo um segundo disparo. Depois, pensou se não seria mesmo um assalto e se ela não estaria fazendo mau juízo dele. Mais uma vez, confirmou que ele se queixava dos familiares que a visitavam.

Viveros tinha uma amante? Isso influenciou no caso?

Tinha. Em alguns vídeos publicados nas últimas semanas, youtubers e influenciadores apontam que Maria da Penha teria sido mesmo baleada por um assaltante e que, somente após descobrir que o marido tinha uma amante, é que decidiu acusá-lo de tentativa de assassinato. Mas não foi bem assim. Pelos autos do processo, fica claro que o delegado do caso disse à Polícia Federal que suspeitava de Viveros após os depoimentos de Maria da Penha, das duas empregadas da casa e do laudo de sanidade da vítima, que apontava paralisia irreversível.

A existência da amante é mencionada pelo delegado, mas não recebe o mesmo destaque que as contradições sobre a presença de assaltantes – que ninguém viu fugir –, sobre Viveros ter uma espingarda e sobre a gravidade das lesões de Maria da Penha, sobretudo em comparação com as dele.

| Trecho do relatório final do delegado José Nival.

Além disso, a farmacêutica disse mais de uma vez que, à época do crime, já não mantinha relações sexuais com o marido há cerca de seis meses e que, quando descobriu sobre a amante, depois do tratamento em Brasilia, já havia se decidido a deixar a casa onde morava com o marido.

O caso foi evidenciado após Maria da Penha encontrar cartas de uma mulher chamada Auxiliadora, endereçadas ao então marido, em uma pasta no escritório dele, junto com comprovantes de AR (aviso de recebimento) de correspondências dele para Auxiliadora. À polícia, ele confirmou que se correspondia com a mulher e que, inicialmente, ela não sabia que ele era casado, e que só passaram a se envolver mais intimamente após a separação.

O que disse a Justiça? Restou alguma dúvida?

No dia 6 de julho de 1984, o delegado José Nival Freire da Silva concluiu o inquérito policial, indiciando Viveros pelo crime de tentativa de homicídio qualificado contra Maria da Penha. O inquérito foi enviado ao Ministério Público do Ceará, que, por sua vez, denunciou ele à Justiça em 28 de setembro de 1984.

Antes da primeira decisão da Justiça, a defesa de Viveros alegou que a denúncia e o próprio inquérito tinham “cunho meramente indiciário, com presunções, ilações, conjecturas”, sem qualquer testemunha que atestasse que o crime tivesse sido cometido por ele. Também alegou que o relatório da polícia não levava em conta a perícia feita no local do crime e, por isso, pedia que a denúncia fosse julgada improcedente.

Não foi o que entendeu a então juíza titular da 1ª Vara do Júri de Fortaleza, Maria Odele de Paula Pessoa. No dia 31 de outubro de 1986, ela decidiu aceitar a denúncia do Ministério Público e expedir uma sentença de pronúncia, o que significa que vira elementos suficientes para que o réu fosse julgado pelo Tribunal do Júri.

Sobre a argumentação de que a denúncia era baseada em indícios, a juíza disse que, nesses casos, é preciso provar se os indícios estão em harmonia ou desacordo com as demais provas do processo. Em seguida, listou fatos apontados na denúncia e no inquérito, como o réu ser dono de uma espingarda, mesmo que não tenha admitido; nenhuma testemunha ter visto pessoas estranhas fugindo da casa; o réu não viver em harmonia com a esposa, ter um comportamento grosseiro e ter uma amante; e um revólver ter sido encontrado na casa do réu, mesmo ele tendo dito que sua arma tinha sido levada pelos assaltantes.

Para Maria Odele, Viveros não esclareceu completamente os fatos relacionados ao crime e que o apontavam como responsável pela tentativa de homicídio, de modo que ele não podia, apenas negando a autoria, convencer que era inocente:

| Na sentença de pronúncia, a juíza Maria Odele disse que os indícios de autoria do crime eram veementes.

A defesa recorreu da sentença de pronúncia apenas em 1987. O desembargador que julgou o recurso, Carlos Facundo, considerou que a defesa demorou a fazer o pedido e o negou, apontando que, naquele caso, havia “uma verdadeira demora e descaso em se dar prosseguimento ao andamento regular do processo”.

O julgamento finalmente ocorreu, em 4 de maio de 1991, quando os sete jurados que formaram o Conselho de Sentença precisaram responder às seguintes perguntas:

  1. O réu Marco Antonio Heredia Viveros, no dia 29 de maio de 1983, por volta das 5h, no interior do imóvel de nº 116 da Rua Fausto Cabral, bairro Papicu, Fortaleza, munido de instrumento perfuro-contundente, produziu em Maria da Penha Maia Fernandes a lesão descrita no auto de exame de corpo de delito?
  2. O réu, assim agindo, deu início à execução de crime de homicídio que não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade?
  3. O réu cometeu o crime por motivo torpe?
  4. O réu usou de recurso que tornou impossível a defesa da vítima, isto é, efetuando o disparo contra a mesma enquanto ela dormia?
  5. Há atenuantes em favor do réu?

O que os jurados decidiram:

Ao primeiro quesito: Sim, por seis votos.

Ao segundo quesito: Sim, por seis votos.

Ao terceiro quesito: Sim, por cinco votos.

Ao quarto quesito: Sim, por sete votos. (O quesito foi repetido por contradição com a resposta ao primeiro quesito, já que um dos jurados negou a autoria do fato imputado ao réu).

Ao quarto quesito: Sim, por seis votos.

Ao quinto quesito: Não, por quatro votos.

Ou seja, o Tribunal do Júri reconheceu que Viveros foi o autor do disparo efetuado contra a vítima; que o réu, assim agindo, deu início à execução de crime de homicídio contra a vítima, o qual não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade; e que o crime de tentativa de homicídio fora praticado por motivo torpe e com uso de recurso que tornou impossível a defesa da vítima (incisos I, IV do Art.121, § 28, do Código Penal).

Com base na decisão do júri, a juíza Maria Odele de Paula Pessoa estipulou uma pena de 15 anos de reclusão, que foi reduzida para 10 anos porque, de acordo com o parágrafo único do artigo 14 do Código Penal Brasileiro, a pena é diminuída de um a dois terços quando o crime é tentado, mas não consumado.

Por que ele demorou a ser preso?

No dia do julgamento de 1991, a defesa de Viveros pediu que ele aguardasse em liberdade pelo julgamento da apelação da sentença, o que foi concedido pela juíza. Por isso, apesar de condenado a 10 anos de prisão, ele saiu do Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza, em liberdade.

Entre o recurso da defesa e um parecer do Tribunal de Justiça do Ceará foram mais quatro anos, incluindo a anulação do primeiro julgamento por falha na formulação das perguntas ao júri, até que a 2ª Câmara Criminal do TJCE decidiu por unanimidade, em abril de 1995, mandar que Marco Antonio fosse novamente julgado. Eles entenderam que não se podia negar que havia indícios de que o réu era o autor do crime e que esses indícios se aliavam às contradições dele próprio, ao fato de ter negado ter uma espingarda, aos depoimentos de vizinhos, que não viram ninguém fugindo, e ao fato de ele ter um péssimo relacionamento conjugal com a esposa, além de ter um caso extraconjugal.

O segundo Tribunal do Júri foi realizado em 14 de março de 1996. Desta vez, os sete jurados foram unânimes em apontar que Viveros tinha sido o autor do tiro contra Maria da Penha. A pena no segundo julgamento foi de 10 anos e seis meses de prisão, mas, novamente, ele saiu livre do tribunal após mais um recurso de apelação, desta vez, a uma instância superior.

A defesa de Viveros alegou que o julgamento tinha ido de encontro às provas dos autos e também questionou a pena estabelecida. Foi a vez do desembargador Francisco Gilson Viana Martins decidir que não haveria um novo julgamento, mas que a pena seria reduzida para oito anos e seis meses de reclusão, já que, ao calcular a punição, a Justiça contou duas vezes a qualificadora de homicídio qualificado, que soma dois anos à pena. Já era 22 de maio de 1998 e, dali a uma semana, o crime completaria 15 anos.

Naquele ano de 1998, Maria da Penha, o Centro para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) denunciaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA). Após receber quatro ofícios da CIDH/OEA, o Brasil foi responsabilizado, em 2001, por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras. Além disso, recebeu quatro recomendações:

  • dar uma resposta rápida e efetiva ao caso de Maria da Penha Fernandes, fazendo cumprir a condenação de seu agressor;
  • fazer “investigação séria, imparcial e exaustiva” a respeito das irregularidades e atrasos no caso;
  • assegurar à Maria da Penha uma reparação simbólica e material por não oferecer recurso rápido e efetivo, por manter o caso na impunidade por mais de 15 anos e por impedir com esse atraso a possibilidade indenização civil;
  • reformar as leis do país de forma a evitar a tolerância e o tratamento discriminatório à violência doméstica contra mulheres no Brasil.

| Notícia do jornal Folha de S. Paulo de 6 de maio de 2001 anexada ao processo pela assistente de acusação em setembro daquele ano.

O relatório 12.051 elaborado pela CIDH/OEA sobre o caso Maria da Penha está disponível para qualquer pessoa que quiser lê-lo.

A despeito da denúncia feita à CIDH/OEA, os advogados de Viveros recorreram novamente, desta vez ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 1999. Enquanto a apelação corria no STJ e o Brasil era responsabilizado internacionalmente pelo caso, o Ministério Público do Ceará pediu, em 2002, ao juiz da 1ª Vara do Júri de Fortaleza, que expedisse o mandado de prisão de Viveros, o que ocorreu em 2 de outubro daquele ano, 19 anos após o crime.

| Mandado de prisão de Marco Antonio Heredia Viveros, em 2002.

Viveros foi preso em 29 de outubro de 2002 em Natal. Em março de 2004, ele conseguiu ir para o regime semiaberto e, em fevereiro de 2007, conseguiu a liberdade condicional. Em março de 2016, o TJCE disponibilizou ao público uma cópia do processo no memorial do Tribunal. O espaço, contudo, passou por um incêndio em setembro de 2021. A cópia que se encontrava lá não foi atingida, mas, segundo o Tribunal, os autos foram digitalizados depois disso e o processo foi arquivado definitivamente.

Recentemente, Viveros concedeu entrevista a um canal no YouTube, em que repetiu sua versão para a história e, em junho de 2023, um de seus advogados pediu o desarquivamento dos autos “para instruir futura revisão criminal”, o que foi negado no dia 20 de julho pelo juiz Antônio Edilberto Oliveira Lima.

 

Como surgiu a Lei Maria da Penha e quais os efeitos dela?

Diante da falta de medidas legais e ações efetivas, como acesso à Justiça, à proteção e à garantia de direitos humanos a vítimas de violência doméstica, foi formado, em 2002, um Consórcio de ONGs Feministas para a elaboração de uma lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher.

O Projeto de Lei nº 4.559/2004 da Câmara dos Deputados chegou ao Senado Federal (Projeto de Lei da Câmara nº 37/2006) e foi aprovado por unanimidade em ambas as Casas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), então em seu primeiro mandato, sancionou a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, em 7 de agosto de 2006.

A lei, conforme o STJ, cumpre determinações estabelecidas pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, da OEA, aprovada em Belém em 1994 e promulgada pelo Brasil em 1996, por meio do Decreto 1.973.

Como uma das recomendações da CIDH foi reparar Maria da Penha tanto material quanto simbolicamente, o estado do Ceará pagou a ela uma indenização de R$ 60 mil, e o governo federal batizou a lei com o seu nome como reconhecimento de sua luta contra as violações dos direitos humanos das mulheres.

Em abril de 2023, Lula sancionou mudanças na Lei Maria da Penha com o objetivo de garantir que medidas protetivas de urgência sejam concedidas no momento em que a mulher fizer a denúncia a uma autoridade policial.

A lei prevê ainda que essas medidas protetivas de urgência sejam concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial e do registro de boletim de ocorrência. De acordo com o Painel de Monitoramento das Medidas Protetivas de Urgência da Lei Maria da Penha, atualizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), só em 2023 foram concedidas 216.985 medidas protetivas de urgência no Brasil.

Por que explicamos: O Comprova Explica esclarece temas importantes para que a população compreenda assuntos em discussão nas redes sociais que podem gerar desinformação. No caso Maria da Penha, a versão do homem condenado por tentativa de homicídio circula de forma isolada e está sendo tomada como verdade, sem que seja considerada a palavra da vítima, a investigação policial, do Ministério Público e dois julgamentos. O discurso compartilhado fora de contexto levanta suspeitas infundadas sobre a vítima e, como consequência, sobre a necessidade de políticas públicas de proteção a mulheres vítimas de violência doméstica no país.

Outras checagens sobre o tema: A alegação de que Maria da Penha teria sido baleada por assaltantes, e não pelo marido, já foi desmentida por diversas agências de checagem e veículos de comunicação, como Aos Fatos, Fato ou Fake, Estadão e UOL.

Anteriormente, na seção Comprova Explica, o projeto mostrou o que é o Real Digital e como irá funcionar a versão eletrônica da moeda brasileira e o que é a teoria da conspiração da Nova Ordem Mundial.

 

Política

Investigado por: 2023-08-07

Mães chefes de família não foram proibidas pelo governo de receber Bolsa Família

  • Falso
Falso
É falsa a alegação de que o ministro Wellington Dias, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), tenha anunciado mudanças no Bolsa Família ou no Cadastro Único no dia 2 de agosto. Apesar de processos de averiguação cadastral serem conduzidos pelo governo Lula, a assessoria de imprensa do MDS nega que mulheres consideradas chefes de família tenham sido cortadas do programa. Ao contrário, destaca o órgão, o governo estimula que elas se declarem desta maneira.

Conteúdo investigado: Em tom de urgência, em vídeo postado no Kwai, uma mulher afirma estar confirmado que “mãe chefe de família está proibido (sic)” no Bolsa Família. Uma legenda sobre o vídeo reforça essa alegação. Segundo ela, o anúncio foi feito às 12 horas do dia 2 de agosto pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS). Em seguida, a autora do conteúdo explica que o governo está passando um ‘pente fino’ para identificar casos irregulares no Cadastro Único.

Onde foi publicado: Kwai.

Conclusão do Comprova: O conteúdo do vídeo em que uma mulher afirma que há confirmação sobre a proibição do cadastro de mães chefes de família no Cadastro Único (CadÚnico) e Bolsa Família é falso. O ministro Wellington Dias, do MDS, não fez qualquer anúncio relacionado ao Bolsa Família ou ao CadÚnico em 2 de agosto.

A assessoria de imprensa do órgão negou ter havido qualquer alteração em relação ao pagamento do benefício às mulheres consideradas chefes de família. “Pelo contrário, o Cadastro Único estimula que as mulheres se declarem como chefes de família”, informou o ministério, em nota ao Comprova.

Desde que o programa foi relançado pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em março deste ano, a pasta conduz processos de averiguação cadastral que impactam na liberação dos benefícios de forma permanente. O objetivo é garantir que famílias que entrem nos critérios de atendimento sejam incluídas todo mês e aquelas que saiam dos critérios deixem o programa.

Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. O vídeo aqui verificado teve 29 mil visualizações, 2,4 mil curtidas, 136 comentários e 113 compartilhamentos no Kwai até o dia 7 de agosto.

Como verificamos: Primeiro buscamos via Google notícias sobre eventuais mudanças relacionadas ao Bolsa Família e ao Cadastro Único anunciadas em agosto. Em seguida, procuramos a assessoria de imprensa do MDS. Também foi procurada a agenda oficial de Wellington Dias, para encontrar eventos e declarações dadas pelo ministro na data de 2 de agosto, citada na publicação. Por fim, procuramos a autora do vídeo.

Quais foram as mudanças no Cadastro Único e no Bolsa Família?

De acordo com a nota enviada pelo MDS ao Comprova, não houve qualquer mudança sobre o status das mães como chefes de família no CadÚnico. O programa continua estimulando que as mulheres se declarem desta forma, conforme a pasta.

O que mudou, informou a assessoria de comunicação, é que foram instituídos novos documentos obrigatórios para o Responsável Familiar, como o de identificação com foto e o comprovante de endereço ou a declaração de residência, obrigatórios para todas as famílias. Já para as famílias constituídas por uma única pessoa, é preciso também apresentar um Termo de Responsabilidade em que a pessoa se responsabiliza pelas informações prestadas.

Sobre o ingresso no Programa Bolsa Família, o órgão explica que agora ele é avaliado mensalmente, utilizando as informações do CadÚnico para selecionar novas famílias elegíveis. Para tal, elas precisam estar com as informações no CadÚnico atualizadas há no máximo 2 anos; apresentar informações consistentes sobre a renda familiar (renda mensal por pessoa de até R$ 218); e apresentar informações consistentes no CadÚnico quanto à composição familiar, sem pendências cadastrais dos processos de averiguação.

Atualmente, o Programa Bolsa Família é composto pelos seguintes benefícios:

  • Benefício de Renda de Cidadania: assegura o recebimento de um valor de R$142 por pessoa da família;
  • Benefício Complementar: pago quando a configuração familiar resulte num valor abaixo de R$ 600. É transferido à família o equivalente até que se alcance esse patamar mínimo;
  • Benefício de Primeira Infância: destinado às crianças de 0 a 7 anos incompletos, transferindo às famílias o valor adicional de R$ 150 por cada criança nessa faixa etária na família. Assim, uma família com quatro crianças na primeira infância, por exemplo, receberá R$ 600;
  • Benefício Variável Familiar: adicional de R$ 50 pagos a crianças e adolescentes de 7 a 17 anos, e também a gestantes.

Ministro não anunciou mudanças recentemente

Na alegação, a autora do post diz que a “notícia” publicada por ela saiu no dia 2 de agosto de 2023, ao meio-dia. Ao fazer uma busca avançada no Google pelos termos “Wellington Dias”, “Bolsa Família”, “chefes de família” e “cadastro único”, com o intervalo de tempo definido para “última semana” (entre 28/07 e 04/08), não foi localizada nenhuma informação neste sentido.

Ao buscar pela agenda oficial do ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, citado no vídeo com suposta fala de “que vai ter sim uma vistoria”, não há registro de coletiva ou anúncio envolvendo o Bolsa Família ou o CadÚnico. Dentre os compromissos, está uma entrevista para o Jornal o Globo (publicada no dia 03/08), reuniões e a cerimônia de lançamento do Programa Povos da Pesca Artesanal.

Na entrevista, há duas citações sobre o cadastro de pessoas no Bolsa Família: uma sobre a atualização no cadastro desde o início do governo e outra sobre pessoas beneficiadas ilegalmente pelo Bolsa Família e pessoas fora do programa que deveriam estar incluídas.

Na cerimônia de abertura do programa de pesca artesanal, Dias assinou os documentos “Extrato Artesanal Abastecendo o País” e “Projeto Boa Maré”. Ele não deu declarações oficiais nesse evento.

O que diz o responsável pela publicação: O Comprova entrou em contato com a autora da publicação por mensagem pelo Kwai e pelo Instagram. Até a finalização dessa verificação, contudo, não obteve respostas.

O que podemos aprender com esta verificação: A autora do vídeo utiliza um tom alarmante quando afirma que está repassando uma “notícia atualizada, novinha” e uma “notícia bomba” para chamar a atenção dos usuários para a postagem que está compartilhando. Ela também não apresenta fontes para as afirmações que faz, como o suposto anúncio do MDS em 2 de agosto e a proibição das mães chefes de família no Bolsa Família. É importante estar atento a esses sinais como indícios da propagação de desinformação e utilizar canais oficiais para tirar as dúvidas sobre o assunto ou consultar a imprensa profissional.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: O Comprova já verificou outras alegações que envolviam o Bolsa Família, identificando, por exemplo, que uma fila de pacientes em unidade de saúde em Natal não tinham relação com o programa, que uma tabela sobre pagamento do benefício foi editada e retirada de contexto para favorecer Bolsonaro e que o Bolsa Família teria 13º, mas não aumento.

Política

Investigado por: 2023-08-05

O que é o Real Digital e como irá funcionar a versão eletrônica da moeda brasileira

  • Comprova Explica
Comprova Explica
Em agosto de 2020, o Banco Central organizou um grupo de trabalho para estudar a emissão de uma moeda digital brasileira, o chamado Real Digital. O projeto está nos trâmites para iniciar a fase de testes, com experimentação planejada até 2024, mas sem data de lançamento. O ativo é tema recorrente de vídeos que circulam nas redes sociais em canais financeiros que associam o termo ao mercado de criptomoedas e levantam a possibilidade do sequestro de recursos das contas bancárias. Este Comprova Explica esclarece o que é o Real Digital e como ele irá funcionar.

Conteúdo analisado: Postagem em uma rede social afirma que o Banco Central divulgou o código do Real Brasil e que o país terá uma criptomoeda. A publicação diz que o BC poderá “congelar os saldos das contas, aumentar ou diminuir essas contas, movê-las entre como quiserem e destruir dinheiro caso queiram”.

Comprova Explica: Dúvidas sobre o projeto do Banco Central (BC) sobre o Real Digital têm alimentado uma série de teorias na internet. Muitas delas dizem que essa seria uma nova “criptomoeda centralizada”, além de uma suposta tentativa do governo para “controlar” o dinheiro das pessoas e fazer movimentações nas contas sem autorização.

A moeda digital brasileira ainda está entrando na fase de testes e, segundo o BC, seguirá sob experimentação em 2024. Ainda não existe data para seu lançamento. Entretanto, especialistas do mercado financeiro e publicações do próprio banco dão materiais suficientes para esclarecer informações sobre a moeda e auxiliar o leitor na interpretação desses dados.

Atualização: No dia 7 de agosto de 2023, o Banco Central divulgou que a moeda digital brasileira se chamará “Drex”. “A solução, anteriormente referida por Real Digital, propiciará um ambiente seguro e regulado para a geração de novos negócios e o acesso mais democrático aos benefícios da digitalização da economia a cidadãos e empreendedores”, completou a autarquia em nota à imprensa.

Como verificamos: O Comprova consultou o site do próprio Banco Central, com foco na seção de perguntas e respostas sobre o Real Digital. Outras seções, sobre o bloqueio de contas e sobre o funcionamento do SISBAJUD também foram consultadas. A verificação também entrou em contato com a comunicação do Banco Central e consultou José Artur Ribeiro, CEO da Coinext, Denise Cinelli, Country Manager da CryptoMarket, e Antônio Carlos Bertucci, coordenador do curso de pós-graduação em Mercado de Capitais da PUC Minas.

O que é o Real Digital?

O Banco Central explica em seu site oficial que o Real Digital não é um criptoativo, como são o bitcoin e o ethereum. Na verdade, ele pertencerá a uma nova categoria, chamada CBDC (do inglês Central Bank Digital Currencies; a sigla pode ser traduzida para o português como “moedas digitais de banco central”).

Como o nome indica, uma CBDC é a versão digital da moeda soberana de um país, que só pode ser emitida por autoridades monetárias (os bancos centrais). A moeda será produzida e regulada pelo Banco Central seguindo as regras do Sistema Financeiro Nacional (SFN) e a política monetária brasileira. Um Real Digital irá equivaler a um real físico.

Ainda de acordo com a autarquia, bancos centrais de diferentes países já estão estudando aspectos operacionais e tecnológicos de um possível sistema de CBDC para suas próprias moedas. Aqui vale destacar que não há registro de planos para criação de uma moeda digital “universal”.

Cerca de nove países já lançaram suas CBDC e outros 71 países, incluindo o Brasil, já estão estudando a sua própria moeda digital. Alguns deles, como a Suécia, a China e a Coreia do Sul, estão em fase de execução dos projetos- piloto. Pelo que foi divulgado pelo BC até o momento, a ideia é que a CBDC brasileira seja uma alternativa ao uso de cédulas. A princípio, o Real Digital poderá ser convertido para qualquer outra forma de pagamento hoje disponível, como depósito bancário convencional ou real físico.

O Banco Central explicou também que uma das diretrizes para o desenvolvimento de um Real em formato digital é a “interoperabilidade”, ou seja, a comunicação entre o Real Digital e outros meios de pagamento hoje disponíveis à população.

Será possível, por exemplo, fazer pagamentos em lojas, através do prestador de serviço de pagamentos – banco, IP ou outra instituição que venha a ser autorizada pelo BC, ou mesmo através do Pix. Ainda conforme a instituição, as pessoas poderão também “transferir Reais Digitais para outras pessoas, transformar seus Reais Digitais que estarão em custódia de um banco em depósito bancário convencional, sacar seus Reais Digitais passando para o formato físico, pagar contas, boletos e impostos”. Na prática, o objetivo é que a população possa movimentar seus Reais Digitais da mesma forma que movimentaria os recursos hoje depositados nos bancos.

A autarquia esclarece que o uso do Real Digital pelas pessoas será opcional e que não há perspectiva de obrigatoriedade de seu uso. “Desta forma, nos pagamentos cotidianos as pessoas poderão optar pelos meios convencionais, uma vez que o real físico não deixará de existir”, explicam.

Atualmente, o BC está iniciando a fase de testes com o Real Digital. Em julho, já foi anunciada a colaboração de empresas como Caixa, Microsoft e Elo para a realização de simulações com a CBDC brasileira. De acordo com o E-investidor, a previsão é que, até meados de agosto, empresas, usuários e instituições selecionadas para participarem do projeto-piloto estejam prontos para se conectarem à plataforma de testes. A expectativa é que os primeiros ensaios com o Real Digital comecem só em setembro e continuem em 2024. Segundo o próprio Banco Central, os exercícios da fase piloto acontecerão em ambiente simulado, sem envolver transações ou valores reais.

O que são criptomoedas

Criptomoedas são ativos virtuais que utilizam criptografia para garantir a segurança das transações e controlar a criação de novas unidades. Elas são descentralizadas, ou seja, não são controladas por nenhum governo ou instituição financeira central. É o que explica o CEO da Coinext, José Artur Ribeiro.

Sua análise é que o Real Digital não pode ser considerado uma criptomoeda, por ser uma versão digital da moeda oficial do Brasil, o real, emitida e controlada pelo Banco Central. Diferentemente das criptomoedas, o Real Digital é centralizado.

Ele aponta que há semelhanças entre as duas moedas, como as duas serem digitais e utilizarem tecnologia blockchain para facilitar as transações financeiras, inclusive na utilização de contratos inteligentes para liquidação de transações. Elas, no entanto, apresentam divergências pelo Real Digital ser emitido por uma instituição estatal, assim como a moeda física em circulação.

O próprio Banco Central, por meio de nota, vídeos institucionais e informações alocados em seu site oficial, ressalta que o Real Digital não é uma criptomoeda e sim uma nova representação da moeda brasileira.

O mercado de criptomoedas começou a ganhar esboço com o lançamento da Bitcoin, datada de 2008. A moeda se baseia na chamada Prova de Trabalho, um tipo de algoritmo para gerar Bitcoin, processo que ganhou o nome de mineração.

Denise Cinelli, Country Manager da CryptoMarket, explica que o acesso de brasileiro às compras desse tipo de moeda só se popularizou entre 2011 e 2013: “Costumo dizer que as criptomoedas chegaram para o mundo tudo de uma vez só na verdade, porque a criptomoeda não tem divisa, elas chegaram na internet no momento em que foram lançadas, agora os brasileiros começaram a ter acesso a criptomoedas em 2013”.

O Marco Legal das Criptomoedas entrou em vigor no dia 20 de junho e o BC foi instituído como autoridade responsável por regular as atividades das prestadoras de serviços de ativos virtuais no Brasil. Será aberta uma consulta pública em que as empresas poderão dar sugestões (CNN, EBC).

A Lei 14.478/22 estabeleceu as condições e prazos para a adequação às novas regras por parte das prestadoras de serviços de ativos virtuais, as chamadas “corretoras de criptoativos”. Estas poderão prestar exclusivamente o serviço de ativos virtuais ou acumulá-lo com outras atividades, na forma da regulamentação a ser editada.

Entre as atribuições do órgão regulador estão: autorizar o funcionamento e a transferência de controle das corretoras; supervisionar o funcionamento delas; cancelar, de ofício ou a pedido, as autorizações; e fixar as hipóteses em que as atividades serão incluídas no mercado de câmbio ou deverão se submeter à regulamentação de capitais brasileiros no exterior e capitais estrangeiros no País.

Decisão judicial

Ainda não lançado, o projeto é desenvolvido pelo Banco Central, que não tem autonomia para bloquear ou alterar saldos bancários sem uma decisão judicial. Em contato com o Comprova, a instituição explicou que os serviços que serão construídos na plataforma deverão “cumprir todos os requisitos legais aplicáveis ao SFN, inclusive quanto aos aspectos de segurança e privacidade”.

“Os processos relatados no vídeo já ocorrem atualmente no Sistema Financeiro Nacional (SFN)”. Atualmente, o Banco Central comunica ao sistema as determinações do Poder Judiciário de bloqueio/desbloqueio de contas bancárias. O Banco Central afirmou que “poderá ser feita a mesma coisa no ambiente do Real Digital”.

“Nada de novo, portanto. A competência para emitir tais determinações é privativa do Poder Judiciário. Não há hipótese de o Banco Central bloquear/desbloquear ativos ou alterar saldos sem uma determinação da Justiça. Isso seria ilegal”.

Em sua página de perguntas e respostas, o Banco Central ressalta não ter poder para bloquear ou desbloquear contas diretamente. Por determinação judicial, o bloqueio pode ser feito pelo Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário (SISBAJUD). Nesses casos, o Poder Judiciário se comunica diretamente com as instituições financeiras com suas ordens judiciais.

A partir de setembro de 2020, o SISBAJUD sucedeu o Bacen Jud como o sistema de comunicação eletrônica entre o Poder Judiciário e instituições financeiras e demais entidades autorizadas a funcionar pelo BC.

A gestão do SISBAJUD é feita pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a quem compete os assuntos de administração técnica, operacionalização e serviços de suporte.

Antônio Carlos Bertucci, coordenador do curso de pós-graduação em Mercado de Capitais da PUC Minas, aponta que há legislações específicas que limitam o controle do Banco Central nas contas bancárias dos usuários. São elas:

  • O artigo 192 da Constituição Federal, que determina que o Banco Central do Brasil deve ser uma autarquia federal, com autonomia administrativa, patrimonial, financeira e de gestão de recursos humanos.
  • A Lei Complementar nº 101/2000, que estabelece normas para a responsabilidade na gestão fiscal, limitando o endividamento e os gastos públicos, o que, por consequência, limita o poder de controle do Banco Central sobre o dinheiro público.
  • A Lei Complementar nº 179/2021, que estabelece o novo marco legal do Banco Central, define limites para as competências e a atuação do órgão, garantindo a transparência e a prestação de contas.
  • A Lei Complementar nº 105/2001, que assegura o sigilo das informações financeiras dos clientes das instituições financeiras, exceto em casos previstos em lei, o que protege a privacidade dos dados bancários das pessoas.

“O Banco Central não tem como aumentar, diminuir ou congelar ativos das pessoas, como por exemplo contas bancárias, propriedades, investimentos, entre outros. São tratados pelo Poder Judiciário, que é responsável por interpretar e aplicar as leis e, quando necessário, resolver disputas legais entre as partes. Se houver preocupações sobre os ativos das pessoas relacionadas às ações do Banco Central, o Poder Judiciário poderá ser acionado”, explica o especialista.

“A Instituição não pode agir sem justificativa legal e há proteções para se evitar a destruição de ativos em qualquer intervenção”, explica Bertucci. “Essas medidas são tomadas com base na legislação e regulamentação vigentes, e normalmente são aplicadas apenas em situações de emergência”, completa.

Ele avalia que sim, será possível que haja um aumento no controle sobre o dinheiro das pessoas. Isso porque, por ser emitida pelo Banco Central, permite um maior monitoramento e rastreamento das transações financeiras. “Como todas as transações seriam realizadas por meio do Real Digital, o Banco Central teria acesso a informações detalhadas sobre as atividades financeiras das pessoas, como gastos, recebimentos e transferências”, diz.

Como irá seguir todas as regras aplicáveis ao real convencional, o Banco Central ressalta ter a prerrogativa de controlar a quantidade de moeda na economia, assim como na modalidade do valor físico. “Nesse processo é necessário que se crie moeda, nas situações de baixa liquidez do mercado, ou que se destrua moeda, nas situações de elevada liquidez”, afirma em nota.

Por que explicamos: O Comprova Explica esclarece temas importantes para que a população compreenda assuntos em discussão nas redes sociais que podem gerar desinformação. O Real Digital será uma versão da moeda oficial e tem a possibilidade de se popularizar, já que poderá ser usada no cotidiano para pagamentos, transferências e contratos de compra e venda. Por ainda estar em desenvolvimento, a moeda é alvo de boatos que podem gerar medo e incertezas.

Outras checagens sobre o tema: Em 2022, a Agência Lupa produziu conteúdo para explicar o que são criptomoedas e o Bitcoin, uma das versões mais antigas e populares da moeda. Foi mostrado que elas não têm vínculo com governos ou recursos naturais, que costumam garantir o valor das moedas tradicionais. A respeito da possibilidade do Banco Central norte-americano também criar uma versão digital para o dólar, o Estadão Verifica e o Boatos.org já esclareceram que o projeto não tem pretensão de substituir a moeda física.

Política

Investigado por: 2023-08-04

Cacique Raoni mora em Mato Grosso e não há evidências de que ele tenha imóvel em Paris

  • Enganoso
Enganoso
É enganoso o post que cita que o cacique Raoni tem um apartamento em Paris. A desinformação foi publicada como reação a críticas feitas por ele à política indigenista de Jair Bolsonaro (PL) e é disseminada desde o final de 2019, quando um vídeo sobre venda de ouro em Gana foi distorcido para acusar Raoni de negociar terras por meio de uma ONG para construir mansão. Um neto do cacique e integrante da Fundação Raoni disse que o indígena de mais de 90 anos vive em Mato Grosso. Não há evidências de que ele tenha imóvel em Paris. Atualmente, Raoni mora em uma aldeia e se desloca até imóvel alugado, em Peixoto de Azevedo (MT), quando necessita cumprir rotina médica para cuidar da saúde debilitada.

Conteúdo investigado: Mensagem de uma apoiadora de Jair Bolsonaro reagindo a críticas de Raoni à política ambiental do ex-presidente com a frase “Disse o índio militante que tem apartamento em Paris”.

Onde foi publicado: Na rede social X (antigo Twitter).

Conclusão do Comprova: É enganoso post que acusa o cacique Raoni de ser proprietário de apartamento em Paris. A publicação reage a uma notícia com críticas de Raoni à política indigenista de Jair Bolsonaro (PL) e reforça uma sequência de boatos sobre o assunto publicadas desde 2019 na internet.

O Comprova não conseguiu realizar buscas em órgãos franceses apenas com o nome de Raoni como proprietário de imóvel.

Questionado sobre a publicação, Beptuk Hokrit Metuktire, um dos netos do líder indígena, demonstrou indignação ao acessar o post. “Essa gente não tem noção, e não tem vergonha na cara sobre as mentiras que eles inventam”, reclamou.

Hokrit afirma que o avô mora em Mato Grosso, não tem imóvel na Europa nem nunca deu declaração sobre isso. Ele diz que, atualmente, a saúde de Raoni atravessa momentos ruins e que, por conta disso, necessita se deslocar da aldeia até o município de Peixoto de Azevedo. Nesta cidade, eles alugam imóvel para que o cacique se hospede e cumpra bateria de exames e tratamento.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 4 de agosto, a publicação tinha 73,2 mil visualizações, 3,7 mil curtidas e 543 compartilhamentos.

Como verificamos: Usamos o Google para checar reportagens publicadas sobre o assunto. Também pesquisamos sites nacionais e internacionais relacionados ao tema. Em redes sociais, buscamos parentes do líder indígena e conseguimos contato com um de seus netos.

Boato circula desde 2019

A alegação de que Raoni seria dono de um imóvel em Paris começou a ganhar força na internet em 2019. Vídeo de uma inspeção de compra de ouro em Gana passou a circular nas redes sociais como se mostrasse o líder indígena negociando terras da Amazônia por meio de ONGs da região. Alguns posts alegavam ainda que o objetivo seria a compra de uma mansão na capital francesa.

Na época, agências de checagem como Estadão Verifica e Lupa já mostravam que a suposta ligação de Raoni à filmagem em Gana era explorada em peças de desinformação.

O Les Observateurs, serviço de checagem do France 24, descobriu que um dos homens que aparece nas imagens é o advogado italiano René Verrecchia. Ao portal francês, Verrecchia afirmou que “tudo isso foi uma deturpação grosseira de uma inspeção executada durante uma venda de metal” em Acra, a capital de Gana, que acabou não recomendada aos potenciais compradores.

Os ataques contra o líder indígena foram feitos em meio a críticas disparadas pelo então presidente Jair Bolsonaro, que dizia a seus apoiadores que o representante kayapó teria sido “cooptado por chefes de Estado”. Raoni criticou em diversos momentos a política ambiental de Bolsonaro e havia encontrado, poucos dias antes, o presidente da França, Emmanuel Macron, em uma campanha contra o desmatamento.

Em 4 de junho deste ano, Raoni esteve mais uma vez na França e se encontrou novamente com Macron. Ele também concedeu uma entrevista, para o jornal O Globo, em que acusa Bolsonaro de incentivar o ódio contra os indígenas. Diante desse cenário é que o boato voltou a circular entre bolsonaristas.

Fato é que a própria entrevista de O Globo mencionada na publicação checada pelo Comprova mostra que Raoni Metuktire reside em uma aldeia no Mato Grosso. Um vídeo foi gravado na aldeia Piaraçu, localizada na Terra Indígena Capoto-Jarina, a quase mil quilômetros de Cuiabá — onde centenas de lideranças indígenas se reuniram em um “Chamado do Raoni” para fortalecer a luta indígena, como na posição contrária à tese do marco temporal de demarcação de terras.

A localização exata da aldeia aparece em um mapa produzido por jornalistas do G1.

Quem é o cacique Raoni

O cacique Kayapó Raoni tem o nome indígena Ropni Metyktire e não se sabe a data exata em que nasceu. O instituto com seu nome informa que provavelmente ele tenha nascido no início da década de 1930, em uma antiga aldeia Mebêngôkre (Kayapó) denominada Kraimopry-yaka, no nordeste do estado de Mato Grosso.

Ao longo da vida, ele foi protagonista de diversas lutas em favor dos povos indígenas e da Amazônia, passando a ser reconhecido internacionalmente como liderança e porta-voz da preservação do meio ambiente.

Desde jovem, sempre se envolveu em causas para defesa do seu povo. Por volta de 1954, ele conheceu os irmãos Villas-Boas – foi quando passou a ser o principal interlocutor entre os kayapós e o mundo.

O encontro com o cantor Sting em 1987 ampliou sua notoriedade internacional. O indígena também teve atuação na Assembleia Constituinte em 1987 e 1988, quando colaborou para a inclusão de direitos fundamentais dos povos indígenas na Constituição Federal de 1988.

Na década de 1990 e a partir do ano 2000, Raoni realizou inúmeras viagens pelo mundo e conquistou o apoio de importantes lideranças internacionais. Em 2019, início do governo Bolsonaro, Raoni voltou a pedir apoio pelos direitos dos povos indígenas e pela defesa da Amazônia. O cacique alertou o mundo sobre o crescimento do desmatamento e as ameaças do agronegócio, garimpos e madeireiras que exploram a floresta.

O que diz o responsável pela publicação: O Comprova não conseguiu contato com o responsável pela publicação. A conta no X não permite o envio de mensagens diretas e informa apenas o seu primeiro nome.

O que podemos aprender com esta verificação: Representantes indígenas e ambientalistas costumam ser alvos frequentes de desinformação, como forma de rebater suas críticas sobre a política de combate aos crimes ambientais e outros fatores que prejudicam os povos indígenas e seus territórios. O post, no entanto, faz uma acusação sem fornecer qualquer detalhe ou prova de que aquilo seja verdade. Nesse caso, o leitor deve se perguntar se aquela fonte de informação é confiável e pesquisar mais sobre o assunto. Uma simples pesquisa no Google seria suficiente para encontrar verificações jornalísticas de agências independentes desmentindo o boato.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: Em 2019, boatos semelhantes foram desmentidos por Estadão Verifica, Lupa e Boatos.org. Recentemente, o Comprova também apurou vídeo que enganava ao dizer que Lula vendeu Amazônia a mineradora em troca de dinheiro para o Fundo Amazônia. Também foi apurado conteúdo sobre retirada de produtores de arroz de terras indígenas que não ocorreu por determinação de Lula.

Contextualizando

Investigado por: 2023-08-03

Decreto com contingenciamento de recursos federais não determina corte de verbas

  • Contextualizando
Contextualizando
Está fora de contexto um post no TikTok que mostra imagem com uma relação de ministérios do governo federal e respectivos valores para cada pasta, com a informação de que se tratam de cortes. Os recursos foram bloqueados em julho no cumprimento do teto de gastos, o que, tecnicamente, é chamado de contingenciamento. Não é possível afirmar que são cortes, pois a medida ainda pode ser revertida, caso haja espaço abaixo do teto para o provimento dos recursos. Em outras palavras, o termo corte se refere a uma retirada definitiva das verbas, enquanto a ação foi um bloqueio, que pode ser temporário ou não.

Conteúdo investigado: Publicação apresenta uma lista do que seriam cortes realizados no orçamento federal, acompanhada da frase “Esses são os cortes no orçamento do desgoverno. Parabéns a todos que votaram nesse lixo de desgoverno”.

Onde foi publicado: TikTok.

Contextualizando: Uma publicação no TikTok lista ministérios do governo federal e recursos bloqueados, afirmando que trata-se de um corte no orçamento. O que a tabela mostra é o contingenciamento de recursos orçamentários, uma prática que se tornou comum desde a promulgação da emenda constitucional 95 de 2016, o chamado Teto de Gastos.

A cada bimestre, o governo federal publica um relatório em que se “projeta as receitas e despesas para o resto do ano e estabelece o cronograma de desembolso mensal, efetuando bloqueios ou desbloqueios, caso precise reajustar ou tenha margem para ampliar”, conforme explica Pedro Souza, analista da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal. Assim, no momento, não é possível dizer que as verbas foram cortadas.

A lista apresentada no conteúdo verificado corresponde com a realidade, de acordo com o decreto 11.621/2023, ao informar a verba contingenciada de cinco pastas do governo federal. Na publicação, foi utilizada uma cartela apresentada em uma reportagem do JP News, da Jovem Pan. A emissora destacou na reportagem que os ministérios da Saúde e da Educação foram os mais afetados pelo bloqueio – e não corte.

Porém, como a medida ainda pode ser modificada, não é possível dizer que foi feito um corte, como afirma o conteúdo investigado. O Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO) confirma que o bloqueio não é definitivo. “Ele pode ser revisto em algum bimestre seguinte, inclusive ser totalmente eliminado, caso despesas que estavam inicialmente previstas deixem de ocorrer, abrindo assim espaço dentro do teto de gastos”, informou a pasta.

Atualização: em uma primeira versão deste texto, citamos o nº 55 como sendo da emenda constitucional que estipulou o Teto de Gastos. Esse, na verdade é o número da PEC – Proposta de Emenda Constitucional que deu origem à emenda constitucional (EC) 95.

Como o post pode ser interpretado fora do contexto original: A utilização do termo corte se refere a uma ação definitiva, ou seja, em que os recursos federais não poderiam ser empenhados futuramente. No caso, para o cumprimento do teto de gastos, é feito um remanejamento das verbas, com o bloqueio do que constava primeiramente no planejamento do orçamento federal, mas que pode ser liberado posteriormente, em caso de melhora na arrecadação ou na redução do gasto público. Fora deste contexto, a publicação sugere que essa verba foi perdida em definitivo.

O que diz o responsável pela publicação: O Comprova entrou em contato com o perfil @assimnaoda51 pelo TikTok, mas não obteve respostas. Também buscou correspondência pelo perfil em outras redes sociais, mas não encontrou resultados.

Contingenciamento de despesas

A lista apresentada conta com os cinco ministérios que mais foram afetados pelo contingenciamento de despesas presente no decreto 11.621, publicado em edição extra do Diário Oficial da União na sexta-feira (28). O bloqueio foi direcionado para as despesas discricionárias de dez pastas.

Despesas discricionárias são gastos não obrigatórios, a serem realizados pelo governo dependendo da disponibilidade de recursos. Esse tipo de despesa está relacionado, por exemplo, a investimentos e gastos cotidianos de manutenção. Ao todo, R$ 1,5 bilhão foi bloqueado dos seguintes ministérios:

• Saúde: R$ 452 milhões;

• Educação: R$ 333 milhões;

• Transportes: R$ 217 milhões;

• Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome: R$ 144 milhões;

• Cidades: R$ 144 milhões;

• Meio Ambiente: R$ 97,5 milhões;

• Integração e Desenvolvimento Regional: R$ 60 milhões;

• Defesa: R$ 35 milhões;

• Cultura: R$ 27 milhões;

• Desenvolvimento Agrário: R$ 24 milhões.

O contingenciamento de despesas discricionárias é uma prática comum para adequar o orçamento federal ao teto de gastos, regra aprovada pelo Congresso em 2016, durante a gestão do então presidente Michel Temer, que procura evitar o descontrole das contas públicas. Ao aprovar o orçamento anual, o limite para as despesas primárias (obrigatórias e discricionárias) são delimitadas.

Ao final de cada bimestre, como determinado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), se for identificado que a receita delimitada no orçamento federal para o pagamento de despesas obrigatórias não será suficiente, é necessária a “limitação de empenho e movimentação financeira” do orçamento de despesas primárias. A análise é feita, atualmente, por meio do Relatório Bimestral de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias, responsabilidade da Secretaria de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento e Orçamento, em conjunto com a Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda (STN/MF).

De acordo com a assessoria do MPO, esse relatório avalia como está o desempenho das receitas e despesas até aquele momento. “Elas [as secretarias] também projetam as receitas e despesas primárias para todo o ano, com base em um conjunto de informações recebidas dos ministérios e na grade de parâmetros macroeconômicos produzida pela Secretaria de Política Econômica do MF”, explicou o MP.

Outros dois relatórios já foram divulgados pelo MPO em 2023. Em março, a análise concluiu que não era necessário o contingenciamento de recursos. Nessa estimativa, o valor das despesas diminuíram, o que geraria um espaço no limite orçamentário. Já em maio, a projeção foi revisada e indicou a necessidade de bloquear R$ 1,7 bilhão de reais de despesas discricionárias de seis ministérios (Fazenda, Transportes, Planejamento e Orçamento, Integração e Desenvolvimento Social, Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, e Cidades).

Com o contingenciamento de julho, totaliza-se R$ 3,2 bilhões de despesas bloqueadas para o cumprimento do Teto de Gastos.

Medida pode ser revertida

Segundo o MPO, o decreto 11.621/2023 “trata-se de bloqueio e não de um corte, e é temporário, pois poderá ser revisto tão logo apareça espaço abaixo do teto para acomodar as despesas”. Ou seja, é uma medida que pode ser revista no caso de haver sobra no orçamento nos meses seguintes, caso não, o bloqueio das verbas é permanente e pode inclusive ter volume maior no trimestre seguinte.

O analista da IFI, do Senado Federal, Pedro Souza, explica que a diferença entre o contingenciamento e o corte é temporal. “Neste caso, o contingenciamento é um bloqueio de dotações, que impede que o governo possa empenhar esse montante de despesas. Se não houver reversão futura, pode-se dizer que houve sim um corte”, afirma. Ou seja, no momento, não é possível afirmar, como faz a publicação aqui verificada, que os recursos foram cortados.

O economista Gil Castello Branco, fundador e secretário-geral da entidade Contas Abertas, afirma que o decreto significa “um bloqueio que poderá ou não ser revertido quando de novas avaliações de receitas e despesas”. Consultor de orçamento e pesquisador da FGV Direito Rio, Dayson Almeida, esclarece que o cancelamento de despesas, chamado popularmente de corte, “é uma redução definitiva da dotação de determinada ação orçamentária para o exercício, e ocorre para dar lugar a outra despesa, mediante créditos adicionais”.

Sendo assim, Almeida resume que no corte o recurso é excluído do orçamento, enquanto que no contingenciamento, a despesa é bloqueada temporariamente, podendo ser desbloqueada posteriormente. “Vale lembrar que, não ocorrendo o desbloqueio até o final do exercício, o efeito prático é o mesmo de um corte”, diz.

Bloqueio não indica irregularidade

Dayson Almeida, pesquisador da FGV Direito Rio, afirma que o bloqueio não tem relação com uso regular dos recursos. Trata-se, no entanto, de um cumprimento às disposições da LRF e da Lei das Diretrizes Orçamentárias (LDO).

“Se verificado, ao final de um bimestre, que as receitas e despesas projetadas poderão não comportar o cumprimento das metas de resultado primário fixadas na LDO (por exemplo, em razão de frustração de receitas ou aumento não previsto de despesas), os Poderes devem promover limitação de empenho e movimentação financeira (contingenciamento), segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias”, diz Almeida.

O analista Pedro Souza afirma que as razões para os bloqueios são diversas. “Desde frustrações de expectativas de arrecadação, bem como fatores não previstos (ou não formalizados legalmente) ou que tiveram seu impacto subestimado pelo governo nas despesas.” Castello Branco esclarece que a análise do orçamento feita a cada bimestre gerou, conforme o decreto de julho, a necessidade de limitação de despesas do Poder Executivo.

“Descumprir o teto de gastos enseja crime de responsabilidade, que pode, inclusive, suscitar o impeachment do presidente da República”, diz. Segundo ele, o bloqueio “decorre da defasagem entre as previsões de receitas e despesas e as novas estimativas baseadas em valores efetivamente realizados”.

No ano passado, ainda na gestão Jair Bolsonaro (PL), o último relatório sobre os gastos federais foi publicado em novembro, com o bloqueio de R$ 5,7 bilhões, somando um total de R$ 15,4 bilhões contingenciados ao longo do ano. Na ocasião, as áreas de saúde e educação também foram as mais atingidas, sendo R$ 1,396 bilhão e R$ 1,435 bilhão, respectivamente.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até 3 de agosto, a publicação tinha 276,4 mil visualizações, 15,3 mil curtidas e 13,8 mil compartilhamentos.

Como verificamos: Ao observar a lista de ministérios e valores exibida no vídeo, o Comprova identificou que, pela tipografia e as cores utilizadas (vermelho e preto), a imagem poderia ser de algum telejornal da Jovem Pan. Ao pesquisar no Google pelas palavras-chave “Jovem Pan”, “orçamento” e “cortes”, foi encontrada uma reportagem da JP News, de 29 de julho de 2023, em que a mesma lista exibida no TikTok é apresentada.

Em um segundo momento, foram buscados no Google os termos “cortes no orçamento 2023”, que levou a uma matéria da Agência Brasil. Esta reportagem levou à edição extra do Diário Oficial da União, publicação em que está contida o decreto nº 11.621, de 28 de julho de 2023, em que os ministérios e os valores bloqueados estão delimitados.

O Comprova também entrou em contato com a assessoria de imprensa do Ministério do Planejamento e Orçamento, com o economista Gil Castello Branco, fundador e secretário-geral da entidade Contas Abertas, com o analista Pedro Souza, da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal, e com Dayson Almeida, consultor de orçamento e pesquisador da FGV Direito Rio. Por fim, tentou entrar em contato com o autor da publicação.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: No dia 2 de agosto, o coletivo Bereia publicou uma verificação sobre o contingenciamento de despesas do orçamento federal a partir de uma publicação do deputado federal Hélio Lopes (PL-RJ).

Conteúdos sobre a economia brasileira são frequentemente checados pelo Comprova. Recentemente, a iniciativa constatou que Lula não anunciou confisco da poupança dos brasileiros e explicou porque não se deve analisar a taxa Selic a partir de valores médios em cada governo.

Política

Investigado por: 2023-08-01

Post faz falsa equivalência entre decisões de Moraes para sugerir preferência por Lula

  • Enganoso
Enganoso
É enganosa a montagem que usa duas manchetes da CNN Brasil para levantar suspeitas sobre prazos distintos fixados pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes em decisões envolvendo os governos Lula (PT) e Bolsonaro (PL). Os objetos das decisões são diferentes e, portanto, não cabe comparação entre elas. O prazo de cinco dias estabelecido em 2022 era para que o governo federal se manifestasse sobre as condições oferecidas à população de rua. Já a liminar deste ano, que fixa prazo de 120 dias, prevê que o Executivo formule um plano de ação para a implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua.

Conteúdo investigado: Publicação nas redes sociais com montagem de duas manchetes do portal CNN Brasil. A primeira, de junho de 2022, afirma que “Moraes dá 5 dias para Bolsonaro e governantes se manifestarem sobre população de rua”, enquanto a segunda, de julho de 2023, diz que “Moraes dá 120 dias para governo federal fazer diagnóstico da população em situação de rua”. O post é acompanhado por um emoji de um rosto pensativo.

Onde foi publicado: Twitter e Telegram.

Conclusão do Comprova: É enganoso post que compara decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e levanta dúvidas sobre a diferença de prazos determinados pelo magistrado. A publicação faz uma montagem com duas manchetes da CNN Brasil. A primeira diz que Moraes deu cinco dias para Jair Bolsonaro (PL) e governantes se manifestarem sobre população de rua, enquanto a segunda cita que ministro deu 120 dias para o governo, já sob o comando de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), fazer um diagnóstico da população em situação de rua. O tuíte acrescenta um emoji pensativo à legenda.

O despacho e a liminar em questão são de junho de 2022 e julho de 2023, respectivamente. Ao Comprova, o STF procurou diferenciar as decisões. Afirmou que, no caso de 2022, “trata-se de abertura de prazo para manifestação (que é previsto em lei)”, já no mais recente “trata-se de uma determinação para adoção de previdências”.

Ambas as decisões foram tomadas dentro da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, da qual Moraes é relator, proposta em 22 de maio de 2022 pelos partidos Rede Sustentabilidade, Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Na ação, as siglas e o movimento buscam garantir a adoção de providências em relação às condições desumanas de vida da população em situação de rua no Brasil.

Em 2022, o ministro solicitou informações sobre o atendimento à população de rua ao presidente da República, à época Bolsonaro, aos governadores e aos prefeitos das capitais de cada estado. Todas as partes tinham cinco dias para enviar manifestação.

Já em julho deste ano, Moraes fez uma série de exigências à União, estados e municípios, que vão além de uma manifestação sobre o assunto. Ao poder Executivo federal, Moraes determina que, no prazo de 120 dias, seja formulado o Plano de Ação e Monitoramento para a efetiva implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua.

Diversos usuários comentaram na publicação investigada com questionamentos e críticas à suposta diferença de tratamento dada pelo ministro aos presidentes.

A pedido do Comprova, o professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e doutor em Direito Processual Penal Aury Lopes Júnior analisou as decisões. Ele classificou o conteúdo verificado como uma “distorção” de situações diferentes “para que, aparentemente, tenham uma equivalência, quando na verdade não têm”.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 1º de agosto, a publicação somava 7,8 mil visualizações no Telegram. No Twitter, antes de ser excluído, o post alcançou 41 mil visualizações e 2,2 mil curtidas até 28 de julho.

Como verificamos: O primeiro passo foi conferir as duas reportagens da CNN Brasil citadas pela peça de desinformação (1 e 2). Depois, com a informação de que ambas as decisões de Moraes foram tomadas no âmbito da ADPF 976, o Comprova consultou a jurisprudência e entrou em contato com o STF e com o autor da publicação. Por fim, conversou com o doutor em Direito Processual Penal e professor de Direito da PUCRS Aury Lopes Júnior.

As decisões de 2022 e 2023

As decisões de Moraes foram tomadas no âmbito da ADPF 976, que trata sobre a adoção de providências em relação às condições desumanas de vida da população em situação de rua no país.

No despacho assinado por Moraes em 25 de maio de 2022 e publicado no dia 1º do mês seguinte, o ministro cita que “diante da relevância da matéria constitucional suscitada, mostra-se adequada a adoção do rito do art. 5º, § 2º, da Lei 9.882/99, para que as autoridades responsáveis pelo ato possam se pronunciar”. É com base nesse parágrafo da lei, que o prazo de cinco dias é fixado.

Assim, foram solicitadas informações sobre o atendimento à população de rua ao presidente da República, à época Bolsonaro, aos governadores e aos prefeitos das capitais de cada estado. Todas as partes tinham cinco dias para enviar manifestação.

Já na decisão liminar de julho deste ano, o ministro relator da ADPF faz uma série de exigências à União, estados e municípios, que vão além de uma manifestação sobre o assunto. Ao poder Executivo federal, Moraes determina que, no prazo de 120 dias, seja formulado o Plano de Ação e Monitoramento para a efetiva implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua. Esse documento deve contemplar, no mínimo, 15 tópicos, resumidos abaixo:

  • A elaboração de um diagnóstico atual da população em situação de rua;
  • a criação de instrumentos de diagnóstico permanente dessa população;
  • o desenvolvimento de mecanismos para mapear a população em situação de rua no censo do IBGE;
  • o estabelecimento de meios de fiscalização de processos de despejo e de reintegração de posse;
  • a elaboração de diretrizes para a intervenção do Poder Público, pautadas no tratamento humanizado e não violento da população em situação de rua;
  • a elaboração de programas de capacitação de agentes públicos para atuarem junto à população em situação de rua;
  • a incorporação das demandas da população em situação de rua na Política Nacional de Habitação;
  • a análise de programas de transferência de renda e sua capilaridade em relação à essa população;
  • a previsão de um canal direto de denúncias contra violência;
  • a elaboração de medidas para garantir padrões mínimos de qualidade nos centros de acolhimento;
  • o desenvolvimento de programas de prevenção de suicídio;
  • a elaboração de programas educacionais e de conscientização pública sobre a aporofobia e sobre a população em situação de rua;
  • a formulação de políticas para fomentar a saída da rua através de programas de emprego e de formação para o mercado de trabalho;
  • a elaboração de medidas para o fortalecimento de políticas públicas voltadas à moradia, trabalho, renda, educação e cultura de pessoas em situação de rua;
  • a indicação de possíveis incentivos fiscais para a contratação de trabalhadores em situação de rua.

A decisão do relator que fixa os 120 dias para a elaboração do plano ainda é provisória. A partir de 11 de agosto, deve ser analisada pelo plenário do STF. No julgamento, os ministros vão decidir se confirmam ou não o entendimento de Moraes.

A Política Nacional para a População em Situação de Rua foi instituída pelo Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009, e apresenta uma série de medidas para preservar a saúde e a vida das pessoas em situação de rua. À CNN, Moraes afirmou que somente cinco estados e 15 municípios aderiram à política nacional. “Portanto, em 12 anos, a política ainda não conta com a adesão da grande maioria dos entes federativos descentralizados”, declarou o magistrado.

Falsa equivalência

Ao Comprova, o professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e doutor em Direito Processual Penal Aury Lopes Júnior explicou que os objetos de cada decisão são completamente distintos. “Aqui [na decisão mais recente] é infinitamente mais complexo, já é uma decisão determinando que se elabore um plano, que se aponte qual é o diagnóstico, quais são os órgãos”, detalha.

“Lá atrás, era só uma informação. É simplesmente o seguinte: entraram com uma ação, me digam, vocês, se isso que eles estão falando aqui tem algum fundamento. Cinco dias até pela urgência, o que é normal.”

Para o professor, o que se tenta fazer, no caso do post verificado, é uma falsa equivalência, ou seja, comparar uma situação com outra sem que exista uma correlação. “Existe uma imensa distorção maldosa de situações diferentes para que, aparentemente, tenham uma equivalência, quando na verdade não tem essa igualdade de situações.”

O que diz o responsável pela publicação: O Comprova procurou o perfil @mspbra por e-mail e mensagens no Twitter e Facebook, mas não houve retorno até a publicação desta checagem. Conteúdos publicados pelo perfil já foram alvo de checagem do Comprova em outras ocasiões, como quando o projeto mostrou ser falso que Lula tenha reconduzido Nestor Cerveró a cargo na Petrobras e que fila de pacientes em unidade de saúde em Natal não tem relação com o Bolsa Família.

O que podemos aprender com esta verificação: Muitas vezes, desinformadores utilizam informações técnicas e restritas a uma área específica, como a jurídica, para tentar confundir o público. Nesses casos, procure entender qual o contexto da situação apresentada e qual a opinião de especialistas sobre o assunto. Em casos como o desta verificação, que utiliza manchetes de matérias jornalísticas, é possível fazer uma pesquisa pelas reportagens para ler a notícia completa.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: Os ministros do STF, assim como decisões do órgão, são alvos frequentes de peças de desinformação. O Comprova mostrou recentemente, por exemplo, que vídeo de Randolfe Rodrigues pedindo impeachment de ministros do STF é de 2019 e que não há evidências de que denúncia contra desembargador mineiro e grampo envolvendo Moraes tenham beneficiado Lula.

Política

Investigado por: 2023-07-31

Brasil se comprometeu a diminuir a emissão de gás metano e não a reduzir produção agropecuária, como afirma post

  • Enganoso
Enganoso
Tuíte de deputado engana ao afirmar que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) concordou em assinar documento que compromete o Brasil a cortar sua produção agropecuária nos próximos anos. A declaração citada na publicação é sobre a redução de emissões de gás metano e não sobre redução de produção. Além disso, o compromisso foi firmado durante a COP26, em novembro de 2021, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).

Conteúdo investigado: Tuíte em que o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) afirma: “Representantes do governo Lula concordaram em assinar um documento que compromete o país a cortar sua produção agropecuária nos próximos anos”. No post, há link para um texto intitulado “Globalistas convencem Brasil a reduzir produção de carne para combater aquecimento”.

Onde foi publicado: Twitter.

Conclusão do Comprova: É enganoso tuíte que afirma que “representantes do governo Lula concordaram em assinar um documento que compromete o país a cortar sua produção agropecuária nos próximos anos”. A postagem no Twitter também compartilha o link para uma publicação que cita um termo de compromisso assinado pelo Brasil e outros 12 países. A nota faz referência a um outro site, da ONG The Global Methane Hub, onde o leitor pode se informar sobre o termo de compromisso. Diferentemente do que diz o post e o texto para o qual o tuíte conduz o leitor, o governo federal não se comprometeu a cortar sua produção agropecuária.

O documento assinado pelo Brasil em abril deste ano reforça o compromisso do país, firmado dois anos antes, de reduzir a produção de gás metano, mas, em nenhum momento, há menção sobre diminuir a produção agropecuária. A ideia, segundo o texto, é que novas tecnologias sejam usadas para que a agropecuária, responsável por um grande volume de emissão de metano, minimize esse impacto ao meio ambiente.

Como diz o documento, o chamado para que países tomassem “ações voluntárias para contribuir com o objetivo coletivo de reduzir as emissões de metano em pelo menos 30% até 2030” foi feito em novembro de 2021, durante a COP26. Foi quando o Brasil, ainda no governo de Jair Bolsonaro (PL), assinou o Compromisso Global sobre Metano.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 31 de julho de 2023, a publicação no Twitter somava 207 mil visualizações, 6,4 mil curtidas, 2,3 mil compartilhamentos e 290 comentários.

Como verificamos: O link da ONG The Global Methane Hub, inserido no conteúdo enganoso, deu informações para que a reportagem iniciasse a busca pelas considerações corretas. Publicado em 17 de maio, o texto cita que o Brasil e mais 12 nações assinaram anteriormente um termo de compromisso. Entre os países, está Burkina Faso. Ao buscar por termos como “acordo”, “Brasil e Burkina Faso” no Google, o resultado mostrou o termo de compromisso, de 14 de abril.

A partir daí, a equipe pesquisou sobre redução de gás metano e o Brasil em reportagens e sites oficiais e tentou contato com o Ministério da Agricultura e com o autor do tuíte, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

O termo assinado pelo Brasil em abril

Em 13 e 14 de abril deste ano ocorreu em Santiago, no Chile, o evento First Ministerial Conference on Low Emission Food Systems (Primeira Conferência Ministerial sobre Sistemas Alimentares de Baixa Emissão, em tradução livre). O Brasil foi um dos 23 países participantes e um dos 13 que assinaram a declaração “Enfrentando o desafio de reduzir o metano na agricultura”.

O documento fala sobre as mudanças climáticas e o papel da agricultura sustentável, “fundamental para o desenvolvimento e a segurança alimentar em um planeta onde 10% da população global enfrenta a fome”. Nele, os signatários se comprometem com dez ações, mas em nenhuma delas há menção ao corte da produção agropecuária ou algo semelhante.

Entre as ações propostas, estão “avaliar o estado atual das políticas públicas e investimentos no setor e, quando apropriado, redirecionar esforços para aprimorar a inovação e apoiar agricultura, considerando elementos de economia circular, transição justa e tomando uma decisão” e “facilitar e promover as condições favoráveis ​​para a implantação de programas baseados na ciência prática, inovação e tecnologias em linha com a produção sustentável de alimentos e agricultura através do desenho e implementação de programas de adaptação às mudanças climáticas e políticas de mitigação”.

O texto, inclusive, destaca que a declaração “não implicará na adoção de medidas restritivas unilaterais ao comércio, coerentes com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC)”.

Compromisso do Brasil na COP26

A declaração assinada pelo Brasil em abril menciona outro documento que o país também referendou, o Compromisso Global sobre Metano.

Em novembro 2021, durante a COP26, em Glasgow, na Escócia, foi lançada a iniciativa Global Methane Pledge (GMP; Compromisso Global sobre Metano, em tradução livre), convidando os países a tomarem ações voluntárias para contribuir com o objetivo coletivo de reduzir as emissões de metano em pelo menos 30% até 2030, em comparação com os níveis de 2020.

Nesta ocasião, o Brasil, ainda no governo Bolsonaro, assumiu outros compromissos. O primeiro, de reduzir 50% de suas emissões de gases de efeito estufa (GEE) até 2030, usando como linha de base o ano de 2005 e como referência o Quarto Inventário Nacional de Emissões. O outro, em relação à Declaração dos Líderes de Glasgow sobre Florestas e Uso da Terra, que estabeleceu o objetivo principal de acabar com o desmatamento até 2030.

O terceiro compromisso, e o que mais nos interessa nesta verificação, é o já citado acima Compromisso Global sobre Metano, estabelecendo o objetivo de reduzir as emissões de gás metano em 30% até 2030.

O gás metano

Uma avaliação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e da Coalizão Clima e Ar Limpo, divulgada em 2021, mostra que o metano é o principal contribuinte para a formação do ozônio ao nível do solo, sendo um poluente perigoso do ar e gás de efeito estufa. Conforme a pesquisa, a agricultura é fonte predominante do gás metano, principalmente em razão das emissões de animais, como o esterco, responsável por 32% do metano liberado no meio ambiente.

O gás metano também surge por meio de outras fontes, como o processo de produção de combustíveis fósseis (gás e carvão). Entretanto, o impacto é muito inferior em comparação ao que é gerado pela agropecuária.

Ainda conforme a pesquisa, um dos principais motivos para a preocupação em relação ao metano é o fato de ele ser o responsável por cerca de 30% do aquecimento global desde a época pré-industrial.

O metano (CH4) é o segundo gás que mais impacta o aquecimento global, perdendo para o CO2. Uma pesquisa do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), a Análise das Emissões Brasileiras de Gases De Efeito Estufa 2020, mostra que a emissão global de CO2 em 2020 foi de 52 bilhões de toneladas e a de metano, 364 milhões.

Os dados reforçam que o setor que mais emite metano no Brasil é a agropecuária, com 72% das emissões, por meio de processos como a digestão do gado, ou o “arroto do boi”, que responde por metade das emissões do país.

Brasil não se comprometeu a reduzir produção agropecuária

O assunto sobre a importância de reduzir a produção do metano como forma de combater o aquecimento global, escancarando, sobretudo, o impacto causado pela agropecuária, tem sido amplamente divulgado e repercutido na mídia nacional e internacional. Desse modo, o acúmulo dessas informações constrói uma narrativa que permite realizar a seguinte interpretação: se houver redução da produção agropecuária, pode-se reduzir o gás metano.

Entretanto, destaca-se que o Brasil não se comprometeu em reduzir a produção agropecuária. Além disso, o estudo da PNUMA aponta para outras possibilidades de soluções, como a mudança de alimentação dos animais, o uso de tecnologias inovadoras para a produção e, até mesmo, a identificação de novas formas de administrar o esterco, usando-o para outras finalidades.

O que diz o responsável pela publicação: O Comprova entrou em contato com o autor do tuíte, mas não houve retorno até o fechamento desta verificação.

O que podemos aprender com esta verificação: É comum que peças de desinformação, para somar evidências verossímeis as suas alegações, direcionem os leitores a publicações na internet que se parecem com sites de notícias. Ao se deparar com esse tipo de publicação, sobretudo em casos de veículos desconhecidos, busque informações sobre a propriedade e localização do site, verifique se o site segue padrões de transparência como a publicação de seu expediente, endereço e telefone, se os autores dos artigos são nomeados ou se é possível consultar seus princípios editoriais e política de correção de erros. Nem todos os sites oferecem essas informações, mas a presença delas é um indicador que pode reforçar a confiança.

Ainda assim, tente fazer uma busca rápida na internet para encontrar informações que refutem ou confirmem a veracidade dos fatos em sites de sua confiança.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: O Comprova já verificou outros conteúdos de desinformação afirmando que Lula quer prejudicar o agronegócio, como a publicação que afirma falsamente que ele teria dito que o agronegócio deveria ser eliminado da terra e o vídeo engana ao atribuir ao PT proibição de plantio de soja em Mato Grosso.

Contextualizando

Investigado por: 2023-07-28

Declaração de Élcio de Queiroz sobre ter sido “assessor do PT” em Nova Iguaçu é tirada de contexto nas redes sociais

  • Contextualizando
Contextualizando
Publicação no Twitter afirma que o ex-policial militar Élcio de Queiroz, um dos presos acusados pelo assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, trabalhou para o deputado federal Lindbergh Farias (PT) e que o PT não quer tocar no assunto. A investigação do Comprova mostra que Queiroz foi funcionário da prefeitura de Nova Iguaçu, entre 2008 e 2010, quando Lindbergh era prefeito. A afirmação foi feita pelo próprio Queiroz ao alegar não ter nada contra partidos de esquerda. O deputado reconhece que o ex-PM integrou o quadro de servidores da prefeitura, mas nega conhecê-lo pessoalmente. Em delação premiada, Queiroz não cita o nome de Lindbergh Farias e nem o PT. O nome do deputado federal não aparece nas investigações sobre os assassinatos.

Conteúdo investigado: Posts nas redes sociais afirmam que Élcio Vieira de Queiroz, que confessou participação nas mortes da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, trabalhava para o deputado federal Lindbergh Farias (PT).

Onde foi publicado: Twitter e Facebook.

Contextualizando: Élcio Vieira de Queiroz afirmou em 2019, ao prestar depoimento para o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, que havia sido “assessor do PT” em Nova Iguaçu (RJ) durante a gestão de Lindbergh Farias (PT), atualmente deputado federal.

A declaração foi feita enquanto ele alegava não ter nada contra partidos de esquerda, ao ser questionado sobre ter feito pesquisas online envolvendo colegas de partido de Marielle Franco (PSOL). A afirmação tem sido usada recentemente em posts que insinuam participação do político e do PT no crime investigado.

Queiroz foi funcionário da prefeitura de Nova Iguaçu, onde ocupou cargo em comissão de gerente de divisão na antiga Secretaria Municipal da Cidade (SEMCID), entre novembro de 2008 e fevereiro de 2010. O deputado reconhece que o ex-PM fez parte do quadro de servidores da prefeitura, mas nega conhecê-lo pessoalmente, argumentando que havia mais de 8 mil funcionários no município.

Em delação premiada firmada recentemente por Queiroz com a Polícia Federal (PF) e com o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), o ex-policial não cita o nome de Lindbergh Farias e nem o PT. Ao Comprova, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) informou que o deputado-federal não aparece nas investigações sobre os assassinatos.

Como o post pode ser interpretado fora do contexto original: O trecho do depoimento de Élcio de Queiroz, no qual ele cita Lindbergh Farias, vem sendo utilizado desde 2019 fora de contexto em posts que têm o intuito de associar o nome do deputado federal e o PT ao crime, embora nenhum deles apareça nas investigações. Uma nova onda de conteúdos desta natureza surgiu a partir das notícias da prisão do ex-sargento do Corpo de Bombeiros Maxwell Simões Corrêa, o Suel, e da delação premiada de Queiroz, em 25 de julho. Os posts desinformam ao compartilharem a informação do depoimento de Queiroz sem contextualizá-la no momento em que novidades sobre o caso estão sendo noticiadas.

O que diz o responsável pela publicação: O Comprova não conseguiu contato com o perfil @Rpereir63156988 pelo Twitter e também não encontrou correspondência da conta em outras redes sociais.

Queiroz trabalhou na Prefeitura de Nova Iguaçu, mas deputado nega conhecê-lo

Em 2019, ao prestar depoimento ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Élcio de Queiroz afirmou não ter antipatia por governos de esquerda, informando ter sido, inclusive, “assessor do PT em Nova Iguaçu, quando o prefeito era Lindbergh”. Em seguida, ele elogiou o político. “Foi o melhor patrão que já tive, pagava muito bem seus funcionários, não tem nada que falar da esquerda.”

Conforme o Estadão, a fala de Queiroz sobre Lindbergh Farias é uma resposta a um questionamento do Ministério Público sobre os motivos que o levaram a pesquisar, com frequência, sobre colegas de partido de Marielle na internet. O acusado argumenta que era pelo fato de eles serem políticos no Rio de Janeiro e alega que também fazia buscas por representantes de outros partidos, acrescentando concordar com algumas pautas da esquerda.

Ainda em 2019, quando divulgado o teor do depoimento, Lindbergh Farias afirmou em sua conta no Twitter que Élcio de Queiroz nunca foi seu assessor e que não lembrava dele, acrescentando que iria verificar se o acusado havia trabalhado na prefeitura, mas adiantando que, de qualquer forma, a resposta seria irrelevante. O deputado apontou, ainda, que Queiroz teria postura direitista.

A prefeitura de Nova Iguaçu informou à reportagem que Elcio Vieira de Queiroz ocupou cargo em comissão de gerente de divisão na antiga Secretaria Municipal da Cidade (SEMCID), entre novembro de 2008 e fevereiro de 2010, quando Lindbergh Farias era prefeito, com salário bruto de R$ 1.276,99.

No dia 26 de abril, ao discutir com o deputado bolsonarista André Fernandes (PL-CE) durante a sessão que criou a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) de 8 de janeiro, o deputado reconheceu que Queiroz foi funcionário na administração dele em Nova Iguaçu, mas alegou nunca tê-lo visto.

Ao Comprova, o deputado informou que Queiroz trabalhou na prefeitura, e não para o PT, em decorrência de um programa que fazia a contratação direta de policiais, em seus horários de folga, para fazerem policiamento no centro da cidade. “Nunca conversei com esse cara, não conheço ele (…). Nova Iguaçu tem mais de 8 mil funcionários, é uma cidade de 1 milhão de habitantes”, declarou.

O Comprova questionou o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), a Polícia Federal e a Polícia Civil do Rio de Janeiro se o político é ou foi considerado suspeito no caso em algum momento. A assessoria de imprensa do MJSP informou que o nome de Lindbergh Farias não aparece nas investigações. Os demais órgãos não responderam.

Em 18 de abril, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os familiares das vítimas deveriam ter acesso ao inquérito sigiloso que tenta chegar aos mandantes do crime. A reportagem procurou advogados que acompanham a família de Anderson, questionando se eles já acessaram o conteúdo e, caso sim, se há qualquer menção a Lindbergh entre os investigados, mas eles não retornaram.

O mesmo foi feito junto à assessoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que representa a família de Marielle. O órgão informou ao Comprova não poder passar esse tipo de informação por se tratar de um processo que corre em sigilo.

Também foram procurados os advogados que fizeram a defesa de Queiroz, mas eles não responderam às mensagens. No último dia 24, o escritório que o representava emitiu uma nota informando ter deixado o caso após o ex-PM firmar delação premiada com a Justiça, ato que os advogados desconheciam.

O que se sabe sobre as mortes de Marielle e Anderson até agora?

No início de 2023, cinco anos após o crime, apenas Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz estavam presos, apontados como executor do crime e o motorista, respectivamente. Ainda sem respostas sobre a motivação e quem seria o mandante, o ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino requisitou que a Polícia Federal no Rio abrisse um inquérito para dar continuidade às investigações, que eram até então de responsabilidade da Polícia Civil do Rio de Janeiro.

No dia 24 de julho, a PF e o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) prenderam o ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa, o Suel, na Operação Élpis. Esta foi a primeira operação desde quando a PF assumiu a investigação.

No mesmo dia, foi noticiada a delação premiada firmada entre Queiroz e o Ministério Público, homologada pela Justiça. Negando envolvimento no crime desde 2019, ele decidiu confessar a participação na execução da ex-vereadora e do motorista dela. Queiroz informou que dirigia o veículo usado no duplo homicídio, além de ter participado do planejamento do ato.

Segundo o ex-PM, no dia do crime, ele recebeu uma mensagem de Lessa ao meio-dia dizendo que precisaria que dirigisse para o policial reformado à noite.

Depois, os dois se encontraram na casa de Lessa às 17h e saíram em seguida, no carro do amigo, seguindo até uma rua sem saída, onde entraram em um Chevrolet Cobalt prata.

Com esse veículo eles seguiram para o Centro e passaram a acompanhar os passos de Marielle. Entre 21h09 e 21h12, diz a confissão, eles emparelharam o carro junto ao que estava a vereadora e Ronnie disparou os tiros.

Segundo a delação, a submetralhadora MP5 utilizada no crime supostamente foi extraviada de um incêndio no Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar do Rio de Janeiro, nos anos 1980.

Quem é Élcio de Queiroz

Élcio Queiroz é um ex-sargento da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Ele foi expulso em 2015 por fazer segurança ilegal em uma casa de jogos de azar na capital fluminense. O ex-PM foi preso em março de 2019, um ano após os assassinatos da vereadora do Rio Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.

De acordo com o Estadão, o ex-sargento tem um histórico de envolvimento com grupos paramilitares, conhecidos como milícias, no Estado. Foi um dos 45 integrantes das Polícias Civil e Militar do Rio presos na Operação Guilhotina por envolvimento em corrupção, participação em milícias, desvio de armas e venda de proteção a bicheiros, narcotraficantes e contrabandistas. Na época, Queiroz atuava no 16º BPM, em Olaria, na Zona Norte.

Antes de ser preso pela PF na primeira vez, cerca de sete anos antes da execução de Marielle, Queiroz já era monitorado pelo setor de inteligência da Polícia Civil do Rio. Setores da polícia chegaram a informações, repassadas por uma fonte protegida, de que o ex-policial faria parte de um grupo de extermínio e atuaria como miliciano desde 1998, na região de Quitungo, Brás de Pina, Vila da Penha e Cordovil, bairros da Zona Norte.

Queiroz é amigo de Ronnie Lessa. Segundo a PF, os dois se conhecem há mais de 30 anos. Durante a infância e adolescência, Queiroz morava na mesma rua que a esposa de Lessa. Eles se conheceram quando Lessa começou a namorar a atual esposa e passou a frequentar o local. Desde então, a relação entre os dois só se fortaleceu. Eles voltaram a se encontrar nos quadros da PM.

Atualmente, o ex-policial militar está preso em uma unidade de segurança máxima do Complexo Penitenciário da Papuda. Ele foi transferido da Penitenciária Federal de Brasília na noite de 25 de julho. Antes disso, ele esteve preso em Porto Velho, em Rondônia.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 28 de julho, a publicação somava 42,8 mil visualizações e mais de 2 mil curtidas no Twitter.

Como verificamos: A partir da cobertura da imprensa e buscas nas redes sociais, o Comprova reuniu informações sobre o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, a delação de Queiroz (Estadão, G1 e O Globo), além da relação do ex-PM com o deputado federal Lindbergh Farias (Estadão, O Globo e Twitter).

Também entrou em contato com as assessorias de imprensa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPE-RJ), que representa Marielle Franco, da prefeitura de Nova Iguaçu, do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Por fim, o Comprova tentou conversar com o escritório que fazia a defesa de Élcio Queiroz e falou com o deputado Lindbergh Farias.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para publicações que obtiveram maior alcance e engajamento e que induzem a interpretações equivocadas. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: Em 25 de julho, a agência Aos Fatos publicou um material explicando as principais novidades sobre o caso de Marielle e Anderson Gomes desde a delação de Queiroz.

Recentemente, o Comprova divulgou um conteúdo contextualizando um vídeo de 2019 do senador Randolfe Rodrigues pedindo impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e outro mostrando que fala de Ciro sobre fraude nas eleições de 2022 era crítica a Lula e Bolsonaro, e não denúncia contra sistema eleitoral.