Conteúdo investigado: Publicação afirma que apenas um exame é capaz de comprovar que uma pessoa está bem de saúde após receber a vacina contra covid-19 e que este exame não é realizado no Brasil. O post é acompanhado pelo recorte de um vídeo no qual um médico afirma que imunizantes provocam uma “síndrome de inflamação crônica”, que levaria a sintomas como fadiga e problemas de memória. O vídeo é sobreposto pela frase “Quais são as sequelas severas das vacinas?”.
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Conclusão do Comprova: Sintomas como perda de memória e fadiga são conhecidos no meio científico como consequências da covid-19, ou sintomas da chamada covid longa, covid crônica ou condições pós-covid. Até o momento, não há um exame clínico que possa diagnosticar essa condição. É enganoso, portanto, afirmar que estas reações estariam entre as características de uma doença supostamente provocada por vacinas contra o coronavírus, como faz o post investigado aqui.
O conteúdo se apoia em uma afirmação do médico infectologista Francisco Cardoso, conhecido por defender o “tratamento precoce” e a cloroquina no tratamento da covid-19, como mostra depoimento na CPI da Pandemia, em 2021. Em outras oportunidades (aqui e aqui), o Comprova se debruçou sobre declarações feitas por ele.
Cardoso abordou o assunto em entrevista ao podcast 3 Irmãos, no dia 22 de maio. Na oportunidade, o médico alegou que os imunizantes provocam “síndrome de inflamação crônica”. Ele também relacionou esta condição com a proteína spike, base de parte das vacinas contra a covid-19. Outros sintomas citados foram dificuldade de raciocínio, queda de cabelo e dificuldade para dormir.
Embora ainda esteja em investigação o fator que leva um paciente a ter covid longa, já é de amplo conhecimento científico que esta condição clínica afeta pessoas com histórico de infecção provável ou confirmada pelo vírus SARS CoV-2, que causa a covid-19. Esta condição foi classificada clinicamente pela primeira vez em 2021 pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Diferentes órgãos internacionais de saúde reconhecem que os sintomas citados no vídeo pelo médico são associados à covid-19 – isso inclui fadiga crônica, névoa mental, queda de cabelo, enfraquecimento das unhas, perda de olfato ou paladar entre outros – e apontam que a vacinação, em vez de provocar, ajuda a evitar as condições pós-covid. Entre os órgãos que apontam, com base em evidências científicas, que a covid longa é associada à covid-19, e não à vacina, estão a OMS, o European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC), os Centers for Disease Control and Prevention (CDC, dos Estados Unidos), o National Institutes of Health, também dos Estados Unidos, e o Ministério da Saúde do Brasil.
Além disso, especialistas consultados pelo Comprova reforçam que os sintomas mencionados no vídeo estão relacionados à condição pós-covid, demonstrando que a alegação feita na postagem é enganosa. Eles reiteram que a proteína spike, citada no vídeo como uma espécie de responsável pela inflamação, é uma partícula do vírus que estudos científicos indicaram como a melhor opção para ser usada na produção das vacinas. Ela é capaz de induzir o organismo de uma pessoa a produzir anticorpos contra a doença, mas é naturalmente eliminada poucos dias após a vacinação, como já mostrou o Comprova. Já o vírus, propriamente dito, tem muito mais proteína spike do que o imunizante.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 14 de junho, a publicação alcançou 251,7 mil visualizações.
Fontes que consultamos: A equipe consultou o vídeo completo da entrevista do médico no YouTube e fez pesquisa por publicações relacionadas ao pós-covid. Foram consultados estudos e protocolos internacionais para a covid longa da OMS, do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), dos Estados Unidos, do National Institutes of Health (NIH), também dos Estados Unidos, do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC) e do Ministério da Saúde.
Também foram entrevistados o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri, o infectologista Marcelo Daher, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), o médico Celso Granato, especialista em Infectologia pela SBI e em Patologia Clínica pela Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML) e o farmacêutico-bioquímico Jorge Luiz Joaquim Terrão, diretor da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC).
Covid crônica é o mesmo que covid longa, e não existe “síndrome pós-spike” provocada pela vacina
No vídeo, Francisco Cardoso aponta alguns sintomas, como fadiga crônica, queda de cabelo, enfraquecimento das unhas e névoa mental como uma “síndrome de inflação crônica” que, segundo ele, seria o principal efeito dos imunizantes.
Ele afirma que o nome correto a se dar a essa doença seria “síndrome do pós-spike”, como se fosse uma consequência direta dos imunizantes, e não da covid-19. Não há evidência que possa sustentar essa afirmação. No mês de abril, o episódio 88 do podcast Fake News Não Pod, do Jornal da USP, abordou a alegação de que existiria uma “síndrome pós-spike” causada pelas vacinas. A cientista biomédica Beatriz Calasense disse que não existe a tal síndrome.
A proteína spike, mencionada em diversas alegações mentirosas sobre a vacina, está presente no Sars-COV-2, o vírus da covid-19, e é ela que permite a entrada do vírus no organismo, levando ao desenvolvimento da doença. Algumas vacinas usam material genético para produzir a spike dentro do organismo, mas ela serve apenas para ensinar o sistema imunológico a se defender do vírus. “Ela atua somente como mensageira para as nossas células imunológicas e logo depois é degradada”, afirma Beatriz Calasense.
Para especialistas ouvidos pelo Comprova, apenas apontar a proteína spike presente na vacina como causa da inflamação é controverso. O infectologista Marcelo Daher aponta, inclusive, que a covid-19 produz mais proteínas spike do que contém na vacina, já que se trata de uma parte do vírus. “E o vírus, quando entra no organismo, produz vírus completo e partículas virais, que a gente chama de vírus incompletos. E esses vírus incompletos têm proteína spike”, explicou o consultor da SBI. Renato Kfouri, da SBIm, aponta a mesma conclusão: “O vírus tem muito mais proteína spike do que qualquer vacina”, declarou.
Diferentemente do que aparece em alegações contrárias às vacinas, é de amplo conhecimento no meio científico que os sintomas citados por Francisco Cardoso são da covid longa, covid crônica ou condições pós-covid, associada à própria covid-19, e não às vacinas.
A OMS fez a primeira classificação clínica desse conjunto de sintomas ainda em 2021, quando descreveu que “a condição pós-covid-19 ocorre em indivíduos com histórico de infecção provável ou confirmada pelo SARS CoV-2, geralmente três meses após o início da covid-19 com sintomas que duram pelo menos dois meses e não podem ser explicados por um diagnóstico alternativo”. O assunto foi novamente discutido pela OMS em 6 de junho de 2024 em sessão do G20 em Salvador (BA).
Essa classificação foi feita após a realização de estudo, ainda em 2021, utilizando a metodologia Delphi, que consiste na discussão de um assunto complexo a partir de grupos de especialistas selecionados de forma anônima e estratégica, que devem ser selecionados em países diferentes, para se ter um panorama representativo.
Os especialistas levaram em conta definições de covid longa feitas por publicações e órgãos renomados, como as revistas Lancet, Nature e Scientific American, a Haute Autorité de Santé (França), e os Centers for Disease Control and Prevention, dos Estados Unidos. Nenhum deles menciona que as condições aparecem após a vacina, e sim após a infecção pelo Sars CoV-2, o vírus que causa a covid-19.
O National Institutes of Health, dos Estados Unidos, define a covid longa como “problemas de saúde que algumas pessoas enfrentam alguns meses após um diagnóstico de covid-19” e aponta que alguns podem ser iguais ou diferentes daqueles da covid, mas elenca a síndrome da fadiga crônica como um deles.
O Portal Europeu de Informações Sobre Vacinação, mantido pela União Europeia, e o European Centre for Disease Prevention and Control classificam a covid longa como “efeitos a longo prazo da infecção de Sars CoV-2” e cita entre os sintomas a perda de olfato ou paladar, cansaço, fraqueza geral, falta de ar e déficit cognitivo. Segundo a Anvisa, o termo “inflamação” é genérico e as próprias bulas das vacinas citam eventos adversos que podem ser considerados inflamação, desde os mais comuns, como dor no local, até os raros, como a miocardite. “É importante destacar ainda que a própria covid é uma doença que pode desencadear cenários de inflamação generalizada ou mesmo crônica”, diz o órgão brasileiro.
Segundo o NIH, que reúne pesquisas sobre a covid longa, ainda estão em curso os estudos para apontar com clareza o que causa as condições pós-covid, mas já existem algumas pistas: a reativação de partículas do vírus SARS CoV-2, que podem fazer com que os sintomas reapareçam; a liberação de altos níveis de substâncias inflamatórias por parte de células imunológicas hiperativas; e a produção de autoanticorpos que atacam os próprios órgãos e tecidos, desencadeada pela infecção.
O NIH aponta que a melhor maneira de se prevenir contra a covid longa é evitar pegar a covid-19, mantendo-se vacinado. Para aqueles que já estão com a covid, o órgão faz recomendações para tentar reduzir as chances de contrair a covid longa:
“Se você não estiver vacinado, a vacinação após a recuperação da covid-19 pode ajudar a prevenir a covid longa. A vacinação contra a covid-19 também pode reduzir a probabilidade de contrair a síndrome inflamatória multissistêmica (MIS-C) [uma complicação tardia grave da infecção por SARS CoV-2] em jovens de 12 a 18 anos”, diz uma página específica do órgão sobre o assunto.
Em nota, o Ministério da Saúde também apontou que estudos clínicos e de farmacovigilância, conduzidos por instituições e organizações de saúde respeitadas mundialmente, refutam a alegação de que a suposta “síndrome da inflamação crônica” esteja associada à vacinação. A pasta citou entidades como OMS, CDC, e a Anvisa entre os responsáveis por estas pesquisas.
Condições citadas no vídeo são associadas à covid, não às vacinas, dizem especialistas
Especialistas ouvidos pelo Comprova reforçam o que os órgãos internacionais e as pesquisas científicas já dizem: os sintomas citados no vídeo são associados à covid, não aos imunizantes. “Hoje, o termo mais aceito internacionalmente e adotado pelo próprio Ministério da Saúde chama-se ‘condições pós-covid’, porque a doença dá tudo isso. A doença dá uma fraqueza, dá fadiga crônica, dá essa névoa cerebral, perda de cabelo, queda das unhas. São mais de 200 sintomas relatados nessas condições pós-covid e que realmente têm assolado um número expressivo de pessoas, não só aqui no Brasil, mas em todo o mundo”, explica Renato Kfouri, vice-presidente da SBIm.
Ele diz que a fala feita durante o podcast tenta atribuir aos imunizantes uma série de sintomas que, na verdade, são causados pela covid-19. “Não há nenhuma evidência de que as vacinas possam trazer essas condições. Os eventos adversos relacionados às vacinas são muito bem conhecidos, já estão muito bem descritos. Há vários estudos demonstrando que as vacinas previnem as condições pós-covid, não causam condições pós-covid. Então é muito mais frequente condições pós-covid em não-vacinados do que em vacinados”, completa Kfouri.
O infectologista Marcelo Daher também nega que a covid crônica, longa, ou as condições pós-covid sejam causadas pela proteína spike presente na vacina, e concorda com Kfouri ao apontar que os sintomas citados no vídeo são provocados pela covid-19: “O que é bem caracterizado e bem documentado é a doença causando isso. Não tem trabalho mostrando a vacina causando isso”, afirma.
Inflamação celular é complexa e ainda não há teste específico para diagnosticar covid longa
No vídeo, Cardoso menciona a existência de “um exame americano que mede a proteína spike dentro do macrófago humano”, que seria capaz de mostrar a inflamação que ele alega ser causada por vacinas contra a covid-19. Este exame seria de análise de citoquina – ou citocina, termo mais usado no Brasil.
Diferentemente do que diz o médico, as análises de citocinas são feitas em laboratórios brasileiros, segundo o farmacêutico-bioquímico Jorge Terrão, diretor da SBAC, mas é preciso saber a quais delas Cardoso se referia, o que não fica claro no vídeo.
Além disso, o médico Celso Granato, especialista em infectologia e em patologia clínica e associado à SBPC/ML – entidade ligada à área de diagnóstico laboratorial – observa que citocinas e proteína spike são coisas diferentes, e que a fala do médico acaba confundindo as pessoas.
“Ele fala que tem um exame americano que chegou a fazer aqui [no Brasil] e que dosa a citocina, e que lá se encontra a spike. Isso é esquisito, porque para usar um produto de laboratório, tem que ter aprovação da Anvisa. Eu nunca soube de aprovação da Anvisa nesse sentido. Realmente desconheço esse exame”, disse Granato.
Procurada, a Anvisa disse que “não regulamenta protocolos ou procedimentos para exame e diagnóstico de pacientes”, o que cabe às sociedades médicas e científicas. A Anvisa atua na regulamentação dos produtos e dispositivos utilizados nos procedimentos. No entanto, a agência disse que precisaria de mais informações sobre os insumos e dispositivos para responder se eles existem ou não no Brasil.
Quanto à declaração de Cardoso sobre existir um exame nos Estados Unidos, o CDC, órgão oficial do país para controle de doenças, publicou no último dia 10 de junho que “atualmente, nenhum teste laboratorial pode ser usado para diagnosticar definitivamente a covid longa ou para distinguir a covid longa de condições com etiologias diferentes”.
Em setembro do ano passado, um estudo publicado na renomada revista científica Nature disse ter encontrado diferenças entre exames de sangue de pessoas com covid longa e outras sem as condições pós-covid, mas isso não significa que já existe um exame para diagnosticar essas condições, e sim que os resultados representam um passo importante para encontrar uma forma de diagnóstico. Outros estudos avaliam a possibilidade, mas ainda estão em fase de pré-print, ou seja, não foram revisados pelos pares.
SUS faz atendimento de pacientes com pós-covid
Durante a entrevista, Francisco Cardoso diz que não existe tratamento no SUS para o que ele chama de covid crônica. Em nota, o Ministério da Saúde informou que recomenda que a avaliação de pacientes com condições pós-covid sejam realizadas na Atenção Primária à Saúde (APS). De acordo com a pasta, em alguns casos, é recomendado o encaminhamento para os serviços multidisciplinares, de reabilitação e/ou atenção especializada, visando otimizar os recursos disponíveis na Rede de Atenção à Saúde (RAS) e potencializar a resolução de problemas mais complexos.
No texto, o ministério mencionou que, segundo dados do Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (Sisab), entre março de 2022 e abril de 2024, foram realizados mais de 228 mil atendimentos a pessoas com condições pós-covid no âmbito do SUS. A pasta destacou que a organização dos cuidados em saúde no País é coordenada por estados e municípios, levando em consideração os protocolos e diretrizes do SUS e a rede de atenção disponível.
Para Renato Kfouri, da SBIm, ainda não há, de fato, algo a ser feito especificamente contra as condições pós-covid. “Não há nada a ser feito por enquanto, a não ser reabilitar essas condições crônicas e tratar os sintomas e as doenças que vierem a aparecer”, diz. Segundo ele, esse tratamento precisa ser multidisciplinar. Na nota, o Ministério da Saúde também citou a existência de equipes multiprofissionais nas APSs.
Kfouri explica que esta é uma das razões pelas quais a fala de Cardoso é perigosa: faz as pessoas atribuírem um conceito errado às suas condições de saúde e ainda acreditarem que há um tratamento diferente daquele que é feito para as condições pós-covid.
No vídeo, Cardoso ainda é questionado sobre a possibilidade de “tirar o efeito do imunizante do corpo” e o médico afirma que não existe detox de vacina (tratando das doses de forma geral e não de uma marca específica). Daher também argumenta que não existe medida como esta. Outras verificações publicadas pelo Comprova já abordaram o assunto, mostrando, por exemplo, que não há evidência que a proteína spike cause ferimentos nas pessoas imunizadas, nem que medicamentos poderiam eliminá-la do organismo.
Procurado pelo Comprova, Francisco Cardoso argumentou que sua fala foi editada e disse que não conhece o autor da publicação. A postagem traz recorte de 6 minutos e 45 segundos da participação do médico no podcast, que teve duração de mais de uma hora e meia. Apesar do recorte, a fala do médico não foi editada e ele realmente associou os sintomas da covid longa à vacina. O médico alegou ainda que fez declarações sobre sintomas de pós-covid, que ocorrem, segundo ele, após a infecção pelo vírus ou exposição à proteína spike. Cardoso disse que existe “farta evidência científica” sobre a síndrome, mas não indicou suas fontes.
O perfil responsável por compartilhar trecho da entrevista no X não permite o envio de mensagens diretas e, por isso, não foi possível entrar em contato.
Por que o Comprova investigou essa publicação: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: Desde 2020, quando os primeiros casos de covid-19 foram diagnosticados no Brasil, o assunto é alvo de desinformação no País. No último mês, o Comprova mostrou, por exemplo, que é enganoso afirmar que miocardite e pericardite ocorrem apenas em pessoas vacinadas e que postagens exageram peso de declaração da Astrazeneca, já que o efeito adverso de vacina já era conhecido.