Conteúdo investigado: Publicação alega que o vírus H5N1, também conhecido como gripe aviária, deve ser a origem de uma nova pandemia que “globalistas estão planejando desencadear”. O autor afirma que parte do plano estaria ligada a uma doação de US$ 9,5 milhões da Fundação Bill & Melinda Gates para a Universidade de Wisconsin-Madison para tornar este vírus transmissível a humanos e outros mamíferos, e cita estudos conduzidos pelos pesquisadores Yoshihiro Kawaoka e Ron Fouchier. O post também alega que o coronavírus, que provocou a mais recente pandemia, foi modificado em laboratório.
Onde foi publicado: X.
Conclusão do Comprova: A Fundação Bill & Melinda Gates fez uma doação de cerca de US$ 9 milhões à Universidade de Wisconsin-Madison, em 2009, para financiar uma pesquisa com a finalidade de identificar mutações do vírus da gripe aviária (H5N1) que possam infectar humanos. A ideia era monitorar essas mutações na natureza e antecipar a possibilidade de uma pandemia e estratégias de saúde para combatê-la.
É enganoso, portanto, que o pagamento tenha sido feito com foco em estudo para tornar o H5N1 transmissível para seres humanos e, consequentemente, provocar deliberadamente uma pandemia. Bill Gates é um empresário e filantropo americano conhecido por ter sido um dos fundadores da Microsoft. Seu nome é frequentemente ligado a teorias conspiratórias de diversas naturezas.
Ao Comprova, o virologista Flavio Fonseca, do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que jamais foi notificado vazamento de vírus de laboratório nos estudos dos pesquisadores mencionados na postagem.
Segundo boletim de 8 de maio da Organização Mundial da Saúde (OMS), até o momento não há sinais de adaptação do vírus H5N1 que permitam transmissão entre humanos. Ainda de acordo com a OMS, a avaliação de risco à saúde pública representada pela gripe aviária continua no patamar baixo e de baixo a moderado para pessoas expostas a animais infectados. Como mostrou o Comprova, a transmissão para humanos é rara, mas pode acontecer por meio de contato direto com animais infectados ou inalação de secreções de animais doentes.
A publicação investigada foi feita no X, plataforma que não permite envio de mensagens diretas para usuários que não seguem a pessoa que tenta entrar em contato. Por este motivo, não houve contato com o responsável pelo post.
Enganoso, para o Comprova, é todo conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até 28 de junho, a publicação no X alcançou 10,6 mil visualizações, 893 curtidas e 392 compartilhamentos.
Fontes que consultamos: O Comprova procurou inicialmente a Fundação Bill & Melinda Gates e a Universidade de Wisconsin-Madison, que se posicionaram por e-mail. As doações feitas pela fundação foram consultadas no site da instituição. Também foram consultadas publicações do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID), Centers for Disease Control and Prevention (CDC), dos EUA, e OMS, além de sites especializados no tema, como a revista Science, matérias na imprensa e verificações já publicadas pelo Comprova.
A equipe também procurou o NIAID, o CDC, a agência Food and Drug Administration (FDA). O Comprova tentou contato com o virologista Yoshihiro Kawaoka, citado no post, mas não houve resposta. Houve tentativa de contato com Ron Fouchier, por meio da Erasmus University Medical Center. A instituição respondeu que o virologista não estava disponível para responder.
O Comprova também ouviu os virologistas Flávio Fonseca, da UFMG, e Amilcar Tanuri, do Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o infectologista Renato Kfouri.
A OMS não retornou o contato.
Estudos não buscam desencadear pandemia em humanos, mas preveni-la
É verdade que a Fundação Bill & Melinda Gates fez doação de cerca de US$ 9 milhões à Universidade de Wisconsin-Madison. Uma publicação de 2009 feita pela universidade em seu site oficial informa que o recurso tinha a finalidade de financiar estudos para identificar mutações em proteínas virais que permitiriam que o vírus da gripe aviária se ligasse aos receptores humanos ou facilitasse a replicação eficiente em células humanas. O objetivo dos estudos era o de monitorar essas mutações na natureza para prever riscos de uma eventual pandemia.
O texto informa que o principal pesquisador do projeto é o virologista Yoshihiro Kawaoka, que atuaria ao lado de um time internacional de cientistas para buscar um método confiável para identificar ameaças de influenza à saúde humana, o que resultaria no desenvolvimento de uma resposta antecipada por parte dos sistemas de saúde, como a distribuição de compostos antivirais e o desenvolvimento e a produção de vacinas.
Ou seja, o objetivo da pesquisa era diferente do apontado na postagem investigada: não desencadear uma pandemia de gripe aviária em humanos, mas identificar os mecanismos por meio dos quais ela poderia surgir e preparar antecipadamente os mecanismos de proteção. A doação também foi divulgada no site da fundação.
Em nota, a Universidade Wisconsin-Madison negou relação da pesquisa com “tornar o H5N1 transmissível para humanos”. De acordo com a instituição, a pesquisa proporcionou informações que têm sido usadas para monitorar o vírus da gripe aviária que circula na natureza. O material foi construído com base em trabalhos anteriores de Kawaoka e seus colegas, que identificaram “crucial mutação que contribui para a letalidade do vírus da gripe aviária em mamíferos”. Ainda segundo a universidade, estes dados estão sendo usados pela OMS e pelo CDC para avaliar o potencial pandêmico do vírus.
Também por nota, a Fundação Bill & Melinda Gates alegou que as afirmações feitas na postagem são falsas. No site da instituição é possível acessar um arquivo com dados de doações já feitas. Estão registradas na tabela 32 doações para “University of Wisconsin” e “University of Wisconsin Foundation”, sendo que apenas uma, de 2009, trata, de acordo com o resumo divulgado, sobre gripe aviária. “Análise de alto rendimento de variantes da gripe aviária para potencial pandêmico”, informa a coluna que aponta o propósito das doações.
As pesquisas de ‘ganho de função’
A alegação feita no tuíte distorce o objetivo dos estudos, ao sugerir ligação com uma ação deliberada para provocar uma nova pandemia, tendo a Fundação Bill & Melinda Gates por trás.
A Universidade de Wisconsin-Madison informou ao Comprova que três estudos publicados conduzidos pelo virologista Yoshihiro Kawaoka foram, pelo menos em parte, financiados pelos US$ 9,5 milhões doados pela Fundação Bill & Melinda Gates. Os estudos foram publicados pelas revistas Nature e Science.
O Comprova enviou os estudos ao National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID), que faz parte do National Institutes of Health dos Estados Unidos (NIH), com questionamentos sobre a segurança das pesquisas e seus resultados. O NIAID respondeu que os questionamentos deveriam ser feitos aos pesquisadores que conduziram os estudos e ao CDC. Além dos três estudos de Yoshihiro Kawaoka, foi enviado ao órgão o trabalho The Multibasic Cleavage Site in H5N1 Virus Is Critical for Systemic Spread along the Olfactory and Hematogenous Routes in Ferrets, liderado por Ron Fouchier, e citado no conteúdo investigado.
O Comprova buscou os pesquisadores e o CDC, mas não houve resposta. O CDC disse que “não comenta sobre descobertas ou reivindicações feitas por indivíduos ou organizações externas ao CDC.”
Já o NIAID enviou um link para seu site com explicações mais genéricas sobre o tipo de estudo que envolve patógenos potenciais de pandemia (PPPs), como o H5N1, nos quais as pesquisas mencionadas se enquadram. São pesquisas conhecidas como “enhanced potential pandemic pathogen (ePPP) research” (pesquisa sobre patógenos pandêmicos potenciais aprimorados), um tipo de estudo que se enquadra nas chamadas pesquisas de “ganho de função” (“gain-of-function” [GOF] research). Os estudos da Universidade de Wisconsin se enquadram nesta categoria.
Segundo o texto, esse tipo de pesquisa busca entender a natureza fundamental das interações entre esses patógenos e o organismo humano, avaliar o potencial pandêmico de agentes infecciosos, como vírus, e informar sistemas de saúde pública voltados, por exemplo, à vigilância e ao desenvolvimento de vacinas e outras medidas médicas. O texto destaca que esse tipo de estudo envolve risco e exige uma supervisão rigorosa.
“Embora essa pesquisa seja intrinsecamente arriscada e exija uma supervisão rigorosa, o risco de não realizar esse tipo de pesquisa e não estar preparado para a próxima pandemia também é alto”, destaca o texto.
O virologista Flavio Fonseca explica que esse tipo de estudo foi usado por muitos anos para entender mecanismos de ganho de patogenicidade.
“Esses estudos foram muito usados há 10, 15, 20 anos atrás e faziam parte de um processo de entendimento para identificar o tipo de mutações que, se detectadas na natureza, devem ser usadas como alarmes para a gente prever o surgimento de cepas altamente patogênicas, de variantes altamente patogênicas, principalmente de vírus respiratórios”, diz Fonseca, que compartilha a opinião pessoal de que esses estudos devem ser limitados por serem “muito arriscados”.
Controvérsias envolvendo pesquisas de Kawaoka e Fouchier
Um texto na revista Science informa sobre as controvérsias no meio científico desencadeadas pelas pesquisas dos virologistas Yoshihiro Kawaoka e Ron Fouchier envolvendo H5N1, quando revelaram, em 2011, “que haviam modificado separadamente o mortal vírus da influenza aviária H5N1 para que se espalhasse entre furões (uma espécie de mamíferos)”, tornando-o mais arriscado para humanos. O texto aborda a aprovação do governo americano para a retomada dos estudos depois de quatro anos em que as pesquisas ficaram suspensas por terem sido consideradas perigosas.
Reportagens publicadas pelo The Intercept e USA Today citam que houve polêmica nesses estudos. A matéria do The Intercept chega a falar em dois acidentes no laboratório de Kawaoka, porém com baixo risco de infecção. A reportagem do USA Today também aborda os acidentes. No entanto, as matérias não mencionam ter comprovadamente havido vazamento de mutação do vírus H5N1 transmissível a humanos dos laboratórios, muito menos uma suposta ação propositada nesse sentido.
Virologistas apontam para mutações na natureza
O virologista Flavio Fonseca afirma que “jamais foi notificado escape” nesses estudos.
“Os estudos, na verdade, são bem conhecidos, são estudos que avaliaram as mutações necessárias para fazer com que o vírus se disseminasse mais rapidamente entre mamíferos”, diz Fonseca. “Não houve escape desses vírus, isso jamais foi notificado. Esse tipo de estudo é conduzido em laboratórios classificados com nível de biossegurança 3 ou nível de biossegurança 4. Os mecanismos de segurança para evitar escape são absolutamente incríveis”.
O virologista Amílcar Tanuri e o infectologista Renato Kfouri, também procurados pelo Comprova, relataram maior probabilidade de surgimento na natureza de uma cepa do vírus H5N1 capaz de infectar humanos, como comumente ocorre com os vírus Influenza, do que em laboratório – possibilidade sobre a qual se mostraram descrentes.
Coordenador do Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro titular da Academia Brasileira de Ciências, Tanuri explica que os vírus emergentes e pandêmicos, como o H5N1, “não surgiram pela mão do homem”, diz. Se assim fosse, acrescenta, ele deixaria “assinaturas” características da manipulação genética que teria sido feita.
“Pela análise das sequências dos vírus aviários, dessa gripe aviária, não há nenhuma indicação de ter havido algum processo feito pelo homem”, diz Tanuri.
“O ‘spillover’ (quando há transbordamento de uma espécie para outra) do vírus é característica do influenza”, diz Kfouri. “Isso ocorre ao acaso. Creio que o homem não seria capaz de alterá-lo a ponto dessa perfeição que ocorre ao acaso na natureza”.
Primeiras infecções de gado para humanos são recentes e podem ter origem em ave infectada
Em boletim de 30 de maio deste ano, o CDC reportou dois casos de infecção por H5N1 de trabalhadores rurais nos Estados Unidos durante um surto de gripe aviária em vacas leiteiras. São os “primeiros casos conhecidos de transmissão presumida de vaca para humano de vírus da Influenza A aviária”, informa o boletim. Os trabalhadores tiveram sintomas leves.
O CDC informa no boletim que o sequenciamento genético identificou que a cepa que infectou o gado e um dos trabalhadores rurais foi identificada em aves selvagens, aves comerciais, aves de criação e outros animais nos EUA desde janeiro de 2022. A investigação do outro caso segue em andamento.
Já uma reportagem do The Guardian informa que um estudo ainda não revisado por pares veio a público em maio argumentando que o vírus foi introduzido em vacas leiteiras por meio de uma única introdução de um pássaro selvagem.
O boletim do CDC informa que de 1997 até o final de abril de 2024, um total de 909 casos esporádicos de humanos com A(H5N1) foram relatados mundialmente em 23 países. Destes, 52% foram fatais.
Não há evidência de que novo coronavírus foi modificado em laboratório propositalmente
A postagem feita no X também alega que a covid-19 foi modificada em laboratório para ser capaz de infectar humanos. No entanto, outras verificações já publicadas pelo Comprova mostraram que não há evidência científica de que o SARS-CoV tenha sido criado propositalmente.
Postagem faz menção a médico que teve diversas alegações desmentidas sobre a covid-19
O tuíte faz menção a uma postagem no X de uma fundação criada pelo cardiologista americano Peter McCullough, que, segundo verificações de outras iniciativas de checagem (FactCheck.org e AFP Fact Check), tem promovido, desde o início da pandemia de covid-19, desinformação sobre a doença e vacinas de mRNA. O Comprova já mostrou que ele apresentou evidências enganosas ao sugerir conspiração da ciência contra a cloroquina no tratamento à covid-19 e que fez alegações enganosas ao indicar uma lista de substâncias indicadas para “desintoxicação” da proteína S presente na vacina contra a covid-19. Uma série de outras alegações do médico foram desmentidas por serviços de checagem no exterior.
Por que o Comprova investigou essa publicação: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: Temas relacionados à saúde pública são alvos frequentes de desinformação. O Comprova já mostrou, por exemplo, o caso de post enganoso que associou sintomas de covid longa às vacinas contra a doença e que não é necessário detox da proteína da vacina contra o novo coronavírus.