Comprova Explica

Investigado por: 2023-09-21

Polarização intensifica desinformação sobre transposição do São Francisco; entenda

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O Projeto Comprova e agências de checagem do Brasil já investigaram cerca de 30 conteúdos que desinformavam sobre a “paternidade” e o funcionamento daquela que é considerada a maior obra de infraestrutura hídrica do Brasil. A localização do Projeto de Integração do São Francisco (PISF) – ou transposição do São Francisco, como também é chamado – ajuda a explicar a disputa, já que o Nordeste é fundamental do ponto de vista político e eleitoral, avaliam especialistas.

Conteúdo analisado: A transposição do São Francisco é alvo frequente de boatos e informações enganosas nas redes sociais pelo menos desde 2019. A partir da transição entre os governos de Jair Bolsonaro (PL) e de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o tema passou a ser um dos mais problemáticos no cenário da desinformação.

Comprova Explica: Considerada a maior obra de infraestrutura hídrica do Brasil, a transposição do Rio São Francisco tem como objetivo levar água do Velho Chico para regiões que sofrem com a seca e a estiagem, no Semiárido do Nordeste brasileiro. A proposta do empreendimento, cujo custo total é de R$ 14 bilhões aos cofres da União, é garantir a segurança hídrica de 12 milhões de pessoas em 390 municípios dos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte.

A obra é dividida nos eixos Leste (217 km) e Norte (260 km) e consiste na construção de canais, reservatórios e estações de bombeamento para integrar as águas do Rio São Francisco – que nasce em Minas Gerais e passa pela Bahia, antes de chegar a Pernambuco, onde a obra se inicia –, a outras bacias hidrográficas dos estados atendidos pelo projeto. Além disso, conta com os ramais associados do Agreste (71 km), Apodi (115 km) e Salgado (36 km).

Pensado desde o final da década de 1840, o projeto de integração das bacias do Rio São Francisco com as bacias do Nordeste Setentrional só começou a sair do papel no segundo mandato de Lula (2008-2011). Desde então, o empreendimento foi marcado por atrasos, problemas de planejamento e execução, além do custo ambiental e da incerteza de que, efetivamente, ele atingiria o objetivo de garantir abastecimento de água e contribuir com o desenvolvimento da região.

Diante do tamanho, da complexidade e do impacto social e político, a transposição é alvo de disputas e, como consequência, tema frequente de desinformação. Nos últimos anos, o Projeto Comprova e outras agências de checagem pelo Brasil desmentiram cerca de 30 conteúdos sobre o projeto – desde a responsabilidade por entregas até o funcionamento das estações de bombeamento e dos canais. Em abril deste ano, o Comprova explicou detalhes do projeto. Agora, este Comprova Explica traz mais detalhes sobre o cenário de desinformação que cerca a transposição e a importância política e social da obra.

Como verificamos: Buscamos no Google informações sobre a transposição do São Francisco, além dos tipos de conteúdos desinformativos que têm circulado pelas redes a respeito do tema. Também mapeamos os pontos da obra que já foram alvo de alguma desinformação e reunimos checagens sobre o assunto de agências como Estadão Verifica, Lupa, Aos Fatos, Fato ou Fake (g1), Reuters e do próprio Comprova.

Além disso, falamos com o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional (MIDR), com o cientista político e professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Cláudio André de Souza; com a cientista política, professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e secretária executiva da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), Luciana Santana.

Também ouvimos a jornalista, historiadora e doutora em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) Catarina Buriti, que é pesquisadora do Instituto Nacional do Semiárido (INSA), ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), e coautora do livro “Um século de secas: por que as políticas hídricas não transformaram o semiárido brasileiro?”, publicado em 2018 pela Chiado Books.

Por fim, entrevistamos Ruben Siqueira, atual coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), na Bahia. De 2005 a 2015, ele foi coordenador de projeto da Bacia do São Francisco na CPT.

Caminhos da desinformação

Os conteúdos desinformativos sobre o Projeto de Integração do São Francisco não fazem distinção entre os eixos Norte e Leste, embora, mais recentemente, o primeiro tenha ficado mais tempo em evidência. Isso porque, em novembro do ano passado, foi identificado um defeito na Estação de Bombeamento EBI-3, na cidade de Salgueiro (PE), que impediu o funcionamento das bombas e suspendeu a liberação de água para canais do Eixo Norte.

Como a estação só teve o funcionamento interrompido em janeiro deste ano, para a realização do reparo necessário, diversas publicações passaram a acusar o governo Lula de desligar as bombas da transposição deliberadamente, com a intenção de deixar a população sem água e sofrendo com a seca. Isso gerou conteúdos desinformativos sobre a Barragem de Jati (CE) e suas cascatas, vistas das margens da rodovia CE-153, sobre o Reservatório de Negreiros (PE) e sobre a Estação de Bombeamento Vertical EBV-6, em Sertânia (PE).

Antes disso, publicações já atribuíam falsamente ao governo Bolsonaro entregas no Eixo Norte, como o Canal de Penaforte (CE), as estações de bombeamento EBI-1 e EBI-2, em Cabrobó (PE). No Eixo Leste, entregas feitas por Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB) também foram falsamente parar na conta de Bolsonaro: a inauguração da Ponte do Rio da Barra (PE) e do canal do Rio do Feijão (PB), por exemplo.

Além disso, vídeos mostravam canais de outra obra – o Cinturão das Águas do Ceará (CAC) –, alguns ainda em construção, como se fossem da transposição, sem água. No Eixo Leste, até uma valeta de escoamento de água da chuva, seca, foi falsamente identificado um canal da transposição sem água, graças ao atual governo.

Mais de um século de buscas de solução para a seca

A ideia de levar água do São Francisco a outras regiões – que não o próprio curso do rio – não é recente: “Desde fins do século XIX, quando a seca já era vista como uma calamidade no Nordeste e a busca pela solução do problema se tornou uma questão de Estado, diferentes políticas públicas foram implementadas: no início do século XX, predominava a política de construção de grandes açudes, enquanto mais para o fim do mesmo século, ganharam importância as políticas descentralizadas de construção de cisternas, ao lado das residências”, explica Catarina Buriti, que é jornalista, historiadora, doutora em Recursos Naturais pela UFCG e pesquisadora do Instituto Nacional do Semiárido.

Ousado, o projeto de integração das bacias do Rio São Francisco com as bacias do Nordeste Setentrional, afirma Catarina, já tinha sido pensado naquela época. Entre o final da década de 1840 e o início dos anos 1850, o imperador Dom Pedro II encomendou ao engenheiro Henrique Guilherme Halfeld um relatório sobre a exploração do São Francisco. O documento, de mais de 100 páginas, foi publicado em 1860, como já mostrou o Comprova em 2021.

| Primeira página de relatório de exploração do Rio São Francisco, publicado em 1860, a pedido do imperador Dom Pedro II. Crédito: Brasiliana Iconográfica.

Os estudos de engenharia, aponta Catarina, “comprovaram a viabilidade da transposição do rio para combater a escassez hídrica nos territórios do atual Nordeste, que não possuíam rios perenes”, mas o projeto não saiu do papel, talvez pelas limitações da época, o que só veio acontecer mais recentemente. Isso aconteceu no momento que Catarina afirma ser, talvez, o mais crítico em termos de escassez hídrica na região Nordeste, de 2011 a 2017, quando foi registrada a maior seca da história a atingir os municípios do Semiárido brasileiro.

É importante lembrar que o projeto de transposição executado nas últimas décadas não é o mesmo daquela época – o atual começou a ser gestado na década de 1990 e começou a sair do papel no segundo mandato de Lula. Até 2016, ou seja, no último ano completo de mandato da ex-presidente Dilma, a execução física da obra alcançou 95,5% nos eixos Norte e Leste, segundo dados do MIDR, em meio a atrasos, mudanças de planejamento e problemas, como canais rachados.

Apesar disso, a obra seguiu pelos governo de Temer – que iniciou a operação do Eixo Leste – e Bolsonaro, que concluiu as entregas do Eixo Norte e executou 99,95% das obras do Ramal do Agreste e 10,84% do Ramal do Apodi (trechos associados, mas que não fazem parte do traçado da transposição, que é dividida nos Eixos Norte e Leste).

Obra vista como “redenção”

Em uma região que sofre tanto com os efeitos da seca, não era de se surpreender que uma obra capaz de levar água do Rio São Francisco onde antes não chegava seria vista como uma verdadeira “redenção”. Mas ela não foi a única a ser encarada assim. “Historicamente, as políticas para a região eram vistas como a ‘redenção’ para o Nordeste e com a transposição não foi diferente. Cada nova política hídrica que surgia, ao longo da história do Nordeste, era vista como a ‘grande redenção’ da região. Os políticos locais e seus representantes no Parlamento tiveram um papel na propagação dessa ideia de ‘salvação’ da população”, aponta Catarina.

É o “discurso da seca”, como define o atual coordenador da Comissão Pastoral da Terra na Bahia e ex-coordenador da Bacia do São Francisco na mesma CPT, Ruben Siqueira. Ele é crítico ao projeto no governo Lula e a coalizão política deste a uma “direita nordestina”: “Essas tradicionais oligarquias sempre usufruíram desse discurso da seca, dessa economia da seca, dessa cultura da seca, falsa, como se fosse falta de água, mas não é. É falta de terra, de política pública, de justiça social, de política ecológica”, aponta Ruben.

Essa ideia de que a transposição do São Francisco seria a salvação ajudou a transmitir uma falsa ideia, mas bastante disseminada, de que a obra resolveria todos os problemas de seca e escassez de água – e, ao mesmo tempo, de que ela bastaria para que as pessoas convivessem com o Semiárido sem a necessidade de outras estratégias, o que não é verdade. Mais do que isso, chega a ser uma ilusão, já que, com as mudanças climáticas, as secas, como eventos climáticos extremos, estão mais recorrentes, explica Catarina, que não ignora as questões ambientais da obra, mas reconhece sua importância. “A transposição é mais uma política pública importante para a região, mas não a única. Funciona de forma integrada com outras ações de adaptação à seca”, diz.

Ela se refere à construção de tecnologias sociais hídricas, descentralizadas e de baixo custo, como as cisternas de placas que ficam ao lado das residências rurais para captar água da chuva, e à Operação Carro-Pipa, através da qual a Defesa Civil e o Exército Brasileiro, em articulação com estados e municípios, abastecem as áreas mais vulneráveis com água potável. O Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC), por exemplo, foi capaz de reduzir de 36 para 12 dias por ano o tempo que mulheres rurais – as principais responsáveis pela atividade – usavam apenas para transportar água de açudes para suas casas.

| Cisterna construída ao lado de residência rural para captação de água da chuva em Quixadá (CE). Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.

Para Ruben Siqueira, são projetos como o P1MC, premiado em 2009 pela Organização das Nações Unidas, que funcionam para a convivência com a seca, porque se inspiram no que a própria natureza faz – reter água para o período em que ela não virá. “A caatinga é exuberante quando floresce. Tem esse jeito dela de segurar a água. Tem uma experiência incrível da natureza que aprendeu a viver assim, guardando água. Então, por que o ser humano não faz o mesmo? Aprende a guardar, acumular”, afirma, lembrando que a ideia de captar água da chuva e guardá-la começou com a sociedade civil organizada, no norte da Bahia, entre os anos 1980 e 1990.

| O mandacaru é uma planta nativa do Brasil, adaptada às condições climáticas do Semiárido. Ela consegue reter uma quantidade grande de água em suas raízes, talos ou folhas. Foto: Manuela Cavadas/Acervo ASA.

O projeto das cisternas foi levado ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB); depois, a construção delas seguiu – e avançou – nos governos petistas, mas praticamente não andou na gestão de Bolsonaro. Esta reportagem publicada pelo UOL em setembro do ano passado mostra que, de 2003 a 2018 (governos Lula, Dilma e Temer), foram entregues 929 mil cisternas de água para consumo humano. De janeiro de 2019 a junho de 2022, na gestão Bolsonaro, foram 37,6 mil.

Apesar de especialistas e da própria sociedade civil reconhecerem que a tecnologia das cisternas é fundamental para o convívio com a seca, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro afirmam em um volume considerável de publicações desinformativas sobre a transposição do São Francisco que o atual governo, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, optou por “desligar” o bombeamento de água para beneficiar donos de carros-pipa e fazer voltarem as cisternas, como se eles tivessem deixado de existir ou de ser necessários por conta da transposição.

“Esses vídeos geralmente são produzidos por pessoas que desconhecem minimamente a realidade da seca no Semiárido brasileiro”, aponta Catarina, lembrando que a Operação Carro-Pipa utiliza veículos cadastrados no programa para abastecer municípios em situação de emergência ou calamidade pública pela seca ou pela estiagem.

Também há operações privadas e, em geral, mesmo que haja registros de fraudes, há um rigor na fiscalização dos veículos usados na operação do Exército. “Em geral, os carros-pipa cumprem um papel importante na distribuição e no acesso à água para populações mais distantes, de modo que não consigo enxergar lógica ou conexão com a necessidade de desligamento do sistema de transposição. Pelo contrário, a transposição leva água para locais mais próximos, facilitando para que esses agentes transportem água com menor custo, em termos de gasto de combustível, por exemplo”, explica a pesquisadora.

| Operação Carro-Pipa, do Exército, atende municípios atingidos por seca ou estiagem no Semiárido do Nordeste do Brasil, além do norte de Minas Gerais e Espírito Santo. Foto: Exército Brasileiro.

Da mesma forma, os conteúdos que, ao exibir um canal da transposição sem água, afirmam que a população do Nordeste foi deixada para viver sob a seca não fazem sentido. Isso porque, como já mencionado em checagens ao longo de 2023, a água do São Francisco não corre pelos canais da Transposição ininterruptamente, e sim quando há demanda. O Ceará, por exemplo, que constrói o Cinturão das Águas do Ceará para levar água da transposição ao reservatório Castanhão, só demanda água do Velho Chico no período chuvoso – uma das razões para isso é evitar perdas com a evaporação.

Impacto social e político do projeto para o Nordeste brasileiro

Para o cientista político Cláudio André de Souza, professor da Unilab, Campus dos Malês (BA), mesmo que não seja a única solução para a convivência da população do Semiárido com a seca, a transposição do Rio São Francisco tem um impacto significativo no Nordeste. “Há determinadas obras que não só transformam a vida das pessoas, como têm impacto, geram emprego, mobilizam milhares de pessoas e, lá na ponta, vão significar, para diversos agricultores que estão no sertão, o acesso à água, que desemboca diretamente na questão produtiva”, diz.

Segundo ele, apesar dos discursos das oposições ao longo dos anos, de que a obra não daria certo e de que seria um “elefante branco”, o impacto positivo é inegável: “A questão da água é, literalmente, um ponto de inflexão. As pessoas são outras, têm outras perspectivas, outros sonhos, outra forma de se socializar quando passam a ter água. Essa é uma demanda que não é só para o acesso à água do ponto de vista do consumo humano, mas também envolve uma discussão sobre a capacidade produtiva e a transformação de áreas que hoje são legadas a um nível baixíssimo de desenvolvimento social e econômico”, pontua.

Também cientista política e professora da Ufal e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPI, Luciana Santana observa que a obra da transposição foi muito polêmica do ponto de vista ambiental e pela incerteza se, efetivamente, faria uma mudança estrutural tão importante como se propunha. Para ela, houve sim mudança e impacto social, principalmente no sertão.

“Você tem ali um impacto muito grande e que contribuiu, sim, com a mudança. Houve um processo de interiorização com a chegada da água em determinados locais onde antes o rio não chegava. Tem um desenvolvimento maior, uma integração maior também dos estados. Então, regionalmente, houve uma mudança substancial de desenvolvimento estrutural, que era necessária”, aponta.

Os impactos ambientais, diz, também são inegáveis, mas não há como voltar atrás, uma vez que a obra já está em pleno funcionamento. “Nas cidades que estão ao redor de onde houve a transposição, você olha o antes e o depois, e é muito impactante. De alguma maneira, você melhorou a situação e a qualidade de vida das pessoas ali nessa região. Até por esse impacto, a gente tem essa polarização tão grande nessa obra”, afirma Luciana.

| Região do Semiárido brasileiro. Foto: Arquivo/Agência Brasil.

Um exemplo mais pontual de como a transposição fez diferença na vida das populações do Semiárido brasileiro é citado pela pesquisadora Catarina Buriti ao lembrar o impacto da chegada das águas da transposição, em março de 2017, à bacia hidrográfica do rio Paraíba do Norte, na microrregião dos Cariris paraibanos, a região geográfica mais seca do Brasil. “Na época, o açude de Boqueirão, reservatório que abastece 1 milhão de pessoas de Campina Grande (PB) e mais 18 municípios do entorno, estava no volume morto, quase em colapso, com apenas 3% da sua capacidade. Em poucos meses da chegada das águas da transposição, foi decretado o fim do racionamento”, lembra.

Ruben Siqueira, da CPT, não vê desta forma. Para ele, por onde os canais da transposição passaram, as áreas deixaram de ser terras de pequenos produtores rurais para de médios e grandes. “Nós conhecemos, andamos por lá durante o processo de construção, antes das obras, durante e depois. Transformou a região em um lugar de grandes e médios proprietários, não mais de pequenos produtores rurais. Quem não conseguiu se empregar nas empresas que surgiram ali foram para Fortaleza, Juazeiro do Norte, Caruaru, Serra Talhada, outros lugares. [A transposição] é um equívoco total e completo, é um crime. O custo é altíssimo. É a água mais cara do mundo”, critica.

Sobre a gestão e o acesso, Catarina observa que levar água ou aumentar a quantidade dela não é suficiente para resolver os problemas da seca ou estiagem. “Há vários problemas de gestão das águas que precisam ser revistos para assegurar o acesso prioritário, conforme previsto na legislação. Ou seja, a Transposição aumenta a quantidade de água nessas áreas, e isso é muito importante, mas é necessário a gestão adequada para assegurar o uso da água aos múltiplos usuários, principalmente para as comunidades mais vulneráveis”, alerta.

Disputa de “paternidade” pela transposição

A polarização em torno da obra mencionada por Luciana Santana é justamente o que faz com que, nos últimos anos, a transposição do São Francisco tenha sido alvo de tanta desinformação. “Utilizar a desinformação em relação à transposição tem relação com você garantir, abarcar uma posição política contra ou a favor de algum adversário político. Isso fica muito evidente com relação a dizer quem é o responsável pela obra, qual a porcentagem da obra foi finalizada ou quem finalizou”, exemplifica.

No governo Bolsonaro, por exemplo, diversas postagens nas redes buscaram inflar a responsabilidade dele pela obra, ainda que ele a tenha recebido com mais de 90% da execução física concluída. Para apoiadores – e no discurso do próprio governo na época – o agora ex-presidente era o verdadeiro responsável por levar água ao Nordeste, algo que nem Lula, nem Dilma, nem Temer teriam conseguido fazer, o que não é verdade. Além de todo o Eixo Leste ter entrado em operação no governo Temer, trechos do Eixo Norte já tinham sido inaugurados por Dilma.

“Essa busca por paternidade, essas inaugurações de tempos em tempos são uma tentativa de resgate mesmo daquilo ali como um capital político. E o mais bem sucedido é aquele que consegue buscar a maior propaganda positiva para si”, diz Luciana. É um pensamento parecido com o de Cláudio André de Souza, para quem a execução da obra serve como um indicativo de eficácia de governo.

| Em março de 2017, enquanto o então presidente Michel Temer entregava o Eixo Leste da Transposição, os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff fizeram uma “inauguração popular da Transposição do Rio São Francisco” na cidade de Monteiro, na Paraíba. Crédito: Ricardo Stuckert/Instituto Lula.

“Se trata de uma obra muito complexa, gigantesca, que toca um assunto que é muito caro a uma parte importante da população brasileira. A gente está falando da convivência com o Semiárido, da chegada da água, e isso tem um valor muito grande do ponto de vista do comportamento político, da percepção de eficácia governamental, de presença de Estado na vida de milhares de pessoas”, observa.

Ruben Siqueira também fala sobre o valor político da obra para o governo Lula. “Era uma obra que tinha um grande apelo popular: Lula, o nordestino fugido da seca, vai resolver, vai fazer aquilo que Dom Pedro II não conseguiu, que era a transposição”, aponta.

Levar a cabo a transposição do São Francisco, explica Cláudio André, era uma forma de Lula, principalmente, levar uma obra estruturante ao Nordeste e encarar o desafio de mudar a relação dos governos com aquela parte do Brasil. Não bastava chegar com o Bolsa Família, aponta, era preciso ter um projeto estruturante que mudasse a correlação de forças, internamente, pensando no Nordeste.

Luciana Santana concorda: “Para o governo Lula é uma obra que teve um impacto muito expressivo em termos de infraestrutura e entrou naquele pacote de que, no Nordeste, não são apenas políticas públicas de assistência social, mas também de infraestrutura, de mudança, que fazem diferença regionalmente”.

O problema, no entanto, é que, apesar do investimento alto, a obra não foi concluída nos governos petistas, antes do impeachment de Dilma, em 2016. É daí que vem a entrada de Bolsonaro na disputa pelo capital político: “Para ele, trabalhar nessa obra foi como se ele tivesse ali investido também. Ao mesmo tempo, ele quer mostrar para o Nordeste, que é um lugar onde ele tem uma baixa aprovação, ele é politicamente menos quisto do que Lula, que ele estava olhando também para a região”, diz Luciana.

| Em junho de 2020, Bolsonaro também “inaugurou” a obra. Foto: Alan Santos/PR/Divulgação.

A diferença, aponta Cláudio André, é que, no Nordeste, Lula “joga em casa”, inclusive pela marca do lulismo, que sempre foi de combate à pobreza, e por ser uma região onde ele e o PT sempre tiveram protagonismo. “Essa é uma obra que tem um alto investimento e eu entendo que é uma obra muito simbólica, principalmente para Lula. Para Bolsonaro, significava ter ganhos eleitorais. Mas, a gente sabe que Lula apresenta um padrão de voto muito consistente no Nordeste. É uma região em que ele tem estabilidade na competição política”, explica.

Enquanto isso, para Bolsonaro, deixar um “legado” de sua gestão no Nordeste poderia significar uma possibilidade, ainda que bastante remota, de sustentar uma candidatura em 2026, aponta Cláudio André. “O tempo inteiro no governo Bolsonaro, ele tentou imprimir uma marca, algum tipo de agenda que fizesse com que ele de fato entrasse no Nordeste, e se a gente olhar para as eleições de 2022, se ele tivesse tido um desempenho melhor no Nordeste, além do Sudeste, e poderia de fato ter ganhado as eleições”, afirma.

Qual a situação da transposição do São Francisco agora?

Atualmente, segundo o MIDR, estão concluídos 548 km da extensão total, de 699 km, da transposição (considerando eixos Norte, Leste e ramais). A quilometragem finalizada corresponde a ambos os eixos e o Ramal do Agreste, que foi entregue em 2021.

Por enquanto, o Ramal do Apodi tem 27% das obras concluídas e a previsão do governo federal é entregá-lo em 2025. Já o Ramal do Salgado está em fase inicial. O edital de licitação para a execução das obras foi publicado em 2022.

O MIDR alerta que, em virtude da dinâmica de construção do empreendimento, não é adequado se considerar a extensão “concluída” em cada gestão federal, já que alguns trechos tiveram grande parte executada em uma gestão, mas apenas entraram em operação (foram concluídas) na gestão seguinte.

Conforme o ministério, ambos os eixos estão operando em toda a extensão. Apenas a EBI-3, que apresentou defeito em novembro do ano passado e teve o funcionamento interrompido em janeiro deste ano, está operando com 50% da sua capacidade instalada, desde julho. Em nota, o MIDR informou que está tomando as providências para restabelecimento da operação com 100% da capacidade no início de 2024.

Por que explicamos: O Comprova Explica esclarece temas importantes para que a população compreenda assuntos em discussão nas redes sociais que podem gerar desinformação. Por ser uma obra que afeta a vida de milhões de pessoas, que envolveu diversos governos e um alto investimento financeiro, a Transposição do São Francisco é objeto de interesse de desinformadores. Como é uma obra complexa, é importante que as pessoas entendam seu funcionamento, a situação atual das estruturas e os impactos sociais trazidos por ela para que não compartilhem conteúdos falsos ou mentirosos.

Outras checagens sobre o tema: Alvos frequentes de desinformação nas redes sociais, temas envolvendo a Transposição do São Francisco já foram checados por diversas agências como Estadão Verifica, Lupa, Aos Fatos, Reuters, Fato ou Fake e UOL Confere.

Desde 2019, o Comprova já verificou ao menos dez conteúdos relacionados à transposição. Por exemplo, mostrou que morte de peixes na barragem de Oiticica não foi causada pelo fechamento de comportas; que posts fazem comparações enganosas sobre transposição para exaltar Bolsonaro; e que exército não refez todo o trecho da transposição inaugurado por Temer e Lula.