Conteúdo investigado: Postagem com link de texto publicado no site do grupo Médicos Pela Vida afirma que miocardite e pericardite são causadas apenas pelas vacinas e não pela covid-19. O conteúdo aponta que a informação é resultado de cinco estudos científicos, todos em inglês. O MPV acrescenta que o “Brasil precisa interromper imediatamente a obrigatoriedade das vacinas covid-19 em crianças de 6 meses a 5 anos”, pois essa medida seria contrária às “melhores evidências científicas disponíveis”.
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Conclusão do Comprova: Publicação do Médicos pela Vida engana ao afirmar que cinco estudos – um deles já verificado em outubro e classificado pelo Comprova como enganoso – concluíram que miocardite e pericardite, condições caracterizadas pela inflamação do músculo cardíaco e inflamação do revestimento externo do coração, respectivamente, são causadas apenas pelas vacinas e não pela covid-19.
Especialistas ouvidos pelo Comprova apontam que os ensaios citados pelo grupo para corroborar a afirmação são, na verdade, de revisão (permitem somente a atualização de informações e um resumo sobre as principais pesquisas em torno de um determinado tema) ou observacionais (descritivos e analíticos) e não possibilitam identificar as relações de causalidade entre dois fatores.
Para estabelecer o chamado nexo causal (causa de um evento decorrente de dois fatores) são necessários ensaios experimentais ou de intervenção (entenda melhor abaixo, na análise sobre os ensaios). Não é o caso dos estudos citados pelo MPV, grupo criado na pandemia e que defende “tratamento precoce” e medicamentos como a hidroxicloroquina contra a covid-19. O MPV já foi condenado pela Justiça do Rio Grande do Sul a pagar R$ 55 milhões por estimular tal tratamento.
Lilian Martins, infectologista pediátrica e professora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma não ser inesperada a ocorrência de efeitos adversos em razão da vacinação, incluindo o desenvolvimento de miocardite ou pericardite, mas ressalta que um melhor entendimento da relação causal entre os dois eventos ainda é necessário.
Segundo a especialista, devido à administração global de mais de 13 bilhões de doses, reações adversas são esperadas, mas há uma baixa frequência de desenvolvimento de miocardite ou pericardite em vacinados.
“E, mesmo que futuramente se comprove a relação da vacina com miocardites graves e óbitos, deve-se ressaltar que o número de casos relatados através dos artigos de revisão são muito poucos diante da quantidade de doses aplicadas em todo o mundo”, afirma. “Em resumo, as vacinas atuais contra a covid- 19 demonstraram claramente sua eficácia e, sem dúvida, provaram que os benefícios superam os riscos por uma grande margem”, destaca.
“O MPV também fala sobre os efeitos adversos em crianças de seis meses a cinco anos para pedir a interrupção do processo de imunização nesse público, mas, nesta faixa etária, efeitos como miocardite e pericardite não são observados”, complementa a professora.
André Prudente, infectologista e diretor do Hospital Giselda Trigueira, unidade referência em doenças infectocontagiosas em Natal (RN), diz que a literatura aponta que vacinados e não vacinados podem desenvolver as duas condições, mas reforça que a eficácia da imunização supera, em muito, possíveis efeitos adversos.
“Afirmar que só o imunizante provoca miocardite e pericardite significa dizer que essas doenças não existiam antes da vacina de covid-19. Estamos falando, porém, de duas situações que podem ocorrer após qualquer doença viral, como influenza, dengue, chikungunya, zika e a própria covid, óbvio. A miocardite também pode ser gerada, em menor grau, a partir de efeitos colaterais de qualquer vacina, mas não exclusivamente em decorrência delas”, sublinha.
“Agora, sem sombra de dúvida, é muito melhor estar vacinado e evitar todas as outras complicações da infecção pelo coronavírus. A vacina é segura, eventualmente pode provocar efeitos, mas em escala bem menos frequente do que a doença”, diz o médico.
Carlos Carvalho, professor titular de Pneumologia da Faculdade de Medicina da USP, aponta que a incidência de efeitos como a miocardite em pessoas vacinadas contra a covid-19 é de uma em cada 10 mil. “O nexo causal de que a vacina corresponde a uma proporção grande de miocardite é completamente falso. Um estudo robusto deste ano acompanhou pessoas com miocardite provocada por outras causas que não a covid-19, bem como pacientes que tiveram a infecção provocada pelo Sars-CoV-2 que evoluíram para miocardite e indivíduos vacinados que também evoluíram para a inflamação do músculo cardíaco”, descreve.
“O resultado observado é que não existe nenhuma relação entre tomar vacina e desenvolver miocardite. É um ensaio publicado no Journal of the American Medical Association (Jama) e que põe uma pá de cal nessa história de que a vacina de RNA mensageiro tem um fator causal maior [que provoca miocardite ou pericardite]”, comenta Carvalho.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Análise
A pedido do Comprova, os especialistas ouvidos nesta reportagem analisam, a seguir, quatro dos cinco estudos citados pelo MPV para afirmar, de forma enganosa, que apenas as vacinas provocam miocardite e pericardite. O estudo que não aparece aqui, conforme mencionado no início deste texto, já foi destrinchado pelo Comprova no mês passado. Confira:
Estudo 1
O primeiro estudo utilizado pelo grupo para afirmar que pericardite e miocardite não são causadas pela infecção provocada pelo coronavírus é intitulado “Incidência de miocardite e pericardite em doentes não vacinados após a covid-19 – um grande estudo de base populacional”. Ele é de 2022 e tem origem em Israel. Foi realizado com 196.992 adultos infectados pela doença entre março de 2020 e janeiro de 2021.
Como o título indica, a população analisada não havia passado pelo processo de imunização. O Médicos Pela Vida destacou que não foi observado “aumento na incidência de pericardite ou miocardite em pacientes adultos se recuperando da infecção por covid-19”, mas não mencionou o fato de os indivíduos não terem sido imunizados.
O professor Carlos Carvalho, da Faculdade de Medicina da USP, aponta que o material mostra apenas uma associação, mas não possui nexo causal. “É um estudo retrospectivo, que não foi delineado nem feito com o objetivo de avaliar a frequência das alterações cardíacas. Neste tipo, são analisados dados já produzidos no passado para gerar uma hipótese a partir da associação entre dois fatores. Mas essa hipótese tem que ser confirmada com um estudo prospectivo, onde o pesquisador acompanha um determinado grupo durante meses ou anos para ver o que que acontece”, explica o professor.
Para esclarecer melhor, o especialista toma como exemplo o próprio estudo citado pelo Médicos Pela Vida. Segundo ele, para estabelecer um nexo causal entre o uso da vacina e o desenvolvimento de pericardite e miocardite seria necessário acompanhar, prospectivamente, populações com covid e que não tomaram a vacina; populações com covid e vacinadas; e populações com miocardite, mas sem covid-19.
“Então, se tivesse muito mais miocardite em quem tomou a vacina do que nas outras situações, seria possível afirmar um nexo causal com o desenvolvimento da inflamação do músculo cardíaco. Mas, no estudo avaliado, a miocardite aparece em outras situações, podendo ter sido provocada por diferentes causas”, conclui Carvalho.
Estudo 2
O segundo estudo utilizado pelo grupo, intitulado “Patologia cardíaca associada à avaliação post-mortem: uma revisão sistemática colaborativa” também é de 2022, mas com origem na Arábia Saudita. Foram estudadas as autópsias de 548 corações de pessoas que morreram com ou de covid-19. A idade média dos falecidos era de 69 anos. O Médicos Pela Vida destacou que o estudo constata “a prevalência média relatada de miocardite extensa, focal ativa e multifocal de 0,0%”.
O infectologista André Prudente cita que o estudo pega dados “bastante limitados” de outros ensaios, única e exclusivamente de pessoas que já morreram, apenas para revisão. Assim como o estudo 1, Prudente afirma tratar-se de um “ensaio que não demonstra causalidade”, uma vez que só é possível falar em causa e efeito em estudos de intervenção.
“Estudos de intervenção são o que a gente chama de duplos-cegos randomizados, aplicados em um grupo de pessoas exposto a um mesmo risco. Por exemplo: divide-se um grupo de mil pessoas pela metade. Em uma parte aplica-se a vacina, na outra, apenas o placebo [composição neutra, sem o princípio ativo que produz efeitos em uma determinada terapia]. Nem a pessoa que está recebendo nem quem está aplicando sabe o que é injetado. Isso é conhecido apenas na randomização, feita em um programa de computador. Depois de avaliar os efeitos da intervenção ao longo do tempo é que o estudo é aberto aos dois grupos para que seja feita uma comparação. Somente a partir daí, é possível falar em causa e efeito”, detalha.
Segundo o infectologista, o ensaio mencionado pelo Médicos pela Vida é apenas observacional, com dados retroativos. “Para estudos sem intervenção, como é o caso aqui, fala-se apenas em possível relação. Portanto, as afirmações da postagem não se sustentam”, afirma André Prudente.
Estudo 3
O grupo citou também o estudo “Achados da autópsia em casos de miocardite fatal induzida pela vacina contra a covid-19” para embasar as declarações. O artigo é de janeiro deste ano, com origem nos Estados Unidos, e se baseia em autópsias de 28 pessoas que morreram após a vacinação. A idade média dos indivíduos foi de 44 anos. O número médio e mediano de dias desde a última vacinação contra a covid-19 até a morte foi de 6,2 e 3 dias, respectivamente. O Médicos pela Vida frisa que os autores estabeleceram “que todas as 28 mortes (100%) foram provavelmente causalmente ligadas à vacinação contra a covid por revisão independente das informações clínicas apresentadas em cada artigo”.
A infectologista pediátrica e professora Lilian Martins ressalta que se trata de um estudo de revisão e que a mera observação da miocardite e do óbito após a imunização não estabelece de forma conclusiva que a vacina seja a causa do evento. “Observa-se uma associação temporal entre o recebimento da vacina e o desenvolvimento da miocardite/óbito. No entanto, deve-se considerar a possibilidade de demais elementos (medicamentos, drogas, fatores de risco e outras doenças) que possam ter contribuído para o desenvolvimento da miocardite ou para a morte do paciente, não permitindo a conclusão aqui quanto à causa definidora, como os autores sugerem”, diz.
Martins destaca que o próprio estudo não mostra a exclusão de outras possíveis causas da doença, as quais devem ser consideradas. “Estabelecer uma ligação causal direta entre um evento adverso específico e uma vacina com base apenas em relatos de casos individuais é geralmente arriscado e repleto de desafios. Além disso, indivíduos que pareciam saudáveis no momento da vacinação podem ter problemas de saúde não detectados”, pondera.
Ela afirma que estabelecer ou rejeitar a causa definitiva de um evento específico não é tarefa fácil, daí porque a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a realização de avaliações de causalidade em escala populacional, ao contrário do estudo aqui apresentado. “O artigo em questão sugere a relação da vacina com os casos fatais de miocardite em indivíduos de diferentes idades, sendo a maioria deles acima de 30 anos, após diferentes doses da vacina e com intervalos diversos após a aplicação, alguns deles depois de 14 dias. A literatura hoje mostra que o maior risco de miocardite ocorre em jovens menores de 30 anos, após a segunda dose e nos primeiros 14 dias posteriores à imunização”, conclui.
Estudo complementar
O grupo citou, por fim, um estudo complementar intitulado “Manifestações cardíacas e resultados da miocardite associada à vacina contra a covid-19 em jovens nos EUA: resultados longitudinais do estudo multicêntrico Myocarditis After covid Vaccination (MACiV)”. Com origem nos Estados Unidos, o ensaio foi realizado em 38 hospitais do país, onde 333 pacientes com miocardite associada à vacina de covid-19 foram comparados com 100 pacientes com síndrome inflamatória multissistêmica em crianças. Foram incluídos pacientes com menos de 30 anos de idade com diagnóstico clínico de miocardite aguda após vacinação contra covid-19.
O site do grupo destaca a constatação do estudo: “A lesão cardíaca pela vacina é persistente. Depois de 178 dias de acompanhamento, em média, a cicatrização cardíaca ainda estava presente em 60% dos pacientes no acompanhamento”.
Segundo André Prudente, o estudo, assim como os demais, é observacional e retrospectivo, sem que seja estabelecida uma relação de causa. “Foram questionadas somente pessoas que tiveram miocardite e observou-se que havia bem mais gente com a condição e que foi vacinada do que o contrário. Mas isso também não comprova absolutamente nada, porque no período do estudo [entre abril de 2021 e novembro de 2022], a maioria das pessoas já estava imunizada. Também não se sabe em que época as pessoas avaliadas tiveram miocardite – se a condição ocorreu nove meses depois da vacina, não há relação alguma entre uma coisa e outra”, detalha.
Casos são raros
Em julho de 2021, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emitiu um alerta à sociedade sobre o risco de miocardite e pericardite associadas à vacinação contra a covid-19 com imunizantes baseados em RNA mensageiro (RNAm). O alerta ocorreu após a agência tomar conhecimento de casos dessas condições registrados pela agência reguladora dos Estados Unidos (FDA).
A própria Anvisa esclareceu, contudo, que o risco de ocorrência desses eventos adversos é baixo, embora tenha recomendado aos profissionais de saúde que fiquem atentos e perguntem às pessoas que apresentarem sintomas se elas foram vacinadas, especialmente com a vacina da Pfizer.
Conforme verificação do Comprova de outubro passado, casos de miocardite e pericardite como efeito adverso pós-vacinação com imunizantes de mRNA são conhecidos e raros. A informação consta na bula da vacina Pfizer-BioNTech (BNT162b2), também chamada Comirnaty. Segundo a bula, casos muito raros de miocardite e pericardite foram relatados após a vacinação. A proporção em pessoas acima de 5 anos de idade é de menos de 1 caso a cada 10 mil doses aplicadas.
O Comprova procurou o Médicos pela Vida, mas a conta do grupo no X está configurada para não receber mensagens. Eles também não responderam aos contatos feitos por e-mail.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até 11 de novembro, a publicação do Médicos pela Vida no X acumulava 238 mil visualizações.
Fontes que consultamos: Os infectologistas André Prudente e Lilian Martins, o pneumologista Carlos Carvalho e estudos mencionados pelo MPV.
Por que o Comprova investigou essa publicação: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas e eleições e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: As vacinas contra a covid-19 são utilizadas frequentemente como peças de desinformação para falar de efeitos adversos em crianças. O Comprova já mostrou que não é verdade que ela fez explodir doenças cardíacas em crianças e que é falsa a alegação de que a OMS teria admitido que bebês de mães imunizadas estariam nascendo com problemas no coração. Também mostrou que a proteção oferecida pelos imunizantes supera o risco de miocardite em crianças.