Conteúdo investigado: Postagens em redes sociais e vídeos que afirmam que, por causa da publicação do Decreto Federal 11.273/2022, as Forças Armadas poderão ter controle dos órgãos estaduais de segurança pública e que, a partir da atualização do decreto 8.903/2016, o Brasil estaria em Estado de Guerra. Os posts investigados também dizem que o decreto permite que o presidente da República administre as polícias civis e militares e as guardas municipais.
Onde foi publicado: Telegram, Twitter, Youtube e Kwai.
Conclusão do Comprova: É falso que o Decreto Federal 11.273/2022 permita que as Forças Armadas tenham controle de órgãos estaduais de segurança pública. O decreto é uma atualização do Decreto 8.903/2016, que institui o Programa de Proteção Integrada de Fronteira (PPIF) e, assim como o anterior, apenas organiza a atuação de unidades da administração pública federal.
As postagens também desinformam ao dizer que o decreto, publicado em 6 de dezembro pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), coloca o Brasil em Estado de Guerra e que, por consequência, todas as forças policiais e de segurança pública, sejam municipais, estaduais ou federais, estão sob controle do governo federal.
Especialistas em direito constitucional ouvidos pelo Comprova explicam que o Decreto 11.273, na verdade, organiza a atuação das unidades da administração pública federal no âmbito das fronteiras brasileiras. O texto faz isso ao incrementar, com maior efetividade, o combate ao crime organizado no que diz respeito às possíveis ameaças ou agressão que venham a ser praticadas nas zonas fronteiriças do país.
O PPIF também não exerce controle sobre as polícias estaduais e guardas municipais, segundo os juristas. O texto do decreto não evoca qualquer mudança na coordenação das forças policiais, algo que só pode ser feito por emenda constitucional, pois as atribuições entre União, estados e municípios estão definidas no artigo 144 da Constituição.
Jair Bolsonaro também não decretou Estado de Guerra no Brasil, diferentemente do que afirmam as postagens investigadas. Para que o Brasil entre em Estado de Guerra, o presidente da República teria que pedir autorização ao Congresso Nacional para decretar o chamado Estado de Sítio primeiramente. Salvo casos emergenciais de ataque surpresa em que o Congresso esteja em recesso, o que não é o caso.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais.
Até 15 de dezembro o conteúdo desinformativo alcançou:
- No YouTube: 3,3 mil visualizações simultâneas
- No Twitter: 12,3 mil curtidas e 3,324 mil retuítes
- No Telegram: 17,7 mil visualizações
- No Kwai: 124,8 mil visualizações e 17,5 mil interações (curtidas, compartilhamentos e comentários)
O que diz o responsável pela publicação: A reportagem procurou os autores da desinformação em diversos canais, mas ainda não recebeu respostas até a publicação desta verificação.
O canal Melkibrasil, no YouTube, é administrado pelo empresário mato-grossense Osmelki Urizzi Pinto. Já o perfil verificado no Kwai é gerido pela usuária identificada como “Giorgia Barbie”. É dela o conteúdo investigado pela reportagem com o maior número de visualizações. Os dois perfis têm público formado majoritariamente por apoiadores do presidente Bolsonaro.
Como verificamos: Para começar, fizemos uma busca no Google pelo Decreto Federal 11.273/2022, o que nos levou para o documento na íntegra disponível no site oficial do Planalto.
A ementa do decreto informa se tratar de alterações na lei de 2016, que institui o Programa de Proteção Integrada de Fronteiras e organiza a atuação de unidades da administração pública federal para sua execução.
Acessamos o decreto de 6 anos atrás e comparamos os textos. Nele descobrimos que o documento já havia recebido uma atualização em 2019 –o decreto 9.818.
Para uma análise mais profunda dos documentos jurídicos, entramos em contato com dois especialistas: o presidente da comissão de estudos constitucionais da seccional do Rio Grande do Norte da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Vladimir França, e a advogada constitucionalista Vera Chemim.
O que é o Decreto 11.273?
Segundo Vladimir França, presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-RN, que também é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o Decreto Federal 11.273/2022 é uma reforma de outro dispositivo legal, o Decreto Federal 8.903/2016, que institui o Programa de Proteção Integrada de Fronteiras e organiza a atuação de unidades da administração pública federal para sua execução.
. O documento orienta a atuação institucional entre a União, os Estados-membros e municípios em matéria de poder de polícia, ordem pública, segurança pública e defesa nacional no âmbito das fronteiras brasileiras. “Em momento algum este decreto suprime a autoridade dos governos estaduais e municipais nesta matéria”, reforça Vladimir França.
Para a advogada constitucionalista Vera Chemim, o Decreto 11.273/2022 destrincha o que já estava escrito no decreto de 2016, introduzindo maior enfoque às fronteiras, mas não dá mais poder ao presidente.
O que ele mudou no decreto de 2016?
A diferença do Decreto 8.903/2016 para o 11.273/2022, segundo Chemim, é a incrementação, com maior efetividade, do combate ao crime organizado e às possíveis ameaças ou agressão que venham a ser praticadas nas zonas fronteiriças do país. Segundo ela, a atualização normatiza a composição dos chamados Gabinetes de Gestão Integrada de Fronteiras.
A redação do Decreto nº 8.903/2016 já havia sido alterada em alguns dos seus dispositivos pelo Decreto nº 9.818/2019.
A redação do atual decreto, portanto, teve um objetivo principal: expressar claramente que os órgãos que atuarão na prevenção, controle, fiscalização e repressão às infrações administrativas e penais (delitos fronteiriços) terão um caráter de:
- Cooperação interna: com a integração dos órgãos que compõem a administração pública nas esferas federal, estadual e municipal por meio do trabalho conjunto, tanto do ponto de vista administrativo, quanto do ponto de vista penal. Com destaque a atuação dos órgãos de natureza política, como os ministérios e secretarias (dos estados e dos municípios) e seus respectivos órgãos; e
- Cooperação externa que envolve os países vizinhos: com alterações que remetem muito mais ao detalhamento dos órgãos que irão compor o PPIF, sem qualquer modificação significativa, até porque o referido decreto já havia sido alterado pelo Decreto nº 9.818/2019.
Fora isso, o detalhamento inserido no atual decreto, apresentando todos os órgãos da “Administração Pública” que atuarão naquele programa remete à competência privativa do presidente da República de dispor, mediante decreto, sobre a “organização e funcionamento da administração federal (…)” previsto no Inciso VI, alínea “a” do artigo 84 da Carta Magna.
O poder do presidente
Sobre o poder do presidente após as mudanças do decreto de 2016, Chemim diz que a “a hierarquia deve ser respeitada” e que “não há uma ordem diretamente emanada do presidente, a menos que ele esteja sob ameaça”. Ou seja, as ordens relativas à prevenção, controle, fiscalização e repressão dos delitos fronteiriços serão emanadas das autoridades policiais federais, estaduais e municipais que têm a competência para isso.
“É importante lembrar que se trata de delitos fronteiriços, cuja competência e atribuições correspondem aos ministérios e secretarias de cada ente federativo e suas respectivas polícias”, adiciona a advogada constitucionalista.
Regulamentação do PFIF
O governo federal publicou o Decreto 11.273/2022, alterando o Programa de Proteção Integrada de Fronteiras (PPIF), no dia 6 de dezembro deste ano.
O documento tem como objetivo o fortalecimento da prevenção, do controle, da fiscalização e da repressão aos delitos transfronteiriços. Entre as novidades está a inclusão do Programa de Vigilância em Defesa Agropecuária para Fronteiras Internacionais (Vigifronteira) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Apesar de ter sido incluído somente agora ao PPIF, o combate ao trânsito e ao comércio irregular de mercadorias, bens e insumos agropecuários nas áreas de fronteiras já vinha sendo realizado conjuntamente desde 2020. A atuação integra os órgãos de segurança pública, inteligência, além da Secretaria da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda e do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas.
Desde que as atividades começaram, o Vigifronteira foi responsável por 29 operações de combate a ilícitos com mercadorias agropecuárias de forma integrada. Como resultado, foram fiscalizadas 417 propriedades rurais, 3.650 veículos, 57 embarcações e 103 estabelecimentos comerciais, com interdição de 21. Também foram emitidos 435 autos de infração e realizadas 21 prisões em flagrante.
Foram apreendidas 269 toneladas de agrotóxicos, 213 toneladas de fertilizantes, 573 toneladas de sementes, 147 toneladas de produtos de origem animal, 168 toneladas de produtos de origem vegetal, 100 toneladas de produtos para alimentação animal, 24.229 litros de bebidas e 44.751 produtos de uso veterinário, além de 3.257 animais em situação irregular, que geraram um prejuízo aos infratores superior a R$ 20 milhões.
As operações já foram realizadas em 16 unidades da Federação: Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Paraíba, Ceará, Alagoas, Pernambuco, Rondônia, Acre, Pará, Maranhão, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo e Espírito Santo.
O Brasil está em Estado de Guerra?
As publicações checadas afirmam que, a partir da atualização do decreto, o Brasil estaria em Estado de Guerra. Essa alegação é falsa.
O Estado de Guerra ocorre quando um país hostiliza outro e suspende as garantias constitucionais que compõem, potencialmente, ameaças à segurança nacional. O Estado de Guerra pode ser concretizado, com ou sem uma declaração formal de guerra. A segunda hipótese remete a uma agressão estrangeira de “surpresa”.
Para Chemim, não há possibilidade de o Brasil estar em Estado de Guerra graças à modificação de um decreto presidencial de natureza e finalidades diferentes dos fundamentos que justificam uma declaração de Estado de Guerra.
Ainda segundo a especialista, na hipótese de o Brasil entrar em Estado de Guerra, o Presidente da República teria que pedir autorização ao Congresso Nacional para decretar o chamado Estado de Sítio, em que um dos casos que o justificariam seria a declaração de estado de guerra, ou resposta a agressão armada estrangeira, conforme prevê o Inciso II do artigo 137 da Constituição Federal de 1988.
Outra forma de a nação brasileira estar em Estado de Guerra seria por decreto do Presidente da República, sem a autorização do Congresso Nacional, no caso de haver uma agressão estrangeira de “surpresa” durante recesso legislativo, quando não haveria tempo de pedir sua autorização.
Por que investigamos: O Comprova investiga conteúdos suspeitos que viralizam nas redes sociais sobre pandemia, políticas públicas do governo federal e peças que questionam o resultado das eleições presidenciais. Publicações como esta verificada aqui são prejudiciais, pois tentam levantar dúvidas sem fundamentos que podem tumultuar o processo democrático brasileiro.
Outras checagens sobre o tema: O conteúdo também foi verificado e considerado falso por Aos Fatos.
Outros veículos, como A Gazeta, Yahoo! Notícias e Estadão, checaram que Bolsonaro não declarou Estado de Sítio. Essa desinformação circula pelo menos desde 7 de setembro de 2021.