O Projeto Comprova é uma iniciativa colaborativa e sem fins lucrativos liderada pela Abraji e que reúne jornalistas de 41 veículos de comunicação brasileiros para descobrir, investigar e desmascarar conteúdos suspeitos sobre políticas públicas, eleições, saúde e mudanças climáticas que foram compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.
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Saúde

Investigado por: 2021-06-07

Site tira de contexto e-mails de Anthony Fauci sobre máscaras e origem do coronavírus

  • Enganoso
Enganoso
Postagens tiram de contexto e-mails do infectologista Anthony Fauci do início de fevereiro de 2020. Na data em que mensagens foram enviadas, ainda não havia recomendação para uso de máscaras contra covid-19. Um estudo que aponta que o SARS-CoV-2 tem origem natural seria publicado um mês depois.
  • Conteúdo verificado: Texto do site Politz que noticia o “vazamento” de e-mails do infectologista Anthony Fauci em que ele teria dito que o novo coronavírus aparenta ser fruto de engenharia genética e que máscaras são inúteis. O conteúdo foi reproduzido no Facebook e no Twitter.

São enganosas publicações nas redes sociais que tiram de contexto e-mails do infectologista Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID) dos Estados Unidos e um dos principais conselheiros da Casa Branca no combate à pandemia de covid-19. Em mensagens de fevereiro de 2020, o cientista desaconselhou o uso de máscaras a uma colega e recebeu a análise preliminar de um pesquisador sobre a possibilidade de o SARS-CoV-2 ter sido criado em laboratório. Essas opiniões, no entanto, mudaram à medida em que novas informações científicas foram descobertas.

Em entrevista à CNN na última quinta-feira, 3, Fauci disse que, se soubesse naquela época que o uso de máscara é uma maneira eficiente de parar a transmissão da covid-19, não teria recomendado contra a necessidade do equipamento de proteção. O Centro de Controle de Doenças dos EUA (CDC) passou a pedir que os americanos usassem máscaras apenas em abril de 2020.

Além disso, o pesquisador Kristian Andersen, que enviou a Fauci no início de fevereiro um e-mail que dizia que o SARS-CoV-2 parecia “(potencialmente) manipulado”, esclareceu que essa opinião se baseava em análises muito preliminares. Posteriormente, o cientista estudou a sequência genética do novo coronavírus de maneira mais detalhada e concluiu em artigo publicado na Nature Medicine em março de 2020 que o patógeno “não é um produto de laboratório ou um vírus manipulado propositalmente”.

Como verificamos?

Pesquisamos na imprensa americana reportagens sobre e-mails de Anthony Fauci e encontramos publicações do jornal The Washington Post em 31 de maio e do portal Buzzfeed de 1º de junho. A última matéria disponibilizou um documento com todos os e-mails do infectologista, obtidos em um período de janeiro a junho de 2020. Buscamos nesse arquivo as mensagens citadas nos conteúdos enganosos.

Procuramos especialistas que pudessem comentar sobre as teorias de origem do novo coronavírus. Consultamos Aguinaldo Roberto Pinto, professor titular do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Giliane Trindade, professora do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB/UFMG) e Flávio da Fonseca, virologista do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV).

Entramos em contato com o site Politz, que publicou o texto analisado aqui, e os perfis Movimento Avança Brasil e @Helenova31, que reproduziram o conteúdo no Facebook e no Twitter, respectivamente.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 7 de junho de 2021.

Verificação

E-mails foram divulgados, não vazados

É importante ressaltar que os e-mails foram obtidos por meio de Lei de Acesso à Informação. É uma ferramenta de transparência pública pela qual qualquer cidadão pode solicitar informações públicas ao governo, que é obrigado a respondê-las. No Brasil, existe desde 2011.

Os e-mails de Fauci foram obtidos por jornalistas e publicados nos veículos Washington Post, Buzzfeed e CNN na semana passada. O Buzzfeed disponibilizou um documento PDF em que é possível buscar todos os e-mails divulgados. Assim, o Comprova verificou que as correspondências citadas pelo site Politz eram verdadeiras, embora estivessem fora de contexto.

Discussão sobre origem do coronavírus

Fauci trocou e-mails em 1º de fevereiro de 2020 com o pesquisador Kristian Andersen, do laboratório Scripps Research, da Califórnia (veja na página 3.187 do documento). Os dois conversavam sobre um texto jornalístico publicado na Science, que falava sobre a corrida de cientistas para analisar a sequência genética do SARS-CoV-2 em busca da origem do vírus.

Andersen comenta que a reportagem é ótima, mas ressalta que em sua pesquisa ainda não conseguiu entender estruturas únicas do novo coronavírus. Ele diz que algumas das características “parecem (potencialmente) manipuladas”. Escrevendo na sexta-feira, o cientista adiciona que deve obter mais respostas no final da semana. E acrescenta que “ainda temos que examinar com muito mais cuidado, e há outras análises a serem feitas, então essas opiniões podem mudar”.

O e-mail não prova que o vírus tenha sido manipulado em laboratório, como inferem as postagens analisadas. Apenas reflete as considerações iniciais do cientista sobre o assunto. Em 17 de março de 2020, mais de um mês depois da troca de mensagens, Andersen e outros pesquisadores publicaram um artigo científico na revista Nature Medicine. Nele, dizem que “nossa análise claramente mostra que o SARS-CoV-2 não é um produto de laboratório ou um vírus manipulado propositalmente”.

A conclusão do estudo assinado por Andersen foi corroborada em outras pesquisas publicadas em revistas científicas de renome, como a Cell e Nature Microbiology.

Sobre o e-mail a Fauci, Andersen publicou no Twitter que a reflexão inicial é apenas parte do processo científico. O pesquisador escreveu que algumas características incomuns do vírus, como o sítio de clivagem por furina (uma estrutura que torna o patógeno mais transmissível), o levaram a crer que o vírus tivesse sido manipulado. Mas ressaltou que análises posteriores não confirmaram essa hipótese.

“O e-mail a Tony foi baseado em apenas dois dias de análises muito preliminares”, publicou o cientista no Twitter.

Andersen ressaltou que, na época do e-mail, a equipe de pesquisadores ainda não tinha acesso ao genoma do RaTG13 — um vírus encontrado em morcegos que se descobriu ser muito similar ao SARS-CoV-2. “Após nossa análise preliminar, fizemos investigações mais extensas, tanto no genoma do RaTG13 quanto de outros coronavírus, para comparar de forma mais ampla a diversidade genética da família de coronavírus”, escreveu ele no Twitter.

O pesquisador acrescentou que a equipe examinou a literatura do Instituto de Virologia de Wuhan – localizado na cidade chinesa onde foram registrados os primeiros casos de covid-19 -, buscando por vírus que pudessem ser parecidos com o SARS-CoV-2. Segundo Andersen, foram consideradas as possibilidades de emergência natural, manipulação genética e escape de laboratório.

“Muitas das análises foram completadas em questão de dias, e nos permitiram rejeitar rapidamente a hipótese preliminar de que o vírus tinha sido manipulado”, disse ele. “Este é um exemplo clássico do método científico, em que uma hipótese preliminar é descartada em favor de outra hipótese, à medida em que mais dados ficam disponíveis e análises são finalizadas”.

As evidências científicas disponíveis até o momento apontam que o cenário mais viável é que o novo coronavírus tenha origem natural – morcegos são apontados como o repositório mais provável. Um relatório publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em fevereiro de 2021, após expedição à China, não chegou a considerar a hipótese de criação artificial e indicou que a possibilidade de o vírus ter escapado de um laboratório era “extremamente improvável”.

Alguns cientistas, incluindo o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, defendem que a teoria de escape de laboratório deve ser melhor investigada. Em maio, 18 pesquisadores assinaram uma carta na Nature em que dizem que o vazamento acidental “permanece viável”. Depois que esta possibilidade passou a ser mais debatida, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, pediu que agências de inteligência americanas investigassem as origens da pandemia.

Opinião sobre uso de máscaras mudou

Outra troca de e-mails citada no conteúdo enganoso data de 5 de fevereiro de 2020. A presidente da American University em Washington, Sylvia Burwell, entra em contato com Fauci, pois vai viajar e quer saber se deve levar uma máscara. O infectologista desaconselha o uso do equipamento de proteção, dizendo que deve ser utilizado apenas por pessoas infectadas.

“A máscara típica que você compra na farmácia não é muito eficiente em barrar o vírus, que é pequeno o suficiente para atravessar o material”, escreveu ele. “Pode, no entanto, te proteger de gotículas maiores, se alguém espirrar ou tossir em você”.

Respondendo a outra pergunta de Sylvia, sobre que tipo de doação empresários poderiam enviar à China para auxiliar no combate ao coronavírus, Fauci afirma: “o dinheiro será mais bem gasto em medidas médicas, como diagnósticos e vacinas”. Confira na página 3.027 do documento.

Os conteúdos enganosos não deixam claro que a opinião de Fauci à época condizia com as orientações da OMS e do Centro de Controle de Doenças americano (CDC). A primeira entidade só passou a recomendar oficialmente o uso de máscaras em junho de 2020. O entendimento mudou a partir de resultados de uma pesquisa encomendada pela própria OMS. O CDC começou a pedir o uso de máscaras em abril do ano passado. Havia, na época, receio de que faltassem suprimentos para trabalhadores na linha de frente no combate à covid-19.

Fauci também mudou de opinião diante de novas evidências. À CNN americana na última quinta-feira, 3, ele disse que, se tivesse as informações disponíveis hoje, não recomendaria dispensar a máscara. O infectologista afirmou que sua recomendação se baseou nos dados da época, e ressaltou que o conhecimento científico se acumula.

“Claro (que recomendaria o uso de máscaras), se soubéssemos naquela época que uma quantidade substancial de transmissão era de pessoas assintomáticas, se soubéssemos que os dados mostram que usar máscaras fora do ambiente hospitalar funciona, quando não sabíamos disso, é claro”, disse ele.

Outro e-mail citado pelo site Politz e que aborda o uso de máscaras foi encaminhado em 5 de fevereiro de 2020 a Roger Goodell, comissionário da National Football League (NFL), liga de futebol americano dos EUA. Não encontramos esse e-mail no documento divulgado pelo site Buzzfeed. Na suposta mensagem, Fauci teria brincado que não se importava se Roger usasse máscara ou não, desde que ele encontrasse uma forma de parar o avanço do time Cleveland Browns.

Agradecimento a Peter Daszak

Um terceiro e-mail citado pelo site Politz foi encaminhado ao zoólogo Peter Daszak, presidente da organização EcoHealth Alliance, que se dedica a pesquisar a emergência de doenças virais. Daszak escreve um e-mail elogioso a Anthony Fauci, para agradecê-lo pelas declarações públicas a respeito da origem do coronavírus — o infectologista americano sustentou diversas vezes que o SARS-CoV-2 surgiu na natureza, embora tenha recentemente admitido que a teoria de escape de laboratório deve continuar a ser investigada.

Fauci responde a Daszak: “Peter, muito obrigado por sua gentil mensagem”. Veja na página 1.150 do documento. O site Politz diz que o e-mail é prova que havia uma operação para “encobrimento” da verdadeira origem do SARS-CoV-2; no entanto, não há qualquer evidência disso. Os dois se corresponderam apenas uma vez no período divulgado pelo Buzzfeed.

Peter Daszak tem sido questionado nas redes sociais por sua pesquisa anterior com o Instituto de Virologia de Wuhan. Parte dos estudos foi financiada pelo órgão governamental americano Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID), dirigido por Fauci. O objetivo era analisar coronavírus surgidos em morcegos — animal do qual emergiu a SARS em 2003 e de onde cientistas indicam como repositório provável do SARS-CoV-2.

Importante lembrar que o termo “coronavírus” se refere à família de vírus que inclui os agentes que causam a covid-19, a SARS e outras doenças infecciosas.

Nas redes sociais, tem se espalhado a teoria de que esses estudos da EcoHealth Alliance incluíram uso de técnicas de “ganho de função”, o que poderia ser um indício de manipulação artificial do SARS-CoV-2. “Ganho de função” é um termo que descreve um tipo de pesquisa polêmica, em que cientistas modificam geneticamente patógenos para torná-los mais perigosos, ou mais transmissíveis. O objetivo é prever como os vírus podem se comportar. Tanto o NIAID quanto a EcoHealth Alliance negam ter feito experimentos desse tipo.

No início de maio, Fauci chamou a alegação de financiamento a pesquisas de ganho de função de “absurda”. Em audiência no Senado americano em 26 de maio, Fauci voltou a negar que o NIAID tenha concedido bolsa para estudos desse tipo com coronavírus de morcegos. O senador republicano John Kennedy perguntou ao infectologista se os cientistas que ganharam o financiamento poderiam ter mentido para ele. Fauci respondeu “nunca se sabe”, mas acrescentou que acredita que os pesquisadores são confiáveis e atenderam à delimitação da bolsa.

Em fevereiro, o site de fact-checking americano Politifact apurou que, em 2014, o NIAID concedeu uma bolsa de US$ 3,4 milhões à EcoHealth Alliance. A organização firmou uma parceria com o laboratório chinês para fazer análises genéticas de coronavírus originados em morcegos em Yunnan, outra cidade na China. Segundo Fauci, US$ 600 mil foram destinados ao Instituto de Virologia de Wuhan por meio dessa pesquisa.

O que o Politifact mostrou é que, apesar de ter existido uma bolsa de financiamento do governo americano ao laboratório chinês, não há provas de que os pesquisadores fizeram experimentos de ganho de função em coronavírus de morcegos.

“A pesquisa apoiada pela concessão da EcoHealth Alliance Inc. caracterizou a função das proteínas spike de morcegos recentemente descobertas e de patógenos de ocorrência natural e não envolveu o aumento da patogenicidade ou transmissibilidade dos vírus estudados”, disse a assessoria dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), órgão no qual o NIAID está inserido, em nota ao Politifact.

O site de checagem americano aponta ainda que, em outubro de 2014, o governo de Barack Obama decidiu suspender o financiamento de experimentos de ganho de função. Diante disso, o NIH analisou o projeto de pesquisa da EcoHealth Alliance e determinou que não envolvia o melhoramento de vírus.

O Politifact pediu ainda que um biólogo do Instituto de Tecnologia do Massachussetts (MIT) revisasse um estudo publicado por meio da bolsa concedida à EcoHealth Alliance e ao Instituto de Virologia de Wuhan. O cientista Kevin Esvelt disse ter identificado componentes similares à definição de ganho de função na pesquisa, mas afirmou que o estudo “definitivamente NÃO levou à criação do SARS-CoV-2”, já que a sequência genética do vírus analisado era muito diferente da do agente que causa a covid-19.

Em outro e-mail de Fauci (página 3.206), o vice-diretor do NIAID, Hugh Auchincloss, diz que outra pesquisa com coronavírus de morcegos, de 2015, foi realizada antes da pausa determinada pelo governo Obama a experimentos de ganho de função. Depois da determinação governamental, o projeto foi revisado e aprovado pelo NIH. Auchincloss cita ainda que Emily Erbelding, diretora da divisão de Microbiologia do NIAID, não tinha encontrado nenhuma pesquisa relacionada a coronavírus com ganho de função financiada pela instituição.

Sobre o e-mail de agradecimento a Daszak, Fauci disse à CNN dos Estados Unidos que não é possível tirar conclusões sobre a relação entre os dois apenas pela troca de mensagens. O infectologista ressaltou que ainda acredita que a origem mais provável do novo coronavírus é animal. “Mantenho a mente completamente aberta quanto a talvez ter outras origens, talvez ter outra razão, poder ser um vazamento de um laboratório”, disse ele. “Acho que se você olhar historicamente, o que ocorre na interface entre humanos e animais é que é mais provável que o vírus tenha pulado de uma espécie a outra”.

“Você pode distorcer como quiser”, continuou Fauci. “O e-mail foi de uma pessoa agradecendo ao que quer que ele acha que eu disse, e eu disse que a origem mais provável do coronavírus é por meio de um salto entre espécies. Eu ainda acho que é, ao mesmo tempo mantenho a mente aberta sobre a possibilidade de um vazamento”.

A virologista Giliane Trindade, professora do Departamento de Microbiologia da ICB/UFMG, explica que Peter Daszak é um proeminente nome do campo de ecologia de doenças emergentes. Ou seja: ele já participava de várias pesquisas sobre animais que são reservatórios virais, como os morcegos. Que o cientista fizesse estudos na China não é um sinal de conspiração; apenas quer dizer que o país asiático tem alta população de morcegos e era um cenário favorável para a interação desses animais com seres humanos — tendo em vista a existência de mercados de carnes exóticas como o de Wuhan.

“Ele faz estudos justamente em locais de risco do planeta, onde esses vírus que estão em animais podem chegar a humanos”, diz Giliane. “Existem vários trabalhos pregressos que mostram a emergência de coronavírus na China. E não só de pesquisadores chineses. Ecologicamente, faz todo o sentido que o SARS-CoV-2 surgisse lá, de onde também veio o SARS. Por isso, intensificaram a pesquisa na região”.

“A maior parte dos betacoronavírus humanos (família à qual pertence o novo coronavírus) veio de morcegos”, explica a virologista. “O SARS-CoV-2 seria mais um que está repetindo uma história comum”.

Fauci recebeu vários e-mails sobre a origem do vírus

O que fica claro nos e-mails revelados de Fauci é que o diretor do NIAID recebia muita correspondência, de diversas fontes diferentes. Em uma delas (página 2.286), um homem chamado Adam Gaertner diz ter encontrado a receita para criação do novo coronavírus, e afirma que o patógeno é uma arma biológica.

Mas, como já mostraram checagens do Politifact e do USA Today, Gaertner não é um pesquisador, e não pode ser considerado uma fonte confiável. A primeira verificação ressaltou que Adam não citou nenhuma prova no e-mail, e que é conhecido na internet por defender o uso de ivermectina contra covid-19. Ainda não existem estudos conclusivos sobre esse medicamento no combate ao coronavírus, e as principais entidades de saúde do mundo não recomendam seu uso.

O USA Today descobriu que o e-mail de Gaertner foi copiado literalmente de um estudo de 2005 assinado por pesquisadores da Universidade da Pensilvânia. Um dos coautores da pesquisa, Graham Simmons, disse ao jornal americano que o artigo em 2005 não tem nenhuma relação com criação de coronavírus ou armas biológicas.

“Não faz o menor sentido que (o estudo) possa ser um método para produção de armas biológicas de coronavírus”, disse ele. “Fico feliz que alguém tenha encaminhado este trabalho para Tony Fauci, pois é um experimento muito legal e foi financiado pela NIH, mas a distorção é chocante”.

Outro e-mail citado pelo site Politz está na página 522 do documento divulgado pelo Buzzfeed. Na mensagem, um dermatologista chamado Michael Jacobs diz acreditar que o novo coronavírus teria sido vazado do laboratório de Wuhan. Ele também menciona a possibilidade de que o vírus tenha sido combinado com um fungo para ficar “mais grudento”.

Essa possibilidade foi descartada por Aguinaldo Roberto Pinto, professor titular do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ele disse que o método citado pelo dermatologista não faz sentido. “O vírus é de transmissão aérea. Essa já é uma forma de transmissão excelente e muito eficiente; não precisaria complexar (com um fungo)”, atesta.

O que dizem os especialistas sobre a origem do coronavírus

Aguinaldo Roberto Pinto, da UFSC, também considera pouco provável a criação do SARS-CoV-2 em laboratório. Ele diz que os vírus podem sofrer mutações, sobretudo aqueles cujo material genético é RNA, como no caso do coronavírus, e não há nada de incomum nessas alterações que pudessem comprovar a interferência humana no surgimento do agente causador da covid-19.

Ele pontua ainda que os vírus podem infectar várias espécies animais e, quando passa de uma espécie para outra, também podem se tornar outro vírus.

O professor cita como exemplo o HIV, um vírus decorrente de outro – SIV – que, originalmente, infectou macacos. Depois, passou para os seres humanos, resultando no HIV como conhecemos atualmente. “Então, não seria algo inédito o vírus passar de um bicho para outro, ou passar para humanos, e se tornar um novo vírus”, reforça.

A possibilidade de o SARS-CoV-2 ter surgido a partir do morcego ainda é investigada, afirma Aguinaldo Pinto, mas ele ressalta que é bastante plausível considerar que o coronavírus tenha surgido naturalmente, num ambiente de pouca higiene e muitos animais juntos, do que ter sido criado em laboratório.

“Não seria a primeira vez, nem vai ser a última. Como há muitas pessoas vivendo em condições precárias de higiene, novos vírus vão surgir. Na história recente, de 2000 para cá, surgiu a SARS, depois a MERS e agora o SARS-CoV-2. Tudo indica que os vírus surgiram na natureza, de forma espontânea, devido a essas condições de má higiene”, avalia o professor.

Ainda sobre a improbabilidade de o vírus ter sido criado em laboratório, Flávio da Fonseca, virologista do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV), afirma que tanto o SARS-CoV quanto o SARS-CoV-2 não têm cicatrizes em seus genomas. “Quando fazemos uma manipulação genética em qualquer pedaço de DNA, a gente utiliza ferramentas que deixam marcas, as cicatrizes”, diz Fonseca. “E nenhum dos vírus tem cicatriz que possa nos levar a pensar que ele foi manipulado geneticamente.”

Giliane Trindade, da UFMG, diz que as evidências disponíveis até o momento indicam que o SARS-CoV-2 tem origem natural. “Até que a ciência mostre o contrário, todas as evidências apontam que não é uma arma biológica”, disse a virologista.

Ela opina que a especulação sobre teorias pouco prováveis tira a atenção de questões realmente importantes. “O dado científico mostra que um vírus muito parecido está na natureza”, diz a virologista. “O que as pessoas deveriam estar preocupadas era como diminuir a interface da nossa sociedade com o mundo animal. Como criar esses animais sem impactar tanto nossa sociedade”.

O site

Um dos posts verificados aqui coloca link para conteúdo de um site chamado Politz, que se descreve como a “primeira e única comunidade brasileira que oferece um espaço totalmente seguro, livre de censuras ou perseguições ideológicas”.

Ao citar as máscaras, é informado no texto sobre Fauci que o Politz prefere chamá-las de focinheiras.

No Twitter, a plataforma tem 145 mil seguidores e, nesta rede, criticou a checagem feita pela Agência Lupa, reafirmando que o conteúdo publicado no site está correto, que os checadores da agência “simplesmente reproduzem quase que na íntegra o que está publicado em nossa reportagem”. Não é verdade, já que a “reportagem” do Politz é categórica ao afirmar que “os e-mails vazados de Dr. Fauci, rei dos lockdowns intermináveis e das máscaras, botam todas as políticas tomadas pelas autoridades públicas praticamente no mundo inteiro em cheque, mostrando que quem realmente estava certo, na verdade, era o próprio presidente Jair Bolsonaro e o presidente Donald Trump”.

O conteúdo do Politz foi compartilhado pelo perfil @Helenova31 no Twitter, que tem quase 17 mil seguidores. A página publica conteúdos atacando a imprensa, defendendo medicamentos como cloroquina e ivermectina e minimizando a pandemia.

O Comprova tentou entrar em contato com o perfil no Twitter e com o Politz, mas não obteve retorno.

O Politz também foi utilizado como fonte do post da página Movimento Avança Brasil, que se apresenta da seguinte maneira: “Somos livres e de bons costumes trabalhando na transformação do Brasil através da transparência de tudo que é público, com limitação e separação de poderes”. Questionado sobre o uso de fontes, um responsável pelo perfil respondeu ter utilizado reportagens da Fox News e um arquivo compartilhado com os e-mails, diferentemente do que havia publicado inicialmente.

Após contato da reportagem, além de ter alterado a fonte, o texto do post mudou de “Vazam e-mails do Dr. Fauci, da Casa Branca, afirmando que o vírus chinês aparenta ser fruto de engenharia genética e inutilidade das máscaras” para “Vazam e-mails do Dr. Fauci, da Casa Branca, onde ele disse que o vírus chinês pode ter vindo de um laboratório e possível inutilidade das máscaras”.

O Comprova perguntou ainda se a página checava as fontes de informação, já que é sabido que Fauci mudou seu posicionamento sobre o uso de máscaras ainda no início da pandemia. A resposta foi: “Você diz se checamos o que a Fox News diz? Não checamos, assim como não checamos publicações da Folha, Globo etc…”.

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos sobre a pandemia e sobre políticas públicas do governo federal que tenham viralizado nas redes sociais. Os conteúdos verificados aqui alcançaram, no total, 2,4 mil reações e foram compartilhados cerca de 1,5 mil vezes até 7 de junho.

Ao tirar do contexto afirmações de um dos principais imunologistas dos Estados Unidos, as postagens tentam, seguindo a linha do ex-presidente Trump e de Jair Bolsonaro (sem partido), culpabilizar a China pela pandemia e, ainda, colocam a população em perigo ou afirmar que ele não defende o uso de máscaras. A proteção facial é, até o momento, uma das medidas eficazes conhecidas contra o vírus, ao lado de distanciamento social, restrição de circulação, higienização das mãos e, claro, a vacina. Só assim o país vai diminuir os índices de contaminação e morte pela doença.

O conteúdo desta checagem já foi verificado pela Lupa e pelo Poynter, instituto de comunicação americano.

O Comprova já fez outras verificações sobre a suposta criação do coronavírus em laboratório, como a que enganava ao dizer que a China havia testado o Sars-CoV-2 como arma biológica.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado de contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou ainda aquele que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Saúde

Investigado por: 2021-06-04

É enganoso que União repassou R$ 420 bi para os estados combaterem a pandemia

  • Enganoso
Enganoso
É enganosa a postagem no Facebook que afirma que o governo federal enviou R$ 420 bilhões aos estados brasileiros para auxiliar no combate à pandemia de covid-19. O valor, divulgado pela própria União, inclui, além do apoio para enfrentar o novo coronavírus, repasses de rotina, previstos constitucionalmente, e o auxílio emergencial, verbas que, segundo especialistas, não podem ser consideradas repasses.
  • Conteúdo verificado: Imagem circula no Facebook e, no contexto da disputa política entre o presidente Bolsonaro e os governadores, leva a crer que o governo federal enviou R$ 420 bilhões para o combate à pandemia a governadores e prefeitos. Diz a imagem: “O povo quer saber… onde está o dinheiro enviado pelo Bolsonaro? Foram mais de R$ 420 bilhões repassados pelo governo federal a estados e municípios durante a pandemia”.

É enganosa uma postagem no Facebook que afirma que o governo federal transferiu R$ 420 bilhões para estados e municípios enfrentarem a pandemia de covid-19. Embora uma publicação no site da União traga este valor como medidas de apoio aos governos locais realizadas durante a crise causada pelo novo coronavírus, até 15 de janeiro de 2021, o cálculo inclui transferências constitucionais obrigatórias, repasses de rotina para a saúde que já ocorriam independentemente da pandemia, dinheiro enviado especificamente para o combate à doença e medidas de suporte econômico não relacionadas à saúde, como a suspensão das dívidas dos entes subnacionais.

Na lista, o governo federal também descreve valores de “benefícios ao cidadão”, como programas de transferência de renda e o auxílio emergencial, que são geridos por bancos federais e pagos diretamente aos beneficiários, sem passar pelos cofres de governos estaduais e prefeituras. Segundo dois economistas especializados em contas públicas ouvidos pelo Comprova, o auxílio não pode ser considerado como repasse aos estados. Dados dos sites Tesouro Transparente e SIGA Brasil mostram que a maior parte da despesa federal com a covid-19 foi o pagamento do auxílio emergencial.

Três sites de transparência de gastos públicos consultados pela reportagem indicam que o valor enviado diretamente para governadores e prefeitos está bem abaixo dos R$ 420 bilhões. O Tesouro Transparente aponta transferências de R$ 109,8 bilhões da União para estados e municípios; incluindo valores de combate à covid-19 e auxílios financeiros para esses governos. O SIGA Brasil diz que, de todos os gastos do governo federal com o enfrentamento do novo coronavírus, apenas R$ 78,26 bilhões foram transferidos para estados, municípios e para o Distrito Federal. Por fim, o portal LocalizaSUS, do Ministério da Saúde, mostra que, em todo o ano passado, os estados receberam R$ 32,3 bilhões em recursos enviados exclusivamente para combater a doença.

O Comprova procurou dois perfis no Facebook que compartilharam o conteúdo, mas não teve retorno. Um deles bloqueou o verificador na rede social.

Como verificamos?

Buscamos na Internet menções ao repasse de R$ 420 bilhões para estados durante a pandemia e encontramos um link do site do governo federal com o mesmo valor e um detalhamento do que estava incluído nessa conta. Entrevistamos dois economistas, o professor de ciências públicas da Universidade de Brasília (UnB) Roberto Piscitelli e o ex-diretor do Banco Central Carlos Eduardo Freitas, para entender se os valores descritos pelo governo, como auxílio emergencial, podem ser considerados repasses aos estados.

Consultamos nos sites de órgãos públicos Tesouro Transparente, SIGA Brasil e Localiza SUS o quanto foi transferido pela União para os governos estaduais a título de enfrentamento à pandemia em 2020. Também pesquisamos matérias de veículos de comunicação para relembrar a divergência entre o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e os governadores em relação ao montante de dinheiro enviado como ajuda aos estados.

Questionamos, também, a Secretaria de Comunicação do governo federal, mas não obtivemos resposta até a mais recente atualização desta reportagem.

Por fim, tentamos ouvir dois perfis do Facebook: o que publicou o conteúdo em sua linha do tempo (“vitoria.gea”) e o que compartilhou esta mesma postagem no grupo em que ela viralizou (“locutornildo”). Nenhum deles respondeu. O conteúdo original foi excluído antes da tentativa de contato do Comprova e o primeiro perfil a publicá-lo compartilhou, nos stories, uma crítica às agências de checagem, alegando que elas “defendem a censura”.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 4 de junho de 2021.

Verificação

Os R$ 420 bilhões

A cifra de R$ 420 bilhões foi divulgada pelo próprio governo federal no final de fevereiro de 2021. Ela inclui uma série de recursos pagos pela União até 15 de janeiro de 2021, não só dinheiro para o enfrentamento à pandemia. Estão incluídos nesse cálculo recursos constitucionais repassados para estados e municípios e dinheiro para a saúde (incluindo repasses de rotina e de enfrentamento à covid-19. No detalhamento por estado, além desses recursos, o governo incluiu na conta a suspensão da dívida dos governos estaduais durante a crise de saúde e benefícios repassados diretamente ao cidadão, como programas de transferência de renda e auxílios.

O economista e professor de ciências públicas da UnB Roberto Piscitelli explicou que gastos como o pagamento do auxílio emergencial não podem estar na soma de repasses aos estados, pois são considerados transferências diretas para pessoas físicas. “Não pode de jeito nenhum considerar isso um aporte de recursos aos Estados”, argumentou.

O economista e ex-diretor do Banco Central Carlos Eduardo Freitas corrobora o que diz o colega e afirma que o valor de R$ 420 bilhões precisa ser analisado. “O auxílio emergencial para os cidadãos não é considerado um repasse para os estados. Outras coisas, como postergação de dívidas, são ajudas financeiras, mas também não são repasses”, diz.

Quanto foi transferido para estados enfrentarem a covid?

O site Tesouro Transparente, mantido pela Secretaria do Tesouro Nacional, aponta que o governo federal gastou R$ 524 bilhões dos R$ 604,7 bilhões previstos para serem usados no combate à covid-19 em 2020. A maior parte desse dinheiro (R$ 293,1 bilhões) foi aplicada no auxílio emergencial. De acordo com esse portal, a União repassou R$ 44,3 bilhões para estados e R$ 30,8 bilhões aos municípios a título de auxílio financeiro. Além disso, em termos de despesas adicionais do Ministério da Saúde, foram transferidos R$ 9 bilhões para os governos estaduais e R$ 25,5 bilhões para prefeituras. Totalizando, assim, R$ 109,8 bilhões em transferências da União para governos subnacionais no ano passado.

O SIGA Brasil, painel de acompanhamento de contas públicas do Senado Federal, aponta que a União executou R$ 573,41 bilhões com o enfrentamento da pandemia de covid-19 em 2020 e 2021 (até o dia 02/06). Desse dinheiro, R$ 78,26 bilhões (o equivalente a 13,65% do total) foram transferidos para estados, municípios e para o Distrito Federal. O SIGA Brasil também aponta que a principal destinação de recursos para o enfrentamento à covid-19 em 2020 foi com o auxílio emergencial, que recebeu R$ 231,18 bilhões.

Segundo o portal LocalizaSUS, mantido pelo Ministério da Saúde, os valores de R$ 420 bilhões divulgados pelo governo federal não foram totalmente destinados ao enfrentamento da pandemia. Dos recursos voltados para a covid-19, em 2020, os estados receberam R$ 32,3 bilhões. Em 2021, até 1º de junho, foram R$ 5,4 bilhões. Somando os períodos, temos R$ 37,7 bilhões repassados exclusivamente para o combate à covid-19.

Os três portais apresentam os dados por ano consolidados, não é possível filtrar pelo que foi investido apenas até 15 de fevereiro, data citada pelo governo federal. Mas, em todos eles, o valor transferido para estados e municípios é inferior a R$ 420 bilhões.

Controvérsia

Desde janeiro, Bolsonaro e os governadores têm se desentendido em relação aos valores repassados pela União para o enfrentamento da pandemia. No final de fevereiro, o presidente chegou a divulgar o valor de R$ 600 bilhões enviado para os estados para serem aplicados na saúde (incluindo transferências obrigatórias e ajuda para a pandemia).

Em nota, 19 governadores contestaram os números. Eles alegam que o Planalto somou recursos como o Fundo de Participação dos Estados (FPE), o Fundo de Participação dos Municípios (FPM), o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e royalties, que já seriam enviados independentemente da vontade do presidente, porque esses repasses, inclusive os percentuais, são determinados pela Constituição.

Repasses eram obrigatórios?

Para o economista Carlos Eduardo de Freitas, a destinação de recursos para que os estados enfrentem a pandemia não era uma obrigação constitucional do governo federal, mas também não pode ser considerada um “beneplácito”.

“A União é responsável por todo o território nacional, então tem uma corresponsabilidade pela ordem financeira dos estados”, argumenta Freitas. “A União é a única que tem poder de emissão de moeda. Ela pode emitir dinheiro, desde que não esteja ferindo a capacidade de oferta da economia; já os estados, não. Por isso, a União tem a obrigação de repassar valores aos estados. Não está escrita na Constituição, mas está implícita. A União não pode permitir que os estados entrem em colapso”.

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos sobre a pandemia e sobre políticas públicas do governo federal que tenham viralizado nas redes sociais. Os dois temas são abordados na publicação analisada aqui. Verificações sobre a covid-19 são importantes porque podem levar as pessoas a adotarem medidas que impactam a sua saúde e segurança. No caso das divergências políticas entre o governo federal e os estados, também pode levar as pessoas a questionarem a orientação de autoridades de saúde.

A publicação no grupo em apoio a Bolsonaro teve 3,9 mil curtidas, além de 988 comentários e 2,5 mil compartilhamentos.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado de contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou ainda aquele que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Saúde

Investigado por: 2021-06-03

Tuítes tiram live de contexto para insinuar que senador defende tratamento precoce

  • Enganoso
Enganoso
São enganosos tuítes em que políticos bolsonaristas resgatam conteúdo antigo para atacar o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). O vice-presidente da CPI da Covid é critico do governo federal pelo atraso na compra das vacinas e pela promoção do “kit covid”.
  • Conteúdo verificado: Tuítes da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) e do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) que tentam desacreditar o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) que, em live de 2020, elogiou e prometeu comendas a profissionais favoráveis ao tratamento precoce no Amapá. Atualmente, ele critica esse protocolo.

São enganosos os tuítes postados no fim de maio que usam trechos de uma live em que o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) promete condecorar profissionais de saúde do Amapá que defendem o chamado “tratamento precoce” — kit de remédios sem eficácia comprovada contra o novo coronavírus e que não é recomendado pelas principais autoridades médicas de saúde no mundo.

O vídeo é verdadeiro, mas foi gravado em 9 de julho de 2020, o que não é informado pelos autores das postagens e gera desinformação. Recentemente, Rodrigues, que é vice-presidente da CPI da Covid, declarou diversas vezes não defender tais medicamentos, como cloroquina e ivermectina.

O conteúdo foi compartilhado no fim de maio pela deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) e pelo vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), políticos que defendem esse tipo de terapia até hoje, seguindo a linha do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Mesmo já havendo evidências sólidas sobre a ineficácia de algumas drogas à época da live, e não existindo comprovação científica para as demais, Rodrigues as apoiava. Na conversa, ele afirma que o protocolo médico estaria “salvando vidas” no Amapá e propõe homenagear três profissionais de saúde que participam da conversa com comendas do Congresso Nacional.

Mas declarações recentes mostram sua mudança de opinião. Em 31 de maio deste ano, por exemplo, no programa Roda Viva, da TV Cultura, ele criticou o presidente por ter insistido na “cloroquina quando precisávamos de vacinas”. “Temos que ir a fundo nesses contatos e obsessão por tratamentos que não têm eficácia”, disse.

Procurado pelo Comprova, Rodrigues justifica seu posicionamento na live porque “era necessário saudar e homenagear todos os esforços de médicos” na época, mas que, hoje, “a ciência já estabeleceu consensos”.

A reportagem tentou contatar Bia Kicis e Carlos Bolsonaro, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.

Como verificamos?

Inicialmente, tentamos buscar o vídeo original nas páginas de Rodrigues, mas não o encontramos. A gravação completa foi postada no dia 24 de maio deste ano, no perfil de um dos enfermeiros citados pelo senador, e excluída pelo YouTube por violar as diretrizes da comunidade.

Pesquisamos no site do governo do Amapá e em veículos de imprensa os protocolos adotados no estado no combate ao coronavírus e, na página do Senado, quais são as comendas existentes.

Também entramos em contato com a assessoria de comunicação do governo do Amapá e com os profissionais de saúde que participaram da live verificada aqui por mensagem no Instagram, e-mail e WhatsApp. Com exceção do médico Pedromar Valadares, que respondeu por mensagem de WhatsApp, não houve resposta ao contato do Comprova.

Pesquisamos vídeos e publicações oficiais que demonstrem a atual posição do Governo do Amapá em relação ao protocolo com uso de medicamentos sem eficácia comprovada.

A assessoria de imprensa de Rodrigues respondeu o contato do Comprova com um vídeo gravado pelo senador a respeito do assunto.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 3 de junho de 2021.

Verificação

A live do senador

Em 9 de julho de 2020, o perfil oficial do senador Randolfe Rodrigues publicou um post no Facebook anunciando uma live com três profissionais que integram o Comitê Médico de Enfrentamento à Covid-19 no Amapá. Os nomes conferem com aqueles que aparecem nos tuítes de Bia Kicis e Carlos Bolsonaro.

O vídeo não está disponível nas redes do político, mas o conteúdo completo foi publicado por um dos participantes, em 24 de maio de 2021, em uma conta pessoal no YouTube. Ele foi removido posteriormente pela plataforma, por violar as diretrizes da comunidade.

O Comprova acessou e baixou o arquivo antes de ser apagado. Com ele, a reportagem pôde verificar que o conteúdo que viralizou nas redes mantém o sentido original da gravação, apesar de recortar alguns trechos específicos. De fato, Randolfe elogia o trabalho de seus convidados e o protocolo médico criado no estado que representa politicamente.

“Eles são responsáveis pelo protocolo médico que foi usado, em especial, pela prefeitura de Macapá e que foi responsável por impedir que muito mais mortes ocorressem no Amapá”, afirma o senador na abertura da live. “Estarei propondo, no Congresso Nacional, a entrega de comendas por tudo que fizeram para evitar a perda de vidas.”

O protocolo de ‘tratamento precoce’

O protocolo em questão é denominado “Enfrentamento da Covid-19 na Atenção Primária” e pode ser acessado no site da Escola de Saúde Pública do Governo do Estado do Amapá, com a data de 23 de maio de 2020.

O documento recomenda a adoção, na rede pública de saúde, do chamado “tratamento precoce”, kit composto por uma série de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19: cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e nitazoxanida. A publicação também orienta sobre realização de exames e procedimentos destinados a pacientes graves e que apresentem complicações.

Três dos quatro autores do protocolo médico conversaram ao vivo com o senador. Eles defendem no vídeo a adoção das terapias aos primeiros sintomas. “O tratamento precoce, para mim e para muitos pacientes que eu cuidei, fez diferença”, alega a médica cardiologista Ana Chucre — mesmo sem uma metodologia rigorosa de pesquisa que permita apontar que realmente os doentes se recuperaram graças ao uso dos remédios citados, e não por outros fatores ou mesmo pela resposta natural do organismo.

O coronel bombeiro militar e médico da Defesa Civil Pedromar Valadares Melo, especialista em endoscopia digestiva e presidente do comitê médico no Amapá, também deixa claro o posicionamento do grupo na videochamada: “Nós não somos cloroquina futebol clube, nós somos tratamento precoce futebol clube, o que inclui uma abordagem muito mais ampla”, afirma em um trecho da conversa.

O terceiro participante é o enfermeiro Patrício Almeida, que é pós-graduado em Engenharia Biomédica e Ciências Farmacêuticas e tem especialização em Epidemiologia. Ele justifica a introdução do protocolo na rede pública de saúde com base em estudos in vitro, ou seja, em células de laboratório, e in silico, por meio de simulações computacionais. As drogas também foram escolhidas com base na observação clínica e na disponibilidade, segundo ele.

Como o Comprova já mostrou em outras checagens, resultados in vitro e in silico não são capazes de apontar eficácia e segurança de um medicamento contra a covid-19. Esses estudos são chamados de pré-clínicos, assim como os testes em animais, porque apenas credenciam as drogas para serem testadas posteriormente em humanos.

Existem diversos fatores que podem fazer com que um remédio funcione nessas etapas preliminares e depois falhe no organismo humano, um ambiente muito mais complexo. É preciso que a droga chegue na quantidade e no local corretos, por exemplo, e que demonstre a mesma ação proposta pelos cientistas em uma situação real de infecção.

O que diz a ciência

Nenhum dos remédios citados é recomendado pelos principais órgãos mundiais de saúde como tratamento para a covid-19. No caso da cloroquina e da hidroxicloroquina, a ineficácia inclusive já está comprovada contra a doença, com ou sem a associação com o antibiótico azitromicina.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) contraindicou “fortemente” a adoção dessas duas drogas frente à quantidade atual de evidências demonstrando que elas não oferecem qualquer benefício aos pacientes. O mesmo posicionamento é adotado pela Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) e pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA).

Na época em que o vídeo foi gravado, havia fortes indícios mostrando que esse tipo de terapia era inócua em pacientes internados. Já eram conhecidos, por exemplo, resultados preliminares dos programas Solidariedade (da Organização Mundial da Saúde) e do Recovery (do governo do Reino Unido em parceria com a Universidade de Oxford), com milhares de voluntários.

A distribuição para pacientes com sintomas leves e moderados também não era recomendada pelos principais órgãos de saúde naquele momento, mas ainda existia uma discussão sobre a possibilidade de funcionar nesse contexto. A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), por exemplo, apontou em um informe de 30 de junho de 2020 que os principais estudos já descartavam benefício a pacientes hospitalizados, mas ainda se aguardava estudos sobre a utilização aos primeiros sintomas.

A situação mudou em 17 de julho de 2020, quando a entidade divulgou uma atualização informando que a medicação também não era recomendada em casos leves de covid-19 diante das novas pesquisas publicadas. No final de julho, outro grande estudo brasileiro, da Coalizão Covid-19 Brasil, contraindicou a cloroquina e a hidroxicloroquina para quadros leves e moderados e alertou para o risco de efeitos colaterais, como arritmias cardíacas.

Os antiparasitários ivermectina e nitazoxanida também não tiveram eficácia e segurança comprovadas cientificamente até hoje. A ivermectina teve a ação antiviral contra o Sars-Cov-2 proposta por um estudo australiano que usou uma dose maior do que a máxima permitida para humanos, em abril de 2020. A nitazoxanida, por sua vez, foi relatada como um sucesso em pesquisas iniciais, naquele mesmo mês, pelo ministro de Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes.

Até o final de junho de 2020, de acordo com a SBI, as evidências disponíveis sobre o tratamento com essas drogas ainda eram apenas in vitro e não serviam para orientar a prática clínica, como fizeram os profissionais do Amapá ouvidos pelo senador Randolfe Rodrigues.

A eficácia ou ineficácia da ivermectina em pacientes de covid-19 ainda não está demonstrada. De acordo com a atualização mais recente da OMS, os estudos disponíveis atualmente são inconclusivos e o tratamento com a droga deve se restringir apenas a pesquisas clínicas. O mesmo posicionamento é adotado pela EMA, enquanto o Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH) aponta que ainda não existe base suficiente para recomendar contra ou a favor do medicamento.

Já a pesquisa financiada pelo governo federal com a nitazoxanida indicou que a droga é capaz de reduzir a carga viral dos pacientes tratados, mas não os sintomas. Dessa forma, em artigo publicado na revista European Respiratory Journal, os pesquisadores concluem que a droga não é uma terapia efetiva contra a covid-19. Em janeiro, o Ministério da Saúde desistiu do medicamento, ao anunciar que ele não seria distribuído na rede pública para essa finalidade.

Amapá segue apostando no kit

Reportagens da Rede Amazônica, afiliada da TV Globo no Amapá, publicadas no portal de notícias G1 em 5 de janeiro e 9 de abril de 2021, noticiam o uso de protocolos que preveem uso de medicamentos sem eficácia comprovada pelo Comitê Médico de Enfrentamento à Covid-19 do Estado do Amapá. Na primeira matéria, Patrício Almeida defende a adoção de ivermectina como medida preventiva.

Os três profissionais de saúde que participaram da live com Randolfe Rodrigues em julho de 2020 são apresentados ainda como integrantes do Comitê Médico em propaganda da live da Federação do Comércio do Amapá (Fecomércio), que ocorreu em 13 de maio de 2021. Na transmissão, Patrício Almeida volta a defender a eficácia de medicamentos sem comprovação na fase inicial da doença.

Já em uma transmissão ao vivo publicada no canal do YouTube do Conselho Regional de Medicina do Estado do Amapá (CRM-AP), em 14 de abril de 2021, os médicos Pedromar Valadares e Ana Chucre defendem o tratamento com medicamentos sem eficácia comprovada, sentados ao lado do governador do Amapá, Waldez Góes (PDT-AP). O vídeo da transmissão, que foi anexado em uma matéria no site da Secretaria do Estado da Saúde do Amapá (Sesa), conta com a participação de diversos defensores do chamado tratamento precoce, como a secretária do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro.

O Comprova questionou a Sesa sobre se ainda utiliza o protocolo e se os três médicos permanecem no Comitê Médico, mas não houve retorno até a publicação desta verificação. O médico Pedromar Valadares foi procurado e respondeu por mensagem que não tem nada a declarar. Os profissionais de saúde Ana Chucre e Patrício Almeida foram procurados por mensagem pelo Instagram e também não responderam até a publicação desta verificação.

Sem registro de comendas

Embora Rodrigues tenha afirmado na live que proporia ao Congresso Nacional a entrega de comendas para os três profissionais do Amapá, a reportagem não encontrou nenhum registro do pedido em órgãos oficiais e nenhuma publicação a respeito da homenagem.

Rodrigues diz que vai propor “a entrega de comendas aos três por tudo o que fizeram para evitar a perda de vidas” na pandemia. Uma das definições da palavra comenda, segundo o dicionário, é “distinção puramente honorífica”, ou seja, ela serve para homenagear alguém. O senador não especifica qual comenda proporia, e há diferentes tipos delas. Uma das mais importantes é a Ordem do Congresso Nacional, “destinada a galardoar as pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras, que se tenham tornado dignas do especial reconhecimento do Poder Legislativo do Brasil”.

No Senado há outras comendas, e duas são específicas sobre a área da saúde. Instituída em 2016, a Comenda Nise Magalhães da Silveira “é conferida a personalidades que tenham oferecido contribuição relevante ao desenvolvimento de técnicas e condições de tratamento humanizado da saúde no Brasil”. Há também a Comenda Santa Dulce dos Pobres, “destinada a homenagear pessoas físicas ou jurídicas que tenham prestado relevantes serviços na área social da saúde”.

Dos três médicos que Rodrigues elogia na live, pelo menos um já recebeu uma homenagem oficial. Em 20 de dezembro de 2020, o governo do Amapá entregou a Pedromar Valadares a Medalha de Mérito Institucional Governador Aníbal Barcelos. Ela foi recebida em cerimônia que homenageou 23 militares – Valadares é coronel – e um civil e que contou com a participação do governador do estado, Waldez Góes (PDT). A reportagem questionou o órgão sobre o motivo da condecoração a Valadares, mas não recebeu retorno até a publicação deste texto.

Contraponto

Procurado pelo Comprova para comentar o caso, o senador Randolfe Rodrigues gravou um vídeo, que foi encaminhado na terça-feira, 1º de junho, por meio de sua assessoria. Na gravação, ele ressalta a data da live, feita em julho de 2020, e justifica o convite aos profissionais de saúde por estarem “na linha de frente da guerra contra o novo coronavírus” no Amapá.

“Era necessário saudar e homenagear todos os esforços de médicos, enfermeiros que compreendiam desde o começo, ao contrário do presidente da República, em seu pronunciamento no dia 24 de março (de 2020), que não se tratava de uma gripezinha, mas de uma gravíssima pandemia”, declara.

O senador afirma que, naquele momento, “todas as medidas contra a pandemia deveriam ser saudadas”, a exemplo do isolamento social e dos esforços dos profissionais de saúde. “Passado um ano da pandemia, a ciência já estabeleceu consensos. A OMS já estabeleceu consenso de que a forma mais eficaz de derrotar o coronavírus e superar esse momento dramático que vivemos é através de vacina no braço de todos os brasileiros, caminho que lamentavelmente o governo federal não escolheu.”

Segundo o senador, alguns optaram por salvar vidas e insistiram na luta pelas vacinas, enquanto outros insistiram em um “caminho trágico” que foi o de “infectar a todos” e resultou em 450 mil mortes de brasileiros por covid-19. O senador diz ainda que “a ciência será sempre o caminho para nos orientar na saída dessa gravíssima crise”. Ele não esclareceu se realmente entrou com o pedido de entrega das comendas no Congresso.

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Projeto Comprova investiga conteúdos possivelmente falsos ou enganosos sobre a pandemia que tenham alcançado alto grau de viralização nas redes sociais. Somados, os posts verificados aqui, de Bia Kicis e Carlos Bolsonaro, receberam mais de 15,3 mil curtidas e foram compartilhados 4,8 mil vezes até 3 de junho.

Ao usar afirmações de Rodrigues feitas no ano passado, a deputada e o vereador tentam descredibilizar o senador. Atualmente, como vice-presidente da CPI da Covid, Rodrigues vem se posicionando abertamente contra remédios sem eficácia comprovada no combate ao coronavírus. A tentativa de colocá-lo como mentiroso, ou como um político que defendeu o tratamento precoce um dia, segue a narrativa do presidente, que nega os impactos da pandemia desde março do ano passado, quando ela começou.

É importante ressaltar que as únicas medidas realmente eficazes na redução dos casos de covid-19 são a vacinação, o uso de máscaras e álcool em gel, a lavagem das mãos e o distanciamento social.

Enganoso, para o Comprova, é qualquer conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; e o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Saúde

Investigado por: 2021-05-31

São verdadeiros exemplos de países com protocolos para cloroquina e cannabis em tuíte de deputado

  • Comprovado
Comprovado
É verdadeira a comparação, feita em um tuíte pelo deputado Arthur do Val (Mamãe Falei), de países que usam cloroquina no tratamento da covid-19 e outros que possuem protocolo para uso de cannabis medicinal.
  • Conteúdo verificado: Tuíte do deputado Arthur do Val (Mamãe Falei), que compara países que usam cloroquina no tratamento da covid-19 e outros que possuem protocolo para uso de cannabis medicinal. Ele faz a comparação e ironiza uma relação que teria sido feita pelo presidente Jair Bolsonaro, de que cloroquina era coisa de conservador e cannabis era coisa de comunista.

São verdadeiras as informações sobre uso de cloroquina e cannabis medicinal publicadas no Twitter pelo deputado Arthur do Val – Mamãe Falei (Patriota-SP), no dia 19 de maio. No tuíte, ele afirma que quatro países teriam protocolos para cloroquina – China, Venezuela, Cuba e Índia – e mais quatro com protocolos para cannabis medicinal – Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Israel. O tuíte também cita que, segundo o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), “Cloroquina é coisa de conservador e Cannabis medicinal é coisa de comunista”. O Comprova não localizou a frase nos discursos do presidente.

Três dos quatro países mencionados pelo parlamentar têm a cloroquina no protocolo: China, Venezuela e Cuba. Dois deles – China e Cuba – são comunistas. A Índia não tem protocolo para uso de cloroquina, e sim de hidroxicloroquina. O Comprova procurou o deputado, mas ele não atendeu à tentativa de contato. Por isso, não é possível afirmar se Arthur do Val se referia aos medicamentos de forma genérica ou se tentava se referir especificamente à cloroquina.

No entanto, no discurso popular, é comum que a hidroxicloroquina seja associada à cloroquina como se fosse o mesmo medicamento. Embora ambos os remédios tenham a mesma substância em sua base – a cloroquina –, seus usos e efeitos são distintos. A hidroxicloroquina, que não tem eficácia comprovada contra a covid-19, costuma ter menos efeitos colaterais e é considerada uma droga mais segura para outros tratamentos. Ainda assim, esta verificação observou que, em alguns casos, as autoridades locais adotam o uso de ambos os medicamentos.

Em relação à cannabis medicinal, os quatro países citados no tuíte – Estados Unidos, Israel, Alemanha e Reino Unido –, de fato, têm protocolos para uso de substâncias derivadas da planta da maconha em tratamentos médicos. Nenhum deles se declara um regime comunista. É importante destacar, contudo, que os oito países mencionados no tuíte não são os únicos a fazer uso da cloroquina ou hidroxicloroquina para a covid-19 ou a terem protocolos para uso medicinal da cannabis.

O tuíte foi publicado dois dias depois de Bolsonaro ter ironizado um projeto de lei que busca regulamentar a comercialização de medicamentos com extratos de cannabis. Em Brasília, no dia 17 de maio, numa conversa com apoiadores em frente ao Palácio do Planalto, o presidente disse que vetaria o PL 399/2015, de autoria do deputado federal Fábio Mitidieri (PSD-CE), e ironizou: “Engraçado. Maconha pode, cloroquina não pode”. Ele também disse que “a esquerda sempre pega uma oportunidade para querer liberar as drogas”.

No mesmo dia da publicação do tuíte, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello elogiou o protocolo de Cuba no uso da cloroquina contra a covid-19, medicamento defendido no Brasil por Bolsonaro e que tem ineficácia comprovada contra a covid-19.

Como verificamos?

Primeiro, procuramos os protocolos relativos ao uso de cloroquina durante a pandemia de covid-19 em cada um dos países citados no tuíte do deputado: China, Venezuela, Cuba e Índia. Paralelamente a isso, buscamos informações nas agências oficiais e na imprensa sobre os protocolos relacionados ao uso da cannabis medicinal nos outros quatro países citados pelo parlamentar: Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Israel.

Em seguida, tentamos localizar uma lista de países que fazem uso da cloroquina para tratar pacientes com covid-19. O Comprova não conseguiu encontrar informações destes países reunidas em uma única publicação científica ou entidade ligada à medicina. Também buscamos uma relação de países que adotam protocolos para cannabis medicinal, além dos quatro citados, mas não encontramos uma relação oficial. Em matérias publicadas na imprensa, contudo, localizamos listas informais.

Já nos relatórios da 63ª sessão da Comissão de Drogas e Narcóticos da Organização das Nações Unidas (ONU), ocorrida entre os dias 2 e 4 de dezembro de 2020, em Viena, na Áustria, há uma lista de 27 países que votaram pela retirada da cannabis da lista de drogas perigosas, um passo para ampliar os estudos sobre os usos medicinais da planta.

Contudo, não é possível afirmar que esses 27 países adotem protocolos para cannabis medicinal – nem que os outros 25 países-membros da comissão, que votaram contra e mais um país, que se absteve, não adotem. O Brasil, por exemplo, tem protocolos para uso medicinal de derivados da cannabis, mas foi contra a retirada da planta da lista de drogas perigosas.

Por fim, buscamos informações na Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre a cloroquina, hidroxicloroquina e a cannabis, e declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre as substâncias. Também entramos em contato com o deputado Arthur do Val, autor do tuíte, mas ele não respondeu até a publicação desta checagem.

O Comprova fez esta verificação baseada em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 31 de maio de 2021.

Verificação

Protocolos de cloroquina

China, Cuba e Venezuela, três dos quatro países citados no tuíte do deputado Arthur do Val, de fato, possuem protocolos de uso da cloroquina para pacientes com covid-19. Já a Índia, que também é citada na publicação, não inclui a cloroquina nas orientações clínicas, mas, sim, a hidroxicloroquina – fármaco que tem cloroquina em sua composição.

O Comprova não encontrou, por meio de publicações científicas e jornalísticas, indícios de que as autoridades do país tenham, em algum momento da pandemia, orientado o uso da cloroquina. Também não foi localizada uma lista oficial de países que fazem uso da substância, mas esses quatro países não são os únicos. Os Estados Unidos, por exemplo, chegaram a autorizar o uso emergencial da cloroquina, o que foi revogado ainda em junho do ano passado. França e Itália chegaram a autorizar o uso da hidroxicloroquina, mas suspenderam em maio de 2020.

Veja abaixo como funciona o uso da cloroquina em cada um dos países citados no tuíte:

China

O governo da República da China aprova e recomenda o uso de fosfato de cloroquina como tratamento anti-covid. A utilização do medicamento e suas especificações, quanto à dosagem indicada a cada perfil de paciente, por exemplo, constam no site governamental do país em um conteúdo intitulado “What are the treatments for COVID-19?” (Quais são os tratamentos para covid-19?), embora o site não tenha dados sobre metodologia e resultados que amparem a decisão do país sobre o uso do medicamento. As informações, publicadas em 19 de março de 2020, são assinadas pelo Centro Chinês para Controle e Prevenção de Doenças. A inclusão do medicamento antimalárico nos protocolos chineses da covid-19 foi noticiada pela South China Morning Post.

Na publicação institucional, a cloroquina é indicada apenas para adultos com faixa etária de 18 a 65 anos. O texto também chama a atenção para os efeitos colaterais e a interação com outros medicamentos – sejam eles elencados no informe ou não. Ao fazer a observação, o texto destaca que a cloroquina é contraindicada para pacientes com doenças cardíacas. Como referência aos dados, o governo chinês cita o Protocolo de Diagnóstico e Tratamento para covid-19 (Versão de Teste 7) emitido pelo Escritório Geral da Comissão Nacional de Saúde e pelo Escritório da Administração Nacional de Medicina Tradicional Chinesa.

Um mês antes, em 19 de fevereiro, o mesmo site governamental publicou uma matéria anunciando que o medicamento usado contra a malária teria eficácia comprovada também contra o novo coronavírus.

Apesar de não haver evidências científicas de eficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina contra a covid-19, apenas no tratamento de outras doenças, a OMS considera que os países são soberanos para decidir sobre seus protocolos clínicos.

Por isso, a cloroquina foi incluída, segundo o vice-chefe do Centro Nacional para Desenvolvimento de Biotecnologia da China, do Ministério da Ciência e Tecnologia (MAIORIA), Sum Yanrong, nas diretrizes de tratamento e aplicada em ensaios clínicos mais amplos.

Conforme Yanrong, os pacientes que tomaram o medicamento mostraram melhores indicadores do que seus grupos paralelos, como, por exemplo, na redução da febre e na melhora das imagens de tomografia dos pulmões. Contudo, os resultados dos testes e sua metodologia, usados para amparar a defesa do governo, não são apresentados no texto.

Venezuela

O Guia de Gestão Terapêutica para Covid-19 do governo venezuelano, atualizado em 26 de abril de 2021, inclui a cloroquina e a hidroxicloroquina entre os medicamentos usados no tratamento da covid-19.

Conforme descrição no documento sobre a cloroquina, ela é recomendada por via oral em pacientes adultos, gestantes e crianças tanto para prevenção quanto para tratamento. O documento ainda traz mais de dez efeitos colaterais provocados pelo medicamento, como transtornos cardiovasculares e do sistema imunológico.

Em 26 de maio de 2020, o Comitê Terapêutico Nacional Covid-19 publicou uma nota sobre o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina após uma publicação, quatro dias antes, na revista científica The Lancet e, consequentemente, o pronunciamento da OMS.

O estudo baseia-se em dados de quase 96 mil pacientes internados entre dezembro e abril de 2020 em 671 hospitais em todo o mundo e compara a evolução daqueles que receberam esse tratamento com a dos que não receberam.

Os autores concluíram que a hidroxicloroquina não é apenas ineficaz, mas também eleva o risco de óbito entre os pacientes com a doença. Após a publicação, a OMS decidiu suspender temporariamente os ensaios clínicos com o medicamento em vários países.

O governo venezuelano acusou o estudo publicado pela The Lancet de conter dados incompletos e da seleção inadequada de pacientes para a investigação, alegando que alguns deles já teriam a saúde acometida por alguma comorbidade. O documento oficial destaca ainda o amplo uso da cloroquina no país há décadas no tratamento de malária e doenças reumáticas, e que não há incidência de efeitos adversos graves com o uso moderado.

Cuba

O uso de cloroquina é autorizado e orientado na versão 6, de janeiro de 2021, do Protocolo de Ação Nacional para Covid-19 do governo de Cuba. O documento é constantemente atualizado pelo governo. A inclusão do medicamento no tratamento de pessoas com covid acontece desde o início da pandemia, entretanto as recomendações de uso foram detalhadas e ampliadas no decorrer das atualizações do documento.

O documento consta na plataforma COVID19CUBADATA. Nos protocolos descritos, o uso da cloroquina quase sempre está associada ao Kaletra, um medicamento que, segundo sua bula, integra o tratamento de infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV).

O documento de protocolo do governo cubano também elenca os principais efeitos adversos do uso da cloroquina, citando cefaleia, náuseas, vômitos, diarreias e outros, e, ainda, alerta para o uso associado a outros fármacos como, por exemplo, a azitromicina.

Em depoimento à CPI da Covid, no dia 19 de maio, o ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello elogiou o protocolo de Cuba para uso da cloroquina. Para reforçar sua defesa ao uso do medicamento, sem comprovação científica, ele referiu-se a Cuba como “um país mundialmente conhecido pela medicina avançada”. Além da discussão do uso da cloroquina, o presidente Jair Bolsonaro e seus aliados mostraram-se críticos ao governo cubano.

Em julho de 2020, o Comprova verificou um texto que distorcia declarações de especialista cubano para provar eficácia da cloroquina.

Índia

A Índia, que atualmente é o principal epicentro da pandemia no mundo, não usa cloroquina no tratamento de pacientes com covid. O documento “Updated Detailed Clinical Management Protocol for adult cases of Covid19”, publicado em 24 de maio de 2021, não cita o fármaco. Entretanto, autoriza e recomenda o uso de hidroxicloroquina. O documento está hospedado no site oficial do governo indiano.

Na opinião popular, a cloroquina e a hidroxicloroquina são associadas como sendo o mesmo medicamento. No entanto, elas possuem diferenças em suas estruturas químicas. Por isso, podem ser aplicadas em doses distintas. Antes da pandemia, ambos os medicamentos eram vendidos sem prescrição. No entanto, com a alta procura e necessidade de cautela no uso, a Anvisa enquadrou-os como remédios de controle especial.

No dia 24 de maio, a Índia tornou-se o terceiro país a superar 300 mil mortes por covid. O país chegou a registrar o 2º maior número diário de óbitos da pandemia, com 4.454 vidas perdidas em 24 horas.

O que diz a OMS sobre cloroquina

A OMS considera que todo país é soberano para decidir sobre seus protocolos médicos para uso de medicamentos, mas que, embora a hidroxicloroquina e a cloroquina sejam licenciadas para o tratamento de doenças autoimunes e malária, respectivamente, não há evidência científica comprovada até o momento de que esses dois medicamentos sejam eficazes e seguros contra a covid-19.

“As evidências disponíveis sobre benefícios do uso de cloroquina ou hidroxicloroquina são insuficientes, a maioria das pesquisas até agora sugere que não há benefício e já foram emitidos alertas sobre efeitos colaterais do medicamento. Por isso, enquanto não haja evidências científicas de melhor qualidade sobre a eficácia e segurança desses medicamentos, a OPAS recomenda que eles sejam usados apenas no contexto de estudos devidamente registrados, aprovados e eticamente aceitáveis”, diz comunicado oficial no site da OMS, que é atualizado constantemente.

Protocolos de cannabis medicinal pelo mundo

O deputado Arthur do Val cita, no mesmo tuíte, quatro países que não são “comunistas” e que adotam protocolos de cannabis medicinal. Os quatro países citados – Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Israel –, de fato, possuem protocolos para uso da cannabis medicinal, mas eles não são os únicos e esses protocolos não têm relação com a covid-19.

Veja a situação em cada um deles:

Estados Unidos

A Food & Drug Administration (FDA), agência do governo dos Estados Unidos com função similar à Anvisa, no Brasil, ainda não aprovou um pedido de comercialização da cannabis para o tratamento de qualquer doença ou condição, mas aprovou um derivado da cannabis e três medicamentos relacionados à ela e que já estão disponíveis no país, desde que haja uma receita médica indicando o uso.

O canabidiol (CBD) é o derivado da cannabis aprovado pela FDA e ele está presente, em uma forma purificada, no Epidiolex, usado no tratamento de convulsões associadas à síndrome de Lennox-Gastaut ou síndrome de Dravet em pacientes com um ano de idade ou mais. O Epidiolex também é usado para tratar convulsões associadas ao complexo de esclerose tuberosa.

Já os três medicamentos aprovados são o Marinol e o Syndros, usados para tratar anorexias associadas à perda de peso em pacientes com Aids, e o Cesamet. Todos têm um componente sintético derivado ou similar ao tetrahidrocanabinol (THC), considerado o componente psicoativo da cannabis.

A FDA informa que está ciente de que derivados não aprovados da cannabis estão sendo utilizados para tratamento de uma série de doenças, como epilepsia, esclerose múltipla e câncer, mas que precisa de mais pesquisas científicas para aprovar outros produtos derivados e atestar a segurança e eficácia deles.

Nos Estados Unidos, no entanto, há estados que aprovam o uso medicinal de produtos da cannabis, mesmo que eles não tenham sido aprovados pela FDA. “É importante conduzir pesquisas médicas sobre a segurança e eficácia dos produtos de cannabis por meio de ensaios clínicos adequados e bem controlados. Agradecemos a oportunidade de conversar com estados que estão considerando apoiar a pesquisa médica da cannabis e seus derivados, para que possamos fornecer informações sobre as normas federais e científicas”, diz um trecho da aba sobre regulamentação da cannabis no site oficial da FDA.

Reino Unido

Em julho de 2018, o Reino Unido anunciou que permitiria, a partir de março de 2019, o uso de remédios derivados da cannabis, desde que houvesse prescrição médica. Cerca de um mês antes do anúncio, houve uma polêmica no país. Um garoto chamado Billy Caldwell, que tinha epilepsia, foi hospitalizado depois que autoridades britânicas apreenderam um medicamento à base de óleo de cannabis, que a família tinha comprado no Canadá. A apreensão foi feita no aeroporto de Heathrow, em Londres.

No mesmo mês, a professora Sally Davies, então chefe médica do governo do Reino Unido, encomendou uma pesquisa sobre o assunto com um painel de especialistas e decidiu retirar os medicamentos à base de cannabis da chamada “Tabela 1” que, no Reino Unido, concentra os medicamentos considerados de pouco ou nenhum potencial terapêutico.

Após a pesquisa, o escritório médico do governo publicou uma revisão informando que o Comitê Consultivo sobre o Uso Indevido de Drogas (ACMD) havia considerado os usos terapêuticos da cannabis e canabinoides para o tratamento de “dor crônica; câncer; náuseas/vômitos induzidos por quimioterapia; anorexia e perda de peso; síndrome do intestino irritável; epilepsia; espasticidade relacionada à esclerose múltipla ou lesão da medula espinhal; Síndrome de Tourette; esclerose lateral amiotrófica (ELA); Doença de Huntington; Mal de Parkinson; distonia; demência; glaucoma; traumatismo craniano; vício; ansiedade; depressão; distúrbios do sono; transtorno de estresse pós-traumático; esquizofrenia e outras psicoses.

O relatório assinado pela professora Sally Damies ainda dizia que a lista de usos potenciais da cannabis medicinal crescia ano após ano e que os medicamentos à base de cannabis deveriam ser removidos da Tabela 1 e colocados na Tabela 2, para que passassem por mais avaliações do ACMD.

Alemanha

Em janeiro de 2017, o Parlamento Alemão aprovou o uso medicinal da cannabis. A legislação aprovada obrigava os planos de saúde a custear o tratamento, desde que fosse prescrito por um médico para casos de esclerose múltipla, dores crônicas e falta de apetite ou náuseas provocadas por quimioterapia.

O parlamento autorizou que os medicamentos fossem vendidos em farmácias e, para garantir o abastecimento, o plantio foi autorizado no país. Em março daquele ano, a Alemanha criou uma agência para cultivo de maconha, com plantio supervisionado por um órgão estatal, o Instituto Alemão para Medicamentos e Produtos Sanitários.

Pouco mais de três anos após a autorização, em 29 de outubro de 2020, o Parlamento rejeitou um projeto de deputados da AfD (Alternativa para a Alemanha) que buscava colocar a cannabis em uma base científica, aplicar os procedimentos de leis de reforma de mercado sobre preços, melhorar a segurança da aplicação e isentar os planos de saúde do financiamento da cannabis medicinal.

No projeto, os parlamentares do partido de extrema-direita afirmaram que a maconha era uma droga bastante popular no país, com aprovação de cerca de 49% dos entrevistados em uma pesquisa feita no estado de Saarland, mas que não deveria ser considerada uma cura milagrosa. O objetivo era desmistificar o uso da cannabis medicinal para algumas doenças, mantê-la apenas para aquelas em que houvesse um benefício comprovado e reduzir o valor de reembolso pelos planos de saúde às pessoas que usam os medicamentos.

Israel

Israel foi o primeiro país a investir em pesquisas sobre o uso medicinal da cannabis, ainda na década de 1960. O químico búlgaro Raphael Mechoulam, professor da Universidade Hebraica em Jerusalém, começou a estudar as propriedades da planta e isolou dois componentes: o tetrahidrocanabinol (THC) – psicoativo – e o canabidiol (CBD) – terapêutico. Em 1973, o país permitiu o uso terapêutico da cannabis com prescrição médica e, em 1990, o Ministério da Saúde começou a gerar autorizações para que pacientes cultivassem ou recebessem maconha para fins terapêuticos.

Em 2013, o país criou a Agência de Maconha Medicinal de Israel e, em 2016, o governo investiu US$ 2,13 milhões de dólares em 13 projetos de estudos da maconha e custeou ensaios clínicos por todo o país. Em abril de 2019, quando o uso medicinal já era autorizado para pacientes que sofriam de Mal de Parkinson, epilepsia, câncer e outras doenças terminais, segundo essa matéria publicada pela Forbes, Israel descriminalizou a posse de maconha e plantas similares.

Na ocasião, o ex-primeiro-ministro israelese Ehud Barak presidia a Cannoc/Interculture, uma empresa de cannabis medicinal, e disse, numa conferência de produtores em abril daquele ano, em Tel Aviv, que Israel estava mudando seu lema para “a terra do leite, mel e maconha”. Em abril de 2019, o Ministério da Saúde informou que mais de 550 fazendas já haviam entrado com pedido de licença para cultivar cannabis com fins medicinais em Israel, diz a reportagem.

Este especial produzido pela Folha mostra que Israel vem incentivando o avanço científico da cannabis e que o país já produz a planta para consumo interno e para exportação. Em setembro do ano passado, quando o especial foi publicado, o país tinha 61 mil pacientes registrados para uso de cannabis medicinal e esperava ter uma receita de US$ 635 milhões com taxação de maconha para fins recreativos.

Uso da cannabis medicinal pelo mundo

O Comprova não localizou, em organizações internacionais, uma lista de países que regulamentem o uso da cannabis medicinal. No entanto, reportagens publicadas no Brasil em 2018, 2019 e 2020 listam a situação em alguns países. Em 2018, o GaúchaZH listou Canadá e Uruguai entre os países que legalizaram o consumo da maconha; Bolívia, Equador, França, Portugal, Espanha, Holanda e Geórgia como países que descriminalizaram o uso pessoal; e Brasil, Peru, Chile, Paraguai, Finlândia, Polônia, Áustria, Romênia, Grécia, Itália e Reino Unido entre os que liberaram apenas o uso medicinal. Há, ainda, países que descriminalizaram o uso pessoal e autorizaram o uso medicinal, mas não legalizaram a maconha: Alemanha, Austrália, Bélgica, Argentina, Colômbia, México e Estados Unidos.

Segundo reportagem publicada pela Folha em dezembro de 2019, 38 países regulamentaram a cannabis medicinal de alguma forma. Entre eles, estão Brasil, Estados Unidos, Canadá, Argentina, Chile, Peru, Portugal, Alemanha, França, Holanda, Bélgica, República Tcheca, Colômbia, Uruguai, Nova Zelândia, Austrália, Tailândia e Israel.

Já a revista Época publicou, em dezembro de 2020, uma lista de países que liberaram o uso medicinal da maconha. Além da Argentina, que havia autorizado o uso naquele mesmo mês, também Canadá, Uruguai, Chile, Colômbia, Equador, México, Estados Unidos, Holanda, Itália, Portugal, Alemanha, Dinamarca e Bélgica.

Nos dias 2, 3 e 4 de dezembro do ano passado, em Viena, na Áustria, a Comissão de Narcóticos das Nações Unidas votou e aprovou a retirada da cannabis da lista de drogas perigosas e o reconhecimento das propriedades medicinais da planta, dois anos após a Organização Mundial de Saúde reconhecer as propriedades terapêuticas da maconha.

Dos 53 países-membros da Comissão de Narcóticos, 27 votaram a favor da retirada da cannabis da lista de drogas perigosas e 25 votaram contra. Apenas um país se absteve, a Ucrânia. Mas isso não significa que os países que votaram a favor da proposta liberaram o uso, nem que aqueles que votaram contra não tenham autorizado.

O Brasil, por exemplo, que autoriza o uso medicinal de derivados da cannabis, votou contra a proposta, junto com Afeganistão, Argélia, Angola, Bahrein, Burkina Faso, Chile, China, Costa do Marfim, Cuba, Egito, Hungria, Iraque, Japão, Cazaquistão, Quênia, Quirguistão, Líbia, Nigéria, Paquistão, Peru, Federação Russa, Togo, Turquia e Turcomenistão.

Os que votaram a favor e aprovaram a retirada da cannabis da lista de drogas perigosas foram: Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Colômbia, Croácia, República Tcheca, Equador, El Salvador, França, Alemanha, Índia, Itália, Jamaica, México, Marrocos, Nepal, Holanda, Polônia, África do Sul, Espanha, Suécia, Suíça, Tailândia, Reino Unido, Irlanda do Norte, Estados Unidos e Uruguai.

O que diz a OMS sobre a cannabis medicinal

Sobre a cannabis medicinal, a OMS recomendou, em uma reunião do Comitê de Perigos em Dependência de Drogas da organização, em 2019, uma reclassificação da cannabis e de outras substâncias derivadas para uma lista de drogas menos perigosas. Um tratado de 1961 classificou as drogas em quatro listas diferentes, sendo que a maconha se encontrava na lista mais restritiva, das drogas consideradas mais perigosas.

No entanto, segundo a OMS, houve um avanço significativo nas pesquisas que mostraram que a cannabis tinha efeitos medicinais, como mostra essa checagem feita pelo Estadão Verifica.

Essa recomendação, feita em 2019, precisava ser validada em uma votação pela Comissão de Narcóticos da Organização das Nações Unidas (ONU), o que aconteceu em dezembro de 2020, com a aprovação por 27 votos a favor e 25 contra, com uma abstenção.

Por que investigamos?

O Comprova checa conteúdos possivelmente falsos ou enganosos sobre a pandemia ou o governo federal que tenham alcançado alto grau de viralização.

O post do deputado Arthur do Val teve 4,2 mil curtidas no Twitter, além de ter sido retuitado 464 vezes até a tarde desta segunda-feira (31). Desde o início da pandemia, o uso de medicamentos para a covid-19 tem sido politizado. Bolsonaro e seus apoiadores vêm indicando a utilização de remédios sem comprovação científica de eficácia contra a covid-19, ao mesmo tempo em que desencorajam as vacinas.

Diversas listas de países que adotam cloroquina e hidroxicloroquina em protocolos clínicos contra a covid-19 circulam pela internet e são citadas em discursos em defesa dos medicamentos.

No dia 19 de maio, em depoimento à CPI da Covid, no Senado Federal, o ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello afirmou que 29 países têm protocolos de uso de cloroquina. Entre os países citados estão China e Cuba, ambos verificados pelo Comprova nesta apuração.

Também em depoimento à Comissão que investiga ações do governo federal durante a pandemia, a secretária de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, chegou a citar a existência de uma lista de países que fazem o uso da cloroquina em pacientes contaminados. Ela, no entanto, não fez referência à fonte da lista. Mayra Pinheiro é conhecida como “Capitã Cloroquina” por sua defesa aberta ao uso do medicamento durante a pandemia.

Comprovado, para o Comprova, é um fato verdadeiro; evento confirmado; localização comprovada; ou conteúdo original publicado sem edição.

Saúde

Investigado por: 2021-05-27

É falso tuíte que afirma que OMS recomendou 3ª dose de Coronavac

  • Falso
Falso
É falso o tuíte segundo o qual a OMS disse que "quem tomou Coronavac vai ter de se revacinar". O órgão de saúde não fez tal afirmação e, por ora, está avaliando a eficiência da vacina. O Instituto Butantan, que produz o imunizante no Brasil, também nega a informação.
  • Conteúdo verificado: Tuíte que afirma: “A OMS está dizendo que quem tomou Coronavac vai ter de se revacinar”

Está viralizando nesta semana um tuíte que afirma: “A OMS está dizendo que quem tomou Coronavac vai ter de se revacinar. Vacina do Dória é uma bosta. Fake como ele”. O conteúdo da postagem é falso. Ao Comprova, a Organização Mundial da Saúde informou não ter feito tal afirmação. “A Coronavac está sob revisão para a Lista de Uso de Emergência e essas revisões são confidenciais, portanto, não falaríamos sobre uma vacina como essa enquanto ela estiver sob revisão”, escreveu o órgão.

O Instituto Butantan, que produz a Coronavac no Brasil, também negou a informação. “Fiquem tranquilos, a vacina é eficiente e, neste momento, não existe necessidade de se preocupar com uma terceira dose, como foi propalado recentemente. Isso não corresponde aos fatos”, afirma o presidente Dimas Covas em vídeo enviado pela instituição.

A possibilidade de uma dose de reforço para idosos acima de 80 anos foi levantada por pesquisadores brasileiros após um estudo feito em pessoas com mais de 70 anos em São Paulo, mas isso não se converteu em uma recomendação da OMS. O estudo ainda está em fase de pré-print, ou seja, é uma versão preliminar que ainda não foi revisada por pares e não deve ser usada para orientar práticas.

O Comprova tentou contatar o autor do tuíte, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

Como verificamos?

Pesquisamos sobre a possibilidade de uma terceira dose nos sites do Butantan, da OMS e de veículos de imprensa para, então, entrar em contato com alguns órgãos.

Por e-mail, a equipe falou com OMS, Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), braço da OMS na América, e Butantan.

Por telefone, entrevistou Cristiana Toscano, médica infectologista epidemiologista, professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e membro do Comitê Consultivo de Vacinas Covid-19 (Sage, na sigla em inglês) da OMS, e, por WhatsApp, conversou com Julio Croda, médico infectologista, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).

Como o perfil do autor do tuíte, @TonyStarkMeta, não recebe mensagens privadas, a reportagem deixou um comentário no post verificado para que ele entrasse em contato, mas não recebeu retorno até a publicação desta checagem.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 27 de maio de 2021.

Verificação

O que diz a OMS

“A OMS não afirmou isso”, escreveu ao Comprova o órgão de saúde sobre o tuíte verificado aqui. A assessoria de imprensa da instituição informou que, “até o momento, ainda não pré-qualificou a vacina contra Sars-CoV-2 da Sinovac” e que dados sobre vacinas em avaliação são confidenciais. Ainda comentou que “o surto e a resposta da covid-19 foram acompanhados por uma grande ‘infodemia’, uma superabundância de informações, algumas precisas e outras não, o que torna difícil para as pessoas encontrarem fontes confiáveis ​​e orientação confiável quando precisam”.

A OPAS, braço da OMS na América, também informou, por e-mail, que a afirmação do tuíte verificado é falsa. “A Sinovac se encontra atualmente em processo de avaliação pela OMS quanto à possibilidade de sua inclusão na lista de uso de emergência de vacinas contra Covid-19”, disse a OPAS.

Também por e-mail, a organização mencionou dois estudos feitos a respeito da efetividade da Coronavac. O primeiro, do grupo VEBRA COVID-19 (Vaccine Effectiveness in Brazil Against Covid-19), desenvolvido no Amazonas com a participação da OPAS, mostrou efetividade de 50% na prevenção do adoecimento 14 dias após a aplicação da primeira dose.

O segundo, publicado no último dia 21 de maio no estado de São Paulo ainda em fase de pré-print, mostrou efetividade de 42% na prevenção de covid-19 com sintomas 14 dias após a aplicação da segunda dose. É neste estudo que os autores falam na possibilidade de aplicação de uma dose de reforço em idosos acima de 80 anos, faixa de idade em que a eficácia cai, segundo os pesquisadores, para 28%. Para a OPAS, “as vacinas contra covid-19 são úteis principalmente para reduzir a chance de morte e doença grave”.

O que diz o Butantan

Em vídeo publicado em 26 de maio e enviado ao Comprova, Dimas Covas, presidente do Instituto Butantan, de São Paulo, voltou a falar sobre a “alta eficiência” da vacina desenvolvida em parceria com a biofarmacêutica chinesa Sinovac.

“Com relação a esses comentários que têm surgido, dizendo que a vacina tem uma eficiência menor em pessoas idosas, eu digo a vocês que todos os estudos que o Butantan tem feito, e são muitos, aqui no Brasil, na cidade de São Paulo, no município Serrana, no estado do Ceará e também no Chile, mostram que essa vacina tem uma alta eficiência, ou seja, ela é capaz de proteger contra os sintomas da doença, contra as internações e contra os óbitos. Em todas as faixas etárias acima dos 18 anos, inclusive nos idosos”, diz ele na gravação.

Nesta quinta-feira, 27 de maio, Dimas Covas afirmou, em depoimento à CPI da Covid-19, que as vacinas contra a doença precisarão ter uma dose de reforço anual, assim como já acontece com a vacina da gripe. “Nós admitimos, sim, a possibilidade da dose de reforço. A dose de reforço será necessária para todas as vacinas. A própria Pfizer já está estudando uma dose de reforço. O Butantan já tem estudos previstos em andamento com a dose de reforço”, declarou.

Levantamento da OMS

O órgão de saúde realizou o levantamento “Evidence Assessment: Sinovac/Coronavac Covid-19 vaccine” (Avaliação de Evidências: Vacina Sinovac/Coronavac Covid-19), que classifica o imunizante com “nível de confiança moderado” para adultos acima de 60 anos. Mas, como ressaltou ao Comprova Cristiana Toscano, que participou da elaboração do documento como membro do Comitê Consultivo de Vacinas Covid-19 da OMS, ele não é conclusivo e não propõe uma terceira dose do imunizante.

“Fizemos esse levantamento, que não pode ser chamado de estudo, com os dados disponíveis até o momento, e tínhamos um número muito pequeno de idosos que participaram dos estudos de fase 3”, disse ela, após confirmar que o conteúdo do tuíte verificado aqui é falso. “Até agora, não há nenhuma evidência de estudos demonstrando que a efetividade da Coronavac após duas doses em idosos seja menor do que a esperada contra hospitalização e óbito.”

Estudo em fase de pré-print

Citada no levantamento da OMS, uma pesquisa, ainda em fase de pré-print – ou seja, não foi revista por outros cientistas e não pode ser utilizada para comprovar nada –, foi publicada no dia 21 de maio de 2021 na plataforma MedRxiv, que distribui versões em pré-print de trabalhos científicos. O estudo analisou 15.900 pacientes acima de 70 anos – a idade média dos pacientes foi de 76 anos – depois de 14 dias da aplicação da segunda dose da Coronavac no Estado de São Paulo, onde a prevalência dos casos é pela variante P.1, que tem maior capacidade de transmissão. Os resultados apontaram que a vacina tem a capacidade de proteger contra infecções sintomáticas pelo Sars-CoV-2 na vida real, mas que a eficácia da Coronavac cai com a idade.

O trabalho tem a autoria registrada de 19 pesquisadores, entre eles o médico infectologista, pesquisador da Fiocruz e professor da UFMS Julio Croda e o epidemiologista Otavio Ranzani, do Instituto de Saúde Global de Barcelona, Instituto do Coração (InCor) e do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).

Na faixa de idade acima de 70 anos, a eficácia global da vacina foi de 42% após a aplicação da segunda dose e de até 50% após 28 dias. A eficácia é maior na população que tem entre 70 e 74 anos – 61,8% –, depois cai para 48,9% entre aqueles com 75 a 79 anos e para 28% naqueles que têm mais de 80 anos de idade. Em entrevista ao Jornal da USP, Otavio Ranzani disse que a vacina não encontrou efeito protetor na primeira dose e que, por isso, é preciso que os programas planejem uma otimização da vacinação de idosos acima de 80 anos, “seja com um reforço ou troca de tipo de vacina”. Ele acrescentou que essa estratégia ainda precisa ser estudada. O Comprova tentou contato com o pesquisador, mas não conseguiu localizá-lo.

“Nossos resultados fornecem evidências de que a eficácia do Coronavac leva semanas para se desenvolver e requer um cronograma completo para atingir a eficácia máxima”, diz um trecho da pesquisa. “Essa descoberta tem implicações diretas para as decisões de saúde pública em países que usam Coronavac e possivelmente outras vacinas inativadas, como a maioria dos países de baixa e média renda. Por exemplo, no Brasil, dos 9.972.111 vacinados com Coronavac, 1.298.194 (13%) não receberam a segunda dose. Devido à necessidade do cronograma completo, é imperativo manter as intervenções não farmacêuticas (INP) em vigor e alertar os indivíduos vacinados sobre sua proteção reduzida até um mínimo de 14 dias após a segunda dose. Além disso, a proteção contra covid-19 sintomático da vacinação em massa no nível da população levará um período prolongado em comparação com outras vacinas que apresentaram maior eficácia após a primeira dose”.

Embora tenha defendido, em entrevista ao Estadão, que a aplicação de um reforço ou o início de um novo esquema vacinal em idosos com mais de 80 anos deveria ser feito ainda este ano, após o término da imunização dos grupos prioritários, Julio Croda confirmou ao Comprova que a OMS não fez tal recomendação. E que, por ora, só há esse estudo – sem validade científica ainda – apontando a possibilidade de um reforço na dose para pessoas acima de 80 anos.

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Projeto Comprova investiga conteúdos possivelmente falsos ou enganosos sobre a pandemia que tenham alcançado alto grau de viralização nas redes sociais. O tuíte verificado aqui teve mais de 4 mil interações, sendo 3,1 mil curtidas.

Conteúdos como este são perigosos porque colocam em dúvida a eficácia das vacinas, os principais métodos disponíveis atualmente para o controle da pandemia. Neste caso, o autor do tuíte utiliza uma informação solta de um estudo, desconsidera que a própria publicação ressalta a eficácia da vacina, e a atribui a uma entidade internacional de saúde que não se pronunciou sobre o caso. Isso pode levar as pessoas a perderem a confiança num imunizante amplamente utilizado no país, acreditando que existe uma recomendação internacional contra ele.

O tuíte segue a linha de ação do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), inclusive ao atacar o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que apoiou a produção da Coronavac no Brasil.

A Coronavac é, até o momento, a vacina mais aplicada em brasileiros. Segundo dados do painel de vacinação contra a covid-19 do Ministério da Saúde, foram 38,1 milhões de doses aplicadas, o que corresponde a 58% do total aplicado no país.

Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.

Saúde

Investigado por: 2021-05-27

Não há evidências de que morte de ator indiano esteja associada à vacina

  • Enganoso
Enganoso
É enganoso tuíte que associa a morte de um ator indiano à imunização pela vacina Covaxin, ocorrida dois dias antes. O artista sofreu um infarto e a equipe médica que o atendeu descartou ligação entre os fatos, conforme divulgado amplamente pela imprensa indiana. Cardiologistas ouvidos pelo Comprova afirmam que a vacina não forma trombos que levam à doença cardíaca.
  • Conteúdo verificado: Tuíte com uma imagem do ator indiano Vivek sendo vacinado afirma que “embaixador da saúde da Índia” recebeu a vacina contra a covid-19, em ação televisionada, para mostrar a todos a segurança da substância, mas morreu dois dias depois e entrou para a estatística TMC. A sigla refere-se à expressão “Teoria da Mera Coincidência”, utilizada por perfis de extrema-direita para supor ligação entre fatos distintos. O Comprova também analisou texto publicado em um site que mantém a mesma linha, com maior riqueza de detalhes.

O ator indiano Vivekanandan, conhecido profissionalmente como Vivek, foi vacinado um dia antes de sofrer um infarto, mas não há evidências que relacionem os dois eventos como podem levar a crer publicações em sites e no Twitter que foram analisadas pelo Comprova.

Vivek sofreu um ataque cardíaco um dia após ter sido imunizado com a vacina Covaxin, no Hospital da Faculdade Pública de Medicina Omandurar Estate, na Índia. A equipe médica que o atendeu negou ligação entre o problema cardíaco, que o levou à morte no dia seguinte, e o imunizante, conforme divulgado pela imprensa indiana.

Cardiologistas ouvidos pelo Comprova explicam que uma reação à imunização pode ocasionar estresse físico e essa demanda aumentada pode desencadear um infarto. Entretanto, a pessoa já teria que ter a artéria parcialmente entupida, não havendo relação de causalidade nesse processo.

Procurado, o autor do tuíte verificado não respondeu e bloqueou o verificador do Comprova. A página Tribuna Nacional, que publicou conteúdo semelhante, também foi procurada e não respondeu ao nosso contato.

Como verificamos?

O Comprova iniciou a verificação acessando um link compartilhado no tuíte do usuário @slan19467036 e que divulgava texto tratando da morte de Vivek publicado na página Actu Intel, que se apresenta como um veículo necessário para difundir “informações que frequentemente não chegam aos ouvidos dos falantes de língua francesa” e que pretende cumprir o papel de soldado digital.

O mesmo artigo foi traduzido e publicado na página brasileira Tribuna Nacional, que afirma preservar linha editorial conservadora e crítica, afirmando ter como a base da essência “a pluralidade e o apreço aos fatos que a grande mídia não mostra”.

A publicação na Actu Intel traduz trechos de outro artigo, veiculado pelo portal ultraconservador LifeSiteNews, removido recentemente do Facebook sob a acusação de violar as políticas relacionadas ao coronavírus.

O próprio site afirma que a justificativa da plataforma para a remoção foi a política da empresa de remover contas que distribuem “informações desencorajadoras de vacinas na plataforma”. A página também foi acusada de publicar “informações falsas sobre COVID-19 que poderiam contribuir para danos físicos”.

O texto em questão associa a morte do ator à vacinação e as informações são creditadas ao site Great Game India, citado pela revista Wired como um veículo que publica teorias da conspiração.

Após encontrar a origem das informações que ligavam a morte de Vivek à vacina Covaxin, o Comprova passou a fazer buscas junto à imprensa indiana, encontrando diversas notícias que tratam da internação do ator após a vacinação e da morte dele. Os mesmos noticiários apresentam posicionamentos da equipe médica que atendeu o paciente.

Foram realizadas buscas sobre o processo de autorização da Covaxin no mundo e no Brasil e ouvidos especialistas para comentar a suposta associação entre a vacina e o infarto, causa da morte do ator. O Comprova conversou, ainda, com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

O Comprova procurou o responsável pelo tuíte, que afirma publicamente manter um grupo no Telegram onde diz compartilhar “informações verificadas e de procedência confiável relacionadas principalmente a temas sobre vacinas e demais assuntos vinculados”. Ele não retornou o contato feito pela equipe de checagem, mas bloqueou o verificador na plataforma Twitter.

O Comprova encaminhou e-mail ao endereço disponibilizado pelo site Tribuna Nacional na página no Facebook e ainda aguarda retorno.

E-mails foram encaminhados também para o laboratório indiano Bharat Biotech, desenvolvedor da Covaxin, e para a farmacêutica Precisa Medicamentos, que irá produzir as doses no Brasil, mas não houve retorno até a publicação.

Ao longo da verificação, o Comprova se deparou com duas grafias utilizadas para o nome do ator: Vivek e Vivekh. As duas formas aparecem, inclusive, no perfil dele no Twitter, uma no nome e outra no usuário. Ao longo da checagem optou-se por usar “Vivek”, sem o h, forma grafada em nota à imprensa divulgada pelo hospital que o atendeu.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 26 de maio de 2021.

Verificação

Informação surgiu de site que publica teorias da conspiração

O tuíte do usuário @slan19467036 divulga um texto publicado na página Actu Intel, que se apresenta nas redes sociais como um veículo que traduz artigos em língua inglesa para a língua francesa.

Na aba “Quem somos nós”, o site faz uma crítica à imprensa, acusando a mídia mundial de não divulgar informações e de servir para “proteger os políticos e outras personalidades corrompidas”. Em seguida, o site se coloca como necessário para “difundir essas informações que frequentemente não chegam aos ouvidos dos falantes de língua francesa para cumprir nosso papel de soldados digitais”.

O conteúdo divulgado no tuíte trata da morte de Vivek, definido pelo veículo como ex-comediante e embaixador da saúde de Tamil Nadu, estado do sul da Índia. A publicação traduz trechos de outro texto, veiculado pelo portal ultraconservador LifeSiteNews, removido recentemente do Facebook sob a acusação de violar as políticas relacionadas ao coronavírus. A publicação em questão associa a morte do ator à vacinação, afirmando ser “a última fatalidade relacionada ao coração após a vacinação relatada na Índia em duas semanas”.

Estas informações, por sua vez, são creditadas ao site Great Game India, citado pela revista Wired na reportagem “Como um mito específico do coronavírus se tornou viral”, publicado em março de 2020. O Great Game India se autodenomina um jornal de geopolítica e relações internacionais, mas publica teorias da conspiração.

Vivek sofreu infarto e médicos descartaram ligação com a vacina

O ator Vivek sofreu um ataque cardíaco em Chennai, capital do estado de Tamil Nadu, na Índia, no dia 16 de abril, conforme divulgou amplamente a mídia indiana.

Um dia antes, na manhã de 15 de abril, ele havia sido vacinado com a vacina Covaxin no Hospital da Faculdade Pública de Medicina Omandurar Estate.

Vivek havia sido declarado embaixador do estado para a criação de mensagens relacionadas à saúde pública e pediu, ao ser vacinado, que outras pessoas seguissem o exemplo, afirmando que “apenas a vacina pode nos proteger da covid”.

O vídeo dele recebendo a dose foi postado no mesmo dia na página do canal de notícias TV Thanthi e o próprio ator publicou, na mesma data, um tuíte em agradecimento.

Na manhã seguinte, às 11 horas, ele passou mal e foi levado ao SIMS Hospital pelos familiares.

Conforme o vice-presidente da unidade de saúde, Raju Sivasamy, disse aos repórteres locais, o ator foi ressuscitado por uma equipe de emergência e cardiologistas, sendo submetido a uma angioplastia e internado na unidade de terapia intensiva, com suporte de ECMO, sigla em inglês para Oxigenação Extracorpórea por Membrana. Trata-se de um aparelho capaz de funcionar como um pulmão e um coração artificiais para pacientes que estão com os órgãos comprometidos.

Ainda na ocasião, Sivasamy declarou que se tratava de uma síndrome coronariana aguda com choque cardiogênico, tratando-se de um evento cardíaco não relacionado à vacina contra a covid-19. O choque cardiogênico ocorre quando o coração perde a capacidade de bombear sangue em quantidade adequada para os órgãos, causando queda da pressão arterial, falta de oxigênio nos tecidos e acúmulo de líquido nos pulmões.

Na madrugada de 17 de abril, o ator morreu internado, aos 59 anos, e a administração do hospital declarou que o paciente teve uma pequena elevação da pressão arterial.

O ataque cardíaco foi considerado um “choque” pelo secretário de Saúde do Estado de Tamil Nadu, J. Radhakrishnan, que estava presente quando o ator foi vacinado.

Após reunir-se com os diretores de Educação Médica e Serviços de Saúde Médica e Rural e com a equipe de médicos do SIMS Hospital, ele declarou que 830 pessoas foram vacinadas com a Covaxin, no Hospital do Governo de Omandurar, no mesmo dia que Vivek.

“Hoje também muitos tomaram e 5,6 lakh (unidade do sistema de numeração indiana – 5,6 lakh equivale a 560 mil) de pessoas tomaram Covaxin. Não observamos esses efeitos adversos e não tem relação com a vacina”, sustentou.

O Comprova entrou em contato com o laboratório indiano Bharat Biotech, desenvolvedor da Covaxin, e com a farmacêutica Precisa Medicamentos, que irá produzir as doses no Brasil, abrindo espaço para se posicionarem sobre o caso de Vivek e solicitando mais informações sobre a substância, mas não houve retorno até o momento.

O que dizem os especialistas

A cardiologista Márcia Cristina A. Silva, do Instituto de Cardiologia e Geriatria (Icordis), no Recife, explica que o “choque cardiogênico”, citado entre as causas que levaram à morte de Vivek, é uma série de reações do corpo à interrupção no fornecimento de sangue, como a diminuição da pressão arterial e a falta de oxigênio nos tecidos, por exemplo.

Ela explica, também, que o infarto ocorre quando o tecido do miocárdio morre por falta de oxigenação, quando o sangue não chega até ele porque a coronária – artéria que irriga o músculo cardíaco – se entupiu por algum motivo.

Conforme a médica, a causa mais comum desse entupimento é a trombose da artéria coronária, ou seja, a formação inicial de um coágulo. Quando esse coágulo se organiza com a rede fibrina – proteína fibrosa envolvida na coagulação de sangramentos – vira um trombo. “Uma bola de sangue, mas rígida, que vai crescendo, crescendo, até entupir totalmente o fluxo de sangue”, explica a cardiologista.

Ela acrescenta que se esse entupimento demorar tempo suficiente, as células do coração começam a morrer pela ausência de oxigênio e glicose trazidos pelo sangue. Se uma área muito grande do coração for afetada, o músculo pode perder a capacidade de bombear sangue para outras áreas do corpo.

“Isso leva à hipotensão, à congestão de líquido no pulmão, com uma forte falta de ar, queda de pressão e morte. Isso é o que a gente chama de choque cardiogênico”, conclui. Nesses casos, a morte pode ocorrer por falência múltipla de órgãos.

Sobre as vacinas contra a covid-19, notadamente a Pfizer, a Moderna e a Astrazeneca, a cardiologista explica que quando aplicadas há uma sobrecarga imunológica intensa nas primeiras 24 horas, podendo causar como reação febre e dor no corpo, principalmente entre os mais jovens.

“A gente precisava saber se essa pessoa (Vivek), antes de morrer, teve reação imunológica. O fato pode ter sido precipitado – não causado – por estado febril agudo intenso, taquicardia e aumento da demanda metabólica”, diz. Não há notícia de que o ator tenha sentido alguma reação de natureza febril.

Márcia Cristina afirma que caso uma pessoa já tenha a artéria parcialmente entupida e sofra uma demanda aumentada por um esforço muito grande, como um estresse físico ocasionado por reação vacinal, pode ser desencadeado um infarto, mas ressalta que não haveria relação de causalidade, ou seja, a vacina não teria formado o trombo que levou ao infarto.

Ainda segundo a médica, o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês) já estudou mais de 110 mortes ocorrida por doença trombótica aguda, AVC, derrame e infarto e disse não ter conseguido estabelecer uma relação causal entre a vacina e o infarto.

O órgão continua estudando e monitorando os casos adversos para garantir a segurança dos imunizantes. “Independente disso, os casos têm sido muito raros. É menos de 0,0001% para a Astrazeneca e 0,0004% para Pfizer e Moderna”, lembra.

Opinião semelhante tem o cardiologista Glauber Fabião Signorini, médico do Instituto de Cardiologia – Fundação Universitária de Cardiologia (IC-FUC) do Rio Grande do Sul. “Não creio que essa vacina poderia ter levado a uma oclusão (fechamento) coronariana, muito provavelmente esse indivíduo já teria alguma doença isquêmica (aquela que afeta as artérias do coração) e 24 horas após a vacina, por coincidência ou não, ter ocorrido a obstrução”.

Ele destaca que as vacinas são antígenos injetados para criar anticorpos e que há diferentes tipos de vacina. “Falou-se que algumas vacinas poderiam ter caráter emboligênico, ou seja, obstruírem alguns vasos, mas não se tem nada declarado e tivemos poucas complicações, um ou quatro casos em um milhão, que teriam tido alguma intercorrência. A princípio, não se tem confirmação científica que nenhuma das vacinas poderia criar um evento coronariano”, defende.

Assim como a cardiologista Márcia Cristina, o especialista lembra que a doença coronariana, na maior parte dos casos, se dá por desenvolvimento de placas de gordura que podem crescer, diminuindo o fluxo de sangue, e romper, lançando na corrente sanguínea intra-arterial um trombo. “Então fica a placa e a ruptura da placa com aquele trombo, o que leva a não oxigenação dos tecidos – a partir da obstrução – e ao infarto agudo do miocárdio, que em 10% dos casos é fatal nas primeiras horas”.

Sobre o caso do ator indiano, Signorini afirma não saber detalhes, mas entende que, se foi realizada a angioplastia, é porque havia obstrução na coronária. “Acho que não tem lógica ficarem culpando essa vacina como uma vacina que potencialmente esteja levando a óbito”, diz.

Sobre a morte no dia seguinte à angioplastia, ele afirma que o vaso pode ter sido fechado novamente ou o paciente pode ter tido um infarto grande que levou a uma disfunção da contração do músculo cardíaco, o que agrava o prognóstico. “Eu não creio que a vacina seja a vilã da história, mas não conheço o caso, medicamente falando, com a qualidade de uma avaliação. Não tenho como precisar como aconteceu, mas pela evolução do caso trata-se de um paciente que já era isquêmico e foi vacinado casualmente um dia antes do evento”, analisa.

Covaxin

A Covaxin é uma vacina para o combate ao Sars-CoV-2, o novo coronavírus, causador da Covid-19, de duas doses, com 28 dias de intervalo, e produzida a partir de vírus inativado.

Foi desenvolvida pela empresa indiana Bharat Biotech em parceria com o Instituto Nacional de Virologia e o Conselho Indiano de Pesquisa Médica. A Índia autorizou a vacina para uso emergencial em 3 de janeiro e os resultados dos testes, posteriormente, mostraram que a vacina tem uma eficácia de 78%.

Em janeiro de 2021, o Comitê Central de Drogas e Padrões (CDSCO) da Índia concedeu autorização de emergência à Covaxin, apesar de não haver divulgação dos dados da Fase 3, mostrando que a vacina é segura e eficaz.

Segundo a plataforma Our World in Data, vinculada à Universidade de Oxford, na Inglaterra, a Covaxin tem sido utilizada em cinco países: República Centro Africana, Comores, Índia, Irã e Ilhas Maurício. Ao todo, 206 países já deram início a suas campanhas de vacinação contra a covid-19, de acordo com o mesmo levantamento. No dia 7 de maio o New York Times publicou um artigo detalhando como funciona a Covaxin.

Covaxin no Brasil

Em 25 de fevereiro deste ano, o Ministério da Saúde do Brasil anunciou ter assinado contrato para a compra de 20 milhões de doses da Covaxin com a Precisa Medicamentos, fabricante da vacina no Brasil. A entrega era prevista de forma escalonada entre os meses de março a maio.

Procurada pelo Comprova, a Anvisa informou no dia 24 de maio que há dois processos distintos da Covaxin no Brasil, sendo um o pedido de importação feito pelo Ministério da Saúde e o outro o pedido de autorização de estudo a ser realizado no país, solicitado pelo laboratório Precisa Farmacêutica.

No final de março, a agência reguladora já havia deliberado sobre um pedido de importação e a Diretoria Colegiada decidiu, por unanimidade, negar a autorização excepcional e temporária para importação e distribuição da vacina. Segundo o órgão, desde então, o Ministério da Saúde vem trabalhando nas adequações necessárias a um novo processo de importação, visando o cumprimento da Lei 14.124/2021 e da RDC 476/2021, além da observância aos aspectos técnicos apontados nos Votos que subsidiaram a decisão da Diretoria Colegiada da Anvisa”.

No dia seguinte ao contato com a Anvisa, 25 de maio, a agência recebeu um novo pedido de importação das 20 milhões de doses, protocolado pelo Ministério da Saúde.

O estudo clínico da vacina, por sua vez, foi autorizado no dia 13 de maio. A Anvisa explica tratar-se de um estudo que prevê 4,5 mil voluntários. “O tempo de duração dos estudos depende do laboratório patrocinador e está relacionado a questões típicas de um estudo clínico, como mobilização de voluntários, contratação de centros clínicos, consolidação de dados e avaliação dos dados científicos”, afirma em nota enviada ao Comprova.

No dia 25 de maio, o G1 divulgou que o Instituto de Pesquisa Clínica de Campinas vai sediar os testes da fase 3 da Covaxin, com autorização da Anvisa. Os demais institutos que irão atuar na fase final são a Fundação Faculdade Regional de Medicina de São José do Rio Preto, o Hospital do Instituto de Gastroenterologia de São Paulo (Igesp), o Centro Paulista de Investigação Clínica (Cepic), a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein.

Por que investigamos?

O Comprova verifica conteúdos suspeitos que viralizaram nas redes sociais e que tratam da pandemia da covid-19 e de políticas públicas do governo federal.

Tuítes, como o do usuário @slan19467036, que teve 751 interações na plataforma, e a publicação no Tribuna Nacional, compartilhada 89 vezes a partir do site, são perigosos porque enfraquecem a confiança da população nas vacinas, principal método disponível para controle da pandemia.

O Ministério da Saúde brasileiro comprou 20 milhões de doses da Covaxin e aguarda a liberação da Anvisa, que autorizou os testes clínicos, para acrescentar o imunizante no Plano Nacional de Imunização.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor, bem como aquele que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Saúde

Investigado por: 2021-05-25

Médico engana ao afirmar, em vídeo, que hidroxicloroquina é eficaz contra covid

  • Enganoso
Enganoso
São enganosas as afirmações do cirurgião plástico que, em vídeo no Instagram, defende o uso da hidroxicloroquina, entre outras drogas, no “tratamento precoce” contra a covid-19. Segundo a bula do remédio, os fabricantes, a OMS e especialistas ouvidos pelo Comprova, o remédio não tem eficácia nenhuma no combate ao vírus.
  • Conteúdo verificado: Vídeo postado no Instagram no qual um cirurgião plástico afirma que a hidroxicloroquina é eficiente no combate à covid-19.

É enganoso o vídeo no qual um médico defende o uso da hidroxicloroquina no tratamento precoce contra a covid-19. Na gravação, publicada no Instagram em 18 de maio, o profissional se refere ao medicamento como “remédio antimalárico” e diz que ele tem “uma ação antiviral muito potente”. Não é verdade, pois ele não age contra nenhum vírus, segundo a bula aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Os próprios fabricantes do medicamento, com exceção do Exército, não recomendam o remédio contra o coronavírus. Em outubro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) rejeitou de forma conclusiva e, em dezembro, contraindicou “fortemente” essa utilização do medicamento, que, mesmo sem eficácia comprovada contra a doença, continua sendo defendida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

De acordo com Ana Paula Herrmann, doutora em bioquímica e professora do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o médico também erra ao afirmar que a cloroquina inibe a entrada do vírus no organismo e que sua ação imunossupressora –um dos benefícios da droga para pacientes com doenças autoimunes, como o lúpus – funcione no “tratamento precoce”. “A ação imunossupressora poderia ter efeito apenas na fase inflamatória da doença, ou seja, em casos graves e, por isso, não teria sentido em um tratamento precoce”, diz.

Outro especialista entrevistado pelo Comprova, Adriano Defini Andricopulo, professor de Química Medicinal da Universidade de São Paulo (USP) e diretor-executivo da Academia de Ciências do Estado de São Paulo, aponta que as declarações no vídeo se resumem à desinformação. “É preciso ficar claro que está sendo feita a indicação de um medicamento que não funciona para a covid-19 e, mais do que isso, há o risco de provocar arritmia cardíaca e outros efeitos adversos. Ou seja, não tem benefício e ainda pode afetar a saúde do indivíduo.”

Procurado, o médico Guilherme Sorrentino afirmou que tratou seus pacientes “e, graças à hidroxicloroquina”, teve “muito sucesso”. E completou: “Em tempo, não devo explicação nenhuma para uma pessoa que eu não conheço”.

Como verificamos?

O Comprova buscou as verificações que já publicou sobre a hidroxicloroquina e também pesquisou reportagens sobre o medicamento e comunicados de órgãos como OMS, Anvisa e os fabricantes do medicamento.

Além disso, entrevistou, por telefone, a biomédica Ana Paula Herrmann e o pós-doutor em Química Medicinal Adriano Defini Andricopulo, depois que ambos assistiram ao vídeo.

A equipe buscou informações sobre o autor do vídeo, Guilherme Sorrentino, e trocou mensagens com ele via Instagram.

Por último, o Comprova entrou em contato com a assessoria do Hospital Albert Einstein para verificar o posicionamento da instituição em relação à hidroxicloroquina.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 25 de maio de 2021.

Verificação

O vídeo

No vídeo, com quase 10 minutos de duração, o cirurgião Guilherme Sorrentino começa a sua apresentação pedindo que as pessoas compartilhem o conteúdo, alegando que o objetivo é ajudar. O médico admite que não é especialista na área, mas discorre sobre remédios que não têm eficácia para a covid-19. Num dos trechos, ele diz que vai tirar o vídeo do ar “em breve” porque não quer se incomodar.

Depois, Sorrentino faz referência a mecanismos que explicariam a razão para adotar o medicamento no combate ao coronavírus (eles serão tratados abaixo). O professor Adriano Andricopulo, da USP, aponta que mecanismos testados no início da pandemia foram descartados porque se verificou que a cloroquina não é eficaz para a covid-19.

Ele também cita outros medicamentos – também sem eficácia comprovada contra a doença. Ao longo de toda a gravação, Sorrentino usa vários termos científicos, dificultando a compreensão do conteúdo por leigos, como constata Andricopulo. “É uma estratégia: fala coisas difíceis, fora do alcance das pessoas que vão assistir ao vídeo, e passa adiante a fake news”, avalia.

O que dizem especialistas

A biomédica e professora da UFRGS Ana Paula Herrmann também afirma que o conteúdo do vídeo está equivocado. Ela observa que Sorrentino mistura algumas poucas informações corretas com outras totalmente erradas para justificar o uso da cloroquina em pacientes com a covid-19, remédio que já se comprovou não ter eficácia para a doença.

Um dos exemplos citados pela professora é a “porta de entrada” do Sars-Cov-2 (o coronavírus que causa a covid-19) no organismo. De fato, a proteína ACE-2 tem esse papel, como disse Sorrentino, mas não é verdade que a cloroquina tenha o efeito de inibir a entrada, como também declarou o médico no vídeo.

Sorrentino ainda faz referência à função imunossupressora da cloroquina, um dos benefícios da droga para pacientes com doenças autoimunes, como o lúpus, exemplifica Ana Paula. Contudo, explica a professora, a ação imunossupressora poderia ter efeito apenas na fase inflamatória da doença, ou seja, em pacientes graves e internados e, por isso, não teria sentido em um “tratamento precoce”.

“Todo o vídeo tem um certo verniz científico, usa termos sobre a biologia das células, do vírus, mas é equivocado. As pessoas ouvem sobre Complexo de Golgi, lisossomos, e podem pensar que ele sabe do que está falando, mas o vídeo tem um monte de informação incorreta e nenhuma evidência científica (para o uso da cloroquina contra a covid-19)”, ressalta Ana Paula.

Outro aspecto observado pela professora é o trecho em que Sorrentino aborda a “alcalinização do sangue.” Ana Paula trata esse ponto como uma “grande bobagem” que, segundo ela, já há muito tempo, antes dos aplicativos de mensagem se popularizarem, circulava em forma de power point por e-mail. “O pH do sangue é extremamente regulado e dizer o contrário é uma completa besteira”, garante.

Para Adriano Defini Andricopulo, as declarações de Sorrentino se resumem à desinformação. Ele lembra que, no início da pandemia, mecanismos citados pelo cirurgião até eram possíveis de se admitir quando foram realizados os ensaios in vitro (laboratório). “Mas, depois, quando feitos os testes com células do trato respiratório, foi constatada a ausência de benefícios”, ressalta o professor, reforçando posicionamento crítico ao fato de que ainda hoje, após inúmeras evidências como os alertas da Organização Mundial de Saúde (OMS), a cloroquina seja divulgada para o tratamento de casos de coronavírus.

“É preciso ficar claro para as pessoas que está sendo feita a indicação de um medicamento que não funciona para a covid-19 e, mais do que isso, há o risco de provocar arritmia cardíaca e outros efeitos adversos. Ou seja, não tem benefício e ainda pode afetar a saúde do indivíduo”, frisa o professor, com mais de 30 anos de experiência na área de fármacos.

Ineficácia

O apoio ao medicamento se disseminou após a publicação, em março de 2020, de um estudo conduzido pelo francês Didier Raoult. Segundo a pesquisa, o uso da cloroquina teria curado 75% dos pacientes com covid-19 em seis dias. Mas o estudo foi alvo de críticas da revista Science, referência em estudos científicos, e seus resultados foram questionados e considerados incompletos.

O então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, passou a apoiar o medicamento e, logo depois, Jair Bolsonaro (sem partido) encampou o mesmo discurso. Já em 21 de março de 2020, Bolsonaro anunciou que o Exército ampliaria a produção do remédio no país para pacientes com o coronavírus. Quatro dias depois, o Ministério da Saúde emitiu uma nota técnica autorizando seu uso em pacientes graves.

Nos meses seguintes, Bolsonaro demitiu dois ministros da saúde, Luiz Henrique Mandetta, em 16 de abril, e Nelson Teich, em 15 de maio. Ambos são médicos e se opunham à prescrição de cloroquina para tratar pacientes com quadros leves da doença.

Em 20 de maio, o Ministério da Saúde, já tendo como ministro interino o general Eduardo Pazuello, passou a orientar o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no “tratamento medicamentoso precoce” de pacientes com o novo coronavírus, mas ressaltava que “ainda não há meta-análises de ensaios clínicos multicêntricos, controlados, cegos e randomizados que comprovem o benefício inequívoco dessas medicações para o tratamento da covid-19”.

Só naquele mês, o Comprova publicou quatro verificações sobre o uso da cloroquina – todas com a etiqueta de conteúdo enganoso.

Enquanto o chefe do governo federal defendia o medicamento sem eficácia comprovada, alguns médicos do Brasil todo passaram a fazer o mesmo. Começaram a surgir falsas teorias de que cidades, como Porto Feliz, teriam evitado mortes pelo vírus por terem adotado o tratamento com o remédio.

Ainda em outubro de 2020, a OMS rejeitou de forma conclusiva o uso da cloroquina no combate ao coronavírus e, quatro meses depois, a Apsen, maior fabricante do medicamento no Brasil, afirmou que não recomendava que ele fosse usado para este fim. Outras três farmacêuticas –Farmanguinhos/Fiocruz, EMS e Sanofi-Medley já haviam feito declarações nesse sentido. A Cristália, outra das seis fabricantes, divulgou um texto em março deste ano em que um representante ressaltou: “Não vendo nenhum produto fora do que a Anvisa autorizou. Ela autoriza para algumas coisas, como malária, mas não tem nada a ver com covid. Na minha bula, que é dada pela Anvisa, só forneço cloroquina para estes fins específicos”. O sexto produtor é o Laboratório do Exército, pertencente ao governo federal, que continua defendendo o medicamento.

Testes para pacientes com HIV

Durante o vídeo, Guilherme Sorrentino ainda menciona a existência de estudos com a cloroquina para a Aids, que estariam apresentando resultados positivos, mas foram interrompidos.

De fato, segundo a professora Ana Paula Herrmann, a droga foi testada para diversas infecções virais, como a provocada pelo HIV, mas não houve comprovação da sua eficácia para tratar outras doenças além daquelas para as quais já é indicada.

Ela conta que, em uma revisão sistemática relativamente recente, há pelo menos seis estudos sobre o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina para HIV. Cinco desses estudos são ensaios clínicos controlados, realizados de 1995 a 2016, e o que apresenta o menor risco de viés (possibilidade de distorção) e usou mais pacientes não encontrou nenhum efeito da droga para HIV.

“De forma geral, são estudos pequenos, que não passam de 50 participantes em cada grupo, e com alto risco de viés”, pontua.

A professora diz que também foi avaliado o efeito da substância em outras infecções virais, tais como gripe, hepatite C e dengue, mas não se chegou a nenhum resultado substancial.

Ela afirma ainda que os resultados foram observados em ensaios in vitro e reforça que nem tudo o que é alcançado em laboratório pode ser aplicado em seres humanos.

“A maioria das coisas in vitro não funciona na clínica. Então, não quer dizer que, se inibe a replicação viral in vitro, vai ter efeito clínico. São situações completamente diferentes. Existem estudos clínicos da cloroquina para HIV, sim, mas nada que demonstre de maneira robusta a sua eficácia para esta ou outras condições virais”, finaliza Ana Paula.

Outros remédios

Sorrentino também engana quando se refere a outros medicamentos, também sem citar seus nomes. “Eu falei sobre um remédio (a hidroxicloroquina); e os outros… o remédio para piolho? Também funciona. O remédio para verme? Também funciona”, diz ele, no vídeo.

O médico pode estar se referindo apenas à ivermectina, que combate piolhos e vermes, ou à ivermectina e outros, como o vermífugo nitazoxanida.

Em todo caso, embora ambos já tenham sido defendidos por Jair Bolsonaro, não há até aqui nenhum medicamento com eficácia comprovada contra o coronavírus. A ivermectina, segundo o bulário eletrônico da Anvisa, “é indicada para o tratamento de várias condições causadas por vermes ou parasitas” e funciona no tratamento de infecções como “estrongiloidíase intestinal, oncocercose, filariose (elefantíase), ascaridíase (lombriga), escabiose (sarna) e pediculose (piolho)” – ou seja, não combate o coronavírus.

Ainda de acordo com a própria Anvisa, as “indicações aprovadas para a ivermectina são aquelas constantes da bula” , segundo comunicado do órgão em 10 de julho de 2020.

Outro antiparasitário, a nitazoxanida, também foi defendido pelo governo Bolsonaro. Segundo a bula da Anvisa, ela “age contra protozoários por meio da inibição de uma enzima indispensável à vida do parasita”, o que também “parece ocorrer em relação aos vermes, embora outros mecanismos, ainda não totalmente esclarecidos, possam estar envolvidos”. O medicamento também funciona contra vírus: “a ação se dá através da inibição da síntese da estrutura viral, bloqueando a habilidade do vírus em se replicar”.

Em outubro do ano passado, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação publicou que o medicamento era eficiente contra o coronavírus, mas o estudo, em preprint, foi criticado por falhas e mostrou resultado similar ao do placebo.

O autor do vídeo

Em seu perfil no Instagram, e também no Linkedin, Guilherme Sorrentino se apresenta como cirurgião plástico. Na primeira rede, ele informa atuar em Porto Alegre. Em uma busca pelo seu nome no Google, um dos resultados leva para o site de Victor Sorrentino, que oferece um curso on-line chamado Vida & Saúde, para “você poder cuidar da saúde, física e emocional, de uma maneira muito mais completa e eficaz”.

Já uma pesquisa no Conselho Federal de Medicina (CFM) traz duas inscrições. A mais antiga é de 9 de janeiro de 2008 e exibe como “especialidades/áreas de atuação” cirurgia geral e cirurgia plástica. Na mais recente, de 31 de janeiro de 2011, ele aparece como “médico sem especialidades registradas”.

No vídeo verificado aqui, ele diz estar atuando na linha de frente da pandemia, mas o Comprova não conseguiu checar essa informação. A reportagem perguntou para ele onde ele está atendendo pacientes com covid, mas ele não respondeu essa questão.

Ao primeiro contato do Comprova ele respondeu ter tido sucesso tratando pacientes com hidroxicloroquina e que não devia explicação nenhuma para a reportagem. “Se quiser agendar uma consulta, eu mostro o artigo e ensino muito mais sobre a covid do que os teus colegas da mídia”, escreveu.

Uma das perguntas feitas pelo Comprova foi sobre a seguinte afirmação que ele faz no vídeo: “(Quero) Agradecer aos meus amigos, aos pacientes que confiam em mim, que estão também utilizando das minhas informações para não só se tratarem mas para poder tratar familiares e amigos”. Sorrentino afirmou que eles “usam informações gerais, como alimentação, suplementação, hábitos saudáveis, uso de máscara e álcool gel. Além de orientações sobre como saber quando está com suspeita de covid e a quem recorrer. Em nenhum momento oriento utilizar medicações que, obviamente, precisam ser prescritas e carimbadas por médico”.

Ao final, ele enviou uma apresentação com o logotipo do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, com o título “Hidroxicloroquina, um composto menos tóxico que a cloroquina, é capaz de inibir a replicação do Sars-CoV-2 in vitro”, afirmando que “não precisamos ir muito longe para saber sobre a farmacologia da Hidroxicloroquina”. Mas, como informa o título, trata-se de um estudo in vitro, o que não comprova a eficácia no tratamento em humanos. Além disso, consultado, o Einstein afirma que não apoia o uso deste medicamento contra a covid.

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Projeto Comprova investiga conteúdos possivelmente falsos ou enganosos sobre a pandemia que tenham alcançado alto grau de viralização nas redes sociais, como o vídeo verificado aqui, que foi visualizado mais de 5.860 vezes no perfil do médico no Instagram.

Conteúdos suspeitos sobre medicamentos sem eficácia comprovada colocam a população em risco, pois podem dar a entender que basta tomar o remédio para estar imune ao coronavírus, o que é mentira. É importante que todos saibam que é preciso seguir as medidas realmente eficazes na redução dos casos de covid-19, como a vacinação, o uso de máscaras e álcool em gel, a lavagem das mãos e o distanciamento social.

Materiais como esse já foram alvo de várias checagens do Comprova. O projeto mostrou, por exemplo, que é falso que 52 municípios tenham zerado o número de mortes ao supostamente adotarem o “tratamento precoce” e que um protocolo italiano de atendimento domiciliar não tem relação com o conjunto de remédios sem eficácia comprovada.

Enganoso, para o Comprova, é qualquer conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; e o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Saúde

Investigado por: 2021-05-21

Tuíte engana ao sugerir que Bolsonaro recusou oferta anterior da Pfizer para conseguir mais vacinas

  • Enganoso
Enganoso
É enganoso o tuíte que afirma ter sido uma estratégia do governo não ter assinado um contrato com a Pfizer ainda em 2020. Além da falta de evidências da adoção de uma ação do tipo pelo Ministério da Saúde, epidemiologistas afirmam que o mais importante era iniciar a imunização contra o coronavírus o mais cedo possível, e lembram que mais doses poderiam ter sido compradas em contratos futuros - como, de fato, ocorreu.
  • Conteúdo verificado: Tuíte diz que o governo federal não assinou o contrato com a Pfizer, no ano passado, para a aquisição de 70 milhões de doses da vacina contra o coronavírus, em favor do acordo fechado neste ano, que prevê a entrega de 100 milhões de doses até setembro.

É enganosa uma mensagem publicada no Twitter que sugere que o Governo Federal recusou propostas de aquisição de vacinas da Pfizer em 2020 como estratégia para obter um contrato com cronograma de entregas mais vantajoso em 2021.

Não há evidências de que a recusa de uma oferta da farmacêutica em dezembro e a ausência de manifestação do Ministério da Saúde sobre propostas anteriores tenham contribuído para a pasta antecipar o recebimento de um volume maior de vacinas até setembro deste ano.

A companhia, que aumentou seu potencial produtivo do imunizante em 2021, também antecipou o cronograma de entregas de doses para os Estados Unidos e a União Europeia. Registros públicos indicam que o principal impasse nas discussões entre a Pfizer e o governo no fim do ano passado foram as cláusulas de contrato propostas pela empresa.

A publicação ainda omite que, em agosto do ano passado, a Pfizer chegou a ofertar lotes programados para dezembro e um volume maior de doses no primeiro semestre de 2021, se comparado ao contrato assinado pelo Ministério da Saúde.

Epidemiologistas ouvidos pelo Comprova afirmam que vidas poderiam ter sido salvas caso a imunização contra o coronavírus tivesse sido iniciada mais cedo. Eles ressaltaram que o governo poderia ter reforçado as compras em contratos futuros – como ocorreu recentemente.

O Ministério da Saúde e o autor do tuíte foram procurados pelo Comprova, mas não responderam aos nossos contatos até a publicação desta checagem.

Como verificamos?

Buscamos, em matérias publicadas por diversos veículos de comunicação desde o começo do ano, informações sobre o processo de compra dos imunizantes produzidos pela Pfizer. A ideia foi entender a cronologia da negociação com a farmacêutica.

Depois, acessamos material publicado na imprensa sobre as declarações a respeito do assunto que estão sendo dadas por testemunhas ouvidas na Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado, para tentar esclarecer pontos que ainda não são totalmente claros nesta negociação.

Também ouvimos dois epidemiologistas para entender as possíveis consequências de se ter adiado o início da vacinação.

Por fim, contatamos o Ministério da Saúde e o autor da postagem no Twitter, @LorenzonItalo, que não nos responderam até a publicação deste texto.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 21 de maio de 2021.

Verificação

“Cláusulas leoninas”

Ao dizer que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) recusou um contrato de 70 milhões de doses de vacina até em prol de um contrato de 100 milhões de doses, o post omite que um dos principais impasses nas negociações entre a Pfizer e o Governo Federal em dezembro foram as cláusulas dos contratos apresentados pela farmacêutica.

Após a empresa comentar publicamente as negociações frustradas em janeiro, o governo publicou uma nota em que acusou a companhia de adotar “cláusulas leoninas” no contrato, como um dispositivo que eximia a responsabilização da farmacêutica por possíveis efeitos colaterais ligados à vacinação.

Discursos do presidente Jair Bolsonaro reforçam que as cláusulas foram um ponto sensível da negociação. “Lá, na Pfizer, tá bem claro no contrato: nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré, é problema de você”, afirmou Bolsonaro, durante pronunciamento em dezembro.

O comunicado de janeiro do governo cita que o número de doses iniciais era baixo e causaria “frustração em todos os brasileiros”. A proposta, no entanto, previa quase o mesmo número de doses até o segundo trimestre se comparada à oferta da farmacêutica realizada em fevereiro deste ano, que foi atualizada pela empresa em março e finalmente aceita pelo governo brasileiro. Não há evidência, portanto, de que, como quer fazer crer o tweet verificado, o governo não fechou o contrato no fim de 2020 porque a quantidade de vacinas oferecida era menor que o desejado.

Em janeiro, segundo uma matéria do Estadão, o governo federal deixou de incluir em uma Medida Provisória (1.062/2021) um dispositivo que permitia que a União se responsabilizasse por possíveis efeitos colaterais da aplicação dos imunizantes. A cláusula faz parte dos contratos que a Pfizer firmou com vários outros países que adquiriram as vacinas contra a covid-19, assim como a exigência de garantias por parte do governo brasileiro — trecho que também foi suprimido da versão original da MP. Um outro texto legal, com previsões similares ligadas à responsabilidade civil e que autorizou que o governo federal fechasse o primeiro acordo com a farmacêutica só foi sancionado em 10 de março.

Aumento de produção

Com mais de 12 mil interações no Twitter, a publicação enganosa afirma que “Bolsonaro recusou um contrato de 70 milhões de doses de vacina até dezembro/21 em prol de um contrato de 100 milhões de doses até SETEMBRO/21.”.

As propostas iniciais da Pfizer ao governo brasileiro de fato previam a entrega de 70 milhões de doses até o fim de 2021. Também é verdade que o contrato assinado em março deste ano estabeleceu um cronograma com 100 milhões de vacinas até o terceiro trimestre. O que o boato não menciona é que a farmacêutica expandiu sua capacidade produtiva do imunizante e também ofereceu melhores prazos de entrega para outros países.

O post analisado pelo Comprova remete a uma oferta da Pfizer de 70 milhões de doses realizada em novembro de 2020 e discutida com o Ministério da Saúde no mês seguinte. Recusada pelo governo, a proposta estipulava a entrega de 2 milhões de doses no 1º trimestre de 2021; 6,5 milhões no 2º trimestre; 32 milhões no 3º trimestre; e 29,5 milhões no 4º trimestre, conforme revelou a farmacêutica.

Antes disso, a empresa havia oferecido, em agosto, três ofertas com seis opções de compras divididas em 30 milhões e 70 milhões de doses. Todas foram ignoradas pela pasta, segundo depoimentos na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o enfrentamento da pandemia no Brasil.

As condições da proposta de novembro são semelhantes às de um outro contrato oferecido pela Pfizer em fevereiro deste ano. Depois, outros prazos de entrega foram oferecidos ao governo brasileiro e o contrato com a farmacêutica foi assinado em março. A diferença é que a última oferta envolve um volume de mais 200 mil doses até o primeiro semestre e mais 30 milhões de unidades adicionais nos últimos três meses do ano – o que resultou na quantidade total de 100 milhões de vacinas.

A proposta da Pfizer finalmente aceita pelo governo tem mais doses não porque o governo brasileiro recusou a primeira oferta, mas sim porque a empresa ampliou sua capacidade de produção.

Uma matéria do Estadão mostra que em 8 de março a Pfizer apresentou um novo cronograma que atualizou a previsão de entrega de 8,7 milhões de doses, para 14 milhões de unidades até o segundo semestre. A CNN Brasil informou que na mesma reunião a farmacêutica se comprometeu a antecipar para setembro a conclusão da entrega de todas as 100 milhões de doses. Essas condições estão presentes no acordo assinado pelo governo federal com a farmacêutica em 18 de março.

Ainda na mesma reunião, o ministro da economia Paulo Guedes disse que a farmacêutica teria anunciado no evento um aumento da produção diária da vacina de 1,5 milhão, para 5 milhões de doses. Em janeiro, a Pfizer já havia ampliado a previsão de fabricação anual de doses de 2021 em 750 milhões, totalizando 2 bilhões de doses do imunizante.

Conforme matéria da revista Veja, a iminente inauguração de uma nova fábrica em Marburgo, na Alemanha, corroborou com o anúncio. Em março, alguns dias depois de ter fechado o contrato de 100 milhões de doses com o Brasil, a empresa ampliou a meta novamente, dessa vez para 2,5 bilhões de vacinas.

A expansão da capacidade produtiva do imunizante também resultou na antecipação do cronograma de entregas de vacinas para outras nações. Em abril, a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, informou que a farmacêutica antecipou para setembro a entrega de 50 milhões de doses à União Europeia anteriormente previstas para o último trimestre de 2020.

O presidente da Pfizer também anunciou adiantamentos no cronograma de entregas do imunizante aos Estados Unidos.

Vacinação antecipada faria diferença

A publicação analisada pelo Comprova também não menciona que a Pfizer, em agosto do ano passado, ofereceu ao menos três propostas de 70 milhões de doses com entregas previstas para 2020.

Uma oferta efetuada em 26 de agosto estipulava remessas de 1,5 milhão de doses ainda no ano passado, 17 milhões até o segundo trimestre de 2021, e outras 51,5 milhões até dezembro. Em vias de comparação, o acordo assinado em março pelo Governo Federal define a entrega de 4,5 milhões de doses a menos até junho na comparação com a proposta anterior da Pfizer, embora estabeleça um volume maior a longo prazo.

Para o professor de epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Pedro Hallal, a narrativa da publicação é “absolutamente ridícula” e ignora os benefícios da vacinação precoce. Segundo o cientista, quanto mais rápido fosse o início da imunização, melhor seria o impacto no combate à pandemia no país.

De acordo com Hallal, o início precoce da vacinação poderia, por exemplo, diminuir a intensidade da curva epidemiológica observada entre a metade de fevereiro e a metade de abril. Somente neste período, foram confirmadas mais de 130 mil mortes por covid-19 no Brasil, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde.

Ele ressalta que “nada impediria que assinado o [contrato] de 70 milhões lá atrás, a Pfizer tivesse ampliado a produção e ofertasse um novo, de 100 milhões esse ano”. Uma situação semelhante, inclusive, ocorreu na semana passada.

O Ministério da Saúde anunciou um segundo acordo com a Pfizer para aquisição de mais 100 milhões de vacinas. A nova reserva vai somar com a mesma quantidade de doses já contratadas em março pelo Governo Federal, totalizando 200 milhões de unidades, sem prejudicar o acordo anterior.

Também ouvido pelo Comprova, o epidemiologista e professor emérito da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais José Geraldo Leite Ribeiro ressaltou que seria preferível iniciar a imunização o mais cedo possível. “Quanto mais rápido aplicarmos a segunda dose nas pessoas, mais rapidamente nós vamos diminuir pelo menos a hospitalização [de pacientes infectados]”, disse.

Impacto

Uma matéria da Folha, publicada em 13 de maio, cita uma estimativa feita por Pedro Hallal, a pedido do veículo, sobre o impacto das 4,5 milhões de doses que seriam entregues pela Pfizer ao Brasil entre dezembro e março, caso o País tivesse aceito as primeiras propostas da farmacêutica.

O cálculo indica que até 14 mil mortes poderiam ter sido evitadas, dentro de uma margem de erro de 5 mil a 25 mil óbitos. A vacinação precoce também poderia ter impedido 30 mil internações em unidades de terapia intensiva (UTI). Neste caso, a margem de erro varia entre 23 mil e 37 mil ocorrências.

Para chegar às estimativas, Hallal considerou uma taxa de letalidade do coronavírus em 1% e a taxa de eficácia da vacina de 94%, além da hipótese de que até um terço da população já apresentaria anticorpos contra o vírus.

uma estimativa feita pela Universidade de São Paulo (USP), em parceria com o UOL, aponta que se o acordo de compra de doses tivesse sido fechado no ano passado, o país teria quase 22% da população vacinada pelo menos uma vez contra a covid-19 – um aumento de mais de 8 milhões de pessoas em relação ao número atual de vacinados — 37.729.214, até 20 de maio, segundo dados do Ministério da Saúde.

Considerando dados do consórcio de veículos de imprensa, o número é menor, mas ainda corresponde a 18,84% da população.

Por que investigamos?

O Comprova verifica conteúdos suspeitos que viralizaram nas redes sociais e que tratam da pandemia da covid-19 e de políticas públicas do governo federal.

Tuítes enganosos como o do usuário @lorenzonitalo, que teve mais de 13 mil interações na plataforma, são perigosos por distorcerem a real política de imunização e os esforços que foram ou não adotados pelo governo federal para garantir a compra de vacinas contra o novo coronavírus.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor, bem como aquele que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Saúde

Investigado por: 2021-05-20

Pesquisa na Cidade do México não é capaz de provar redução de internações por covid-19 com ivermectina

  • Enganoso
Enganoso
Material preliminar divulgado pelo governo local é uma análise de dados que não foi revisada por pares, nem publicada em revistas científicas. Especialistas apontam que a metodologia apresenta risco de viés e não permite concluir se vermífugo evitou hospitalizações de fato. Os responsáveis pelo estudo sabem apenas que algumas pessoas receberam kits com esse e outros remédios, mas não têm como afirmar que esses indivíduos de fato ingeriram a substância.
  • Conteúdo verificado: Postagens nas redes sociais em defesa do chamado “tratamento precoce” alegam que a Cidade do México reduziu em até 76% o número de internações por covid-19 com a ivermectina.

Circula nas redes sociais que um estudo na Cidade do México teria mostrado que a ivermectina reduziu em até 76% o número de hospitalizações entre casos de covid-19. A pesquisa existe e foi divulgada pelo governo em 15 de maio, mas não é capaz de comprovar segurança e eficácia do tratamento com o vermífugo contra o novo coronavírus.

Os dados são preliminares e não foram publicados em nenhuma revista científica. Isso quer dizer que esses números não foram revisados e validados por outros cientistas e, portanto, devem ser vistos com cautela. Além disso, o estudo foi feito por meio de consulta a bancos de dados, em nível populacional, e tentou medir os resultados da entrega de um kit composto por três medicamentos, e não somente pela ivermectina, entre outros materiais de apoio. Não se trata de um ensaio clínico.

Especialistas consultados pelo Comprova apontaram limitações no artigo. Um pesquisador mexicano também alertou para o risco de viés na análise estatística e considerou o período de análise inadequado. A ivermectina não é recomendada pelos principais órgãos mundiais de saúde a pacientes de covid-19 fora de ensaios clínicos e pode apresentar riscos à saúde, principalmente quando tomada sem acompanhamento médico.

Como verificamos?

Por meio de uma busca simples no Google, o Comprova encontrou notícias publicadas pela imprensa a respeito do estudo mexicano.

A reportagem então procurou pelo conteúdo original e chegou a uma nota divulgada pelo governo local em 15 de maio. Esse mesmo texto contém um link que leva para a pesquisa não revisada, disponibilizada em uma plataforma de acesso aberto na internet.

O Comprova fez a leitura do estudo e consultou três especialistas para entender os resultados e limitações do artigo, além do atual cenário de evidências sobre o uso de ivermectina contra a covid-19.

A verificação também analisou uma publicação de um pesquisador mexicano sobre o assunto e procurou informações sobre os autores da pesquisa.

Por fim, houve consulta a dados públicos sobre casos e mortes por covid-19, número de vacinados e políticas implementadas no México durante a pandemia. Essas informações foram contextualizadas com notícias e outras fontes confiáveis.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 20 de maio de 2021.

Verificação

O preprint do governo

Em 14 de maio, o governo da Cidade do México convocou uma coletiva de imprensa para apresentar os resultados de uma pesquisa sobre o uso da ivermectina contra a covid-19. Essas informações foram divulgadas, no dia seguinte, em um texto no site oficial do governo com o título “Ivermectina y la probabilidad de hospitalización por COVID-19(Ivermectina e a probabilidade de hospitalização por covid-19).

De acordo com o documento, pesquisadores ligados ao governo teriam encontrado uma “redução significativa” na chance de hospitalização entre pacientes que receberam um kit médico baseado em ivermectina. Esse efeito variou entre 52% e 76% dependendo do modelo de análise, diz a publicação — que defende a continuidade da distribuição da droga no sistema de saúde contra a covid-19, mesmo sem eficácia e segurança comprovadas cientificamente.

A pesquisa está disponível em formato de preprint — uma espécie de pré-publicação, quando os pesquisadores divulgam os artigos mesmo sem terem sido avaliados por outros especialistas ou publicados em revistas científicas — em uma plataforma chamada SocArXiv Papers. Essa ação permite que os resultados sejam difundidos mais rapidamente na área, mas também exigem cautela na leitura e não devem ser tomados como resultados definitivos.

A pesquisa é assinada pelo chefe da Agência Digital de Inovação Pública do México, José Merino; por um diretor do Instituto Mexicano de Seguridade Social, Victor Hugo Borja; pela titular da Secretaria de Saúde da Cidade do México, Oliva López Arellano, e pelo diretor da pasta José Alfredo Ochoa; e por outros três funcionários da agência de inovação.

Nesse mesmo dia, a agência de notícias internacional EFE publicou o artigo “Ciudad de México dice que ivermectina redujo hospitalizados entre 52 % y 76%(Cidade do México diz que ivermectina reduziu hospitalizados entre 52% e 76%). A publicação repercutiu no Brasil a partir de uma publicação da rádio Jovem Pan. Depois, a informação foi replicada por políticos e páginas alinhadas com o governo federal nas redes sociais, em defesa do chamado “tratamento precoce”.

O que diz o estudo

A pesquisa divulgada pelo governo da Cidade do México é uma análise retrospectiva de dados sobre uma política pública controversa no país. Segundo o artigo, a cidade conta com cerca de 230 unidades móveis conhecidas como “quiosques”, responsáveis por prestar atendimento para casos suspeitos de covid-19 fora do ambiente hospitalar, incluindo testes de antígenos, entrega de kits médicos e monitoramento posterior através de contato telefônico, em um call center conhecido como Locatel, a cada 48h, para verificar o andamento dos sintomas.

A partir de 28 de dezembro de 2020, começaram a ser fornecidos kits médicos na cidade a casos leves e moderados da doença. Segundo o artigo, essas caixas continham ivermectina (quatro comprimidos para dois dias), ácido acetilsalicílico (conhecido popularmente como aspirina, para 14 dias) e paracetamol (10 comprimidos para o caso de sintomas). Teriam sido entregues 83 mil kits em um mês.

Outras fontes de notícias locais apontam ainda a entrega do antibiótico azitromicina no conjunto de remédios e de equipamentos de apoio, como máscaras para os pacientes e seus familiares, álcool em gel e oxímetro, aparelho que mede o nível de oxigênio no sangue e é indicado para acompanhamento de doentes em cuidados domiciliares. Essa informação não é mencionada no artigo do governo da Cidade do México. O jornal El Heraldo de México também aponta a existência de acompanhamento de profissionais de medicina familiar com uma frequência de até três vezes por dia para o caso de pacientes com sintomas, e não apenas a cada 48h.

O que os autores da pesquisa fizeram foi uma análise estatística a partir de três fontes diferentes. Eles pegaram o total de casos reportados entre 23 de novembro de 2020 a 28 de janeiro de 2021, os registros de internados em hospitais públicos até 8 de fevereiro de 2021 e as entradas no sistema de acompanhamento do Locatel. Esses dados foram cruzados por meio do código de identidade das pessoas atendidas.

Para avaliar o impacto do kit médico, eles presumiram primeiro que todas as pessoas que testaram positivo e tiveram sintomas nos 30 dias depois da data de implementação do programa, em 28 de dezembro, receberam e usaram os remédios (77.381 casos). Eles compararam então com o resultado das pessoas testadas entre 23 de novembro e o início do programa, que não receberam as drogas nos postos de saúde (156.468 pessoas).

Os dados então foram equiparados por um modelo estatístico. A pesquisa separou os casos pelo desfecho da hospitalização, a disponibilidade do tratamento e por algumas características, como sexo, idade e comorbidades. Segundo o levantamento final, foram identificadas 311 hospitalizações no grupo ativo (0,4%), que teriam recebido e usado os remédios, contra 1.884 (1,21%) no grupo controle, que não teriam passado pela intervenção.

Os registros do Locatel serviram para construir uma segunda planilha, em que foram contabilizadas as pessoas que informaram ao serviço de acompanhamento telefônico terem recebido o kit de remédios (18.074 pessoas) e aquelas que declararam não ter recebido (57.598 pessoas). O objetivo era verificar se a relação entre os dados se mantinha dessa maneira, o que os autores afirmaram positivamente.

“Em todas as especificações, encontramos um efeito negativo significativo do kit médico baseado em ivermectina na probabilidade de hospitalização entre os pacientes que o receberam versus aqueles que não receberam”, afirma o artigo. “Dependendo da sub-amostra, o efeito varia entre 50% e 76% de diferença de chance de hospitalização entre pacientes tratados e não tratados, estatisticamente significante em todos os casos.”

Críticas ao artigo

O estudo, divulgado ainda em relatório preliminar pelo governo da Cidade do México, recebeu críticas quanto ao método de avaliação e à conclusão apresentada. Um dos principais questionamentos é sobre a atribuição do resultado ao remédio ivermectina, quando na realidade os kits continham três medicamentos pelas informações do próprio artigo, além de equipamentos de apoio e outras orientações básicas de saúde.

Além disso, a pesquisa não é capaz de determinar se as pessoas efetivamente usaram as medicações, se tomaram no período correto e se receberam drogas adicionais para o tratamento dos sintomas. O mesmo vale para o grupo controle, que os autores do estudo assumem que não usou o trio de remédios apenas porque não recebeu o kit nos postos de atendimento. Em outras palavras, é impossível estabelecer uma relação de causalidade entre o uso de ivermectina isolado e a suposta baixa nas internações.

O pesquisador Omar Yaxmehen Bello-Chavolla, especialista em estatística aplicada do Instituto Nacional de Geriatria da Cidade do México e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), apontou ainda uma série de problemas metodológicos na pesquisa em uma thread no Twitter. Ele sustenta que os dois períodos de coleta de dados não são comparáveis e podem ter influenciado nos resultados, ainda que os autores tenham tentando mitigar esse efeito através de modelagem estatística.

O motivo é que, antes do início do fornecimento do kit, o número de hospitalizações diárias era menor na Cidade do México, relata Bello-Chavolla. Diante da maior ocupação nos hospitais na época da intervenção, os critérios adotados pelos médicos para admitir novos pacientes podem ter sido mais rigorosos. “Saturação hospitalar reduz a probabilidade de hospitalização de casos leves”, pondera.

O pesquisador reproduziu uma das análises estatísticas mencionadas pelo estudo em cima dos dados disponibilizados no GitHub e encontrou outros problemas. Ele identificou, por exemplo, que 56% dos casos foram eliminados da amostra por não conterem dados sobre entrega ou não do kit e, nestes, havia 959 casos com registro de hospitalização. Esse fato demonstra que os autores não definiram previamente como a pesquisa seria feita.

A amostra contabilizada no estudo foi de 57.581 casos sem kit contendo 673 internados, contra 18.074 casos com kit e 56 internados. Nesse ponto, a diferença entre características dos grupos no momento do matching (por sexo, idade e comorbidades) sugere a existência de fatores confundidores prévios, segundo o cientista, o que coloca em dúvida a qualidade da comparação.

O Comprova pediu a opinião de dois especialistas sobre os resultados do artigo da Cidade do México: o médico infectologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Alexandre Zavascki, e o médico infectologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Max Igor Lopes.

Lopes disse que o resultado “chama a atenção”, mas destaca a presença de limitações importantes, como a presença de três remédios no kit médico e a falta de garantias de que os grupos não passaram por outro tipo de intervenção no período analisado. “Você não consegue falar que é a ivermectina, porque a estratégia era ivermectina e AAS (e paracetamol). E eles não avaliaram se quem eventualmente ia para a linha de remédio não fazia uso de outras medicações com mais facilidade. Às vezes, quem está mais propenso a tomar um remédio também toma outros.”

O infectologista esclarece que o estudo não é suficiente para comprovar eficácia do vermífugo contra a covid-19. “Você não consegue ter, em um estudo populacional, o controle das variáveis. Toda vez que analisar a população, você vai ter esse tipo de viés”, aponta. Ele também ressalta que os dados ainda não foram endossados por outros cientistas. “Para ter validade, precisa ser mais bem discutido, publicado de verdade em uma revista científica. É um sinal positivo, mas ainda precisamos entender qual o real benefício de cada droga que foi utilizada.”

Zavascki, por sua vez, encara os resultados com “ceticismo total”. O especialista da UFRGS contesta o fato de os autores apresentarem a pesquisa como um quase-experimento. “O quase experimento é um ensaio clínico em que se apresenta uma intervenção ao paciente, só que o seu controle (grupo para fins de comparação que não recebe a intervenção) normalmente é histórico. Esse é o desenho clássico. Eles teriam que ter convocado pacientes e dito que eles entrariam em um estudo, que iriam aplicar a ivermectina para ver o desfecho”.

Mas não é o caso desse estudo, argumenta Zavascki. “Não tem nenhum critério para avaliar se os pacientes realmente tomaram aquilo, em que momento eles tomaram, não tem avaliação de efeito adverso. Não é uma pesquisa de excelência, um estudo sério, pelo menos da forma como está apresentado. E colocam ainda no início do segundo parágrafo da discussão que seria um ‘grande ensaio de intervenção não randomizado’. Não é um ensaio, eles pegaram uma base de dados.”

O professor da UFRGS entende ainda que faltou transparência na apresentação dos métodos e dos resultados no artigo, como quando os autores dizem ter pareado os casos por meio de um método computacional e balanceado variáveis para checar a existência de fatores de confusão na amostra. “Em pesquisa científica, não basta citar o método, precisa mostrar como fez aquela seleção, aquele controle das variáveis”. Outro aspecto apontado é que os pesquisadores não mencionam a aprovação por um comitê de ética, necessária para o teste de qualquer terapia médica em humanos.

Ivermectina

A ivermectina é um medicamento recomendado para o tratamento de doenças causadas por parasitas, como sarna e piolho, segundo registros do bulário eletrônico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O fármaco entrou no panorama da covid-19 depois que uma pesquisa na Austrália identificou que a droga era capaz de eliminar o novo coronavírus in vitro, ou seja, em uma cultura de células em laboratório.

A professora do Departamento de Farmácia da Universidade de Brasília (UnB) Djane Braz lembra que esse tipo de resultado in vitro não garante que o remédio funcione nos seres humanos. “Existe um princípio básico da ação de qualquer fármaco no nosso organismo, chamado de farmacocinética”, explica. “É estudar o que o nosso corpo faz com um fármaco, como ele é absorvido e chega até o local onde ele deve fazer o efeito esperado. Para que qualquer fármaco tenha efeito é preciso que ele chegue no local de ação e na dose certa.”

No caso da ivermectina, a questão é saber se a dose que as pessoas ingerem é suficiente para que chegue ao pulmão e demonstre efeito antiviral sobre o SARS-CoV-2. “Respondendo a essa questão, já foram publicados dois artigos mostrando que a dose máxima já testada nos seres humanos não atinge a dose necessária para ter efeito antiviral”, relata. “Mesmo usando uma dose 10 vezes maior do que a aprovada hoje para tratar verminoses, não conseguimos chegar na dose necessária para ter efeito antiviral nos pulmões.”

Ainda assim, existem diversos estudos clínicos em pacientes com covid-19 avaliando a eficácia e a segurança do tratamento com ivermectina atualmente. Os principais órgãos mundiais de saúde não recomendam a utilização da droga fora desse tipo de pesquisa. É o caso da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), por exemplo.

A Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) afirma que não autorizou o uso da ivermectina contra a covid-19 e que mais testes são necessários para determinar se a droga é apropriada para prevenir ou tratar o novo coronavírus. A Agência Europeia de Medicamentos (EMA) também contraindica a utilização do remédio para a covid-19 fora de ensaios clínicos randomizados.

No Brasil, o chamado “tratamento precoce”, que inclui a ivermectina, foi repudiado por entidades médicas. Recentemente, um grupo de especialistas coordenado pelo Ministério da Saúde também elaborou um parecer contrário ao uso da medicação em pacientes hospitalizados, apontando que não existem evidências que justifiquem essa decisão. A atualização mais recente da Anvisa, publicada em julho do ano passado, diz que “não existem estudos conclusivos que comprovem o uso desse medicamento para o tratamento da covid-19, bem como não existem estudos que refutem esse uso”.

Segundo o professor da UFRGS Alexandre Zavascki, as melhores evidências de segurança e eficácia partem de testes amplos e bem desenhados para eliminar o risco de viés. “Nas ciências médicas, as relações de causalidade entre medicações e efeitos são definidas a partir de ensaios clínicos”, aponta. O cenário ideal consiste em testes com grupos controle (base de comparação que recebe placebo), randomizados (espécie de sorteio entre os participantes) e duplo-cego (nem médico, nem paciente sabem a qual grupo cada indivíduo pertence), de preferência com uma quantidade expressiva de voluntários.

A professora Djane Braz, da UNB, acredita que a dose utilizada no kit analisado pelo estudo mexicano provavelmente não produziu efeitos adversos significativos, como anunciaram as autoridades. Isso porque a dosagem se assemelha com aquelas recomendadas para tratar verminoses. “O problema é que temos visto um uso indiscriminado deste fármaco, com o objetivo de prevenção da covid-19, com pessoas utilizando ivermectina a cada 15 dias… Este sim pode causar toxicidade. No tratamento antiparasitário, as doses são anuais, e não quinzenais”, alerta.

A pandemia no México

Segundo o Banco Mundial, o México tem cerca de 127 milhões de habitantes e, conforme divulgado pelo governo, até o dia 20 de maio, soma 2.387.512 casos positivos e 220.850 mortes desde o início da pandemia. Os casos ativos oficiais eram 15.688 e havia, na data, 436.982 suspeitas sendo investigadas no país.

Com esses números, o México ocupa o 15º lugar no mundo em número de infecções e o quarto como o país com mais mortes por pandemia, atrás de Estados Unidos, Brasil e Índia, de acordo com dados da Universidade Johns Hopkins.

Em março deste ano, o Ministério da Saúde do México revisou dados divulgados sobre a pandemia, indicando que o número de mortes causadas pelo coronavírus no país era 60% maior do que o relatado anteriormente.

A campanha de vacinação teve início em 24 de dezembro, com a aplicação de vacinas da Pfizer/BioNTech. No dia 19 de maio, o governo do México informou que haviam sido aplicadas 24,2 milhões de doses de vacina e que 16,1 milhões de pessoas estavam imunizadas com ao menos uma aplicação, cerca de 12,7% da população. Além do produto da Pfizer, o País aplica as vacinas de Cansino, Sinovac, Sputnik V e Oxford/Astrazeneca.

O país usa um esquema de semáforo epidemiológico que, atualmente, não registra áreas em vermelho, quando apenas as atividades econômicas essenciais são permitidas. A maior parte do País está sinalizada como verde, quando são permitidas todas as atividades, incluídas as escolares.

A Cidade do México, especificamente, registrou o total de 651.967 casos confirmados, com 42.621 mortes e 4.486 casos ativos. A capital responde pelo maior número de casos e mortes por covid-19 do País, em números absolutos. Está na segunda semana de semáforo amarelo (de 17 a 23 de maio) após observar queda no número de internações hospitalares.

Em maio de 2020, nos primeiros meses da pandemia, a chefe de governo da Cidade do México, Claudia Sheinbaum, anunciou a obrigatoriedade do uso de máscaras em espaços públicos e reforçou publicamente a importância da proteção. No primeiro semestre de 2020 o país restringiu a circulação e abertura de estabelecimentos na cidade, mas depois promoveu a reabertura gradativa.

Em dezembro do ano passado, o país alcançou o pico de infecções e os hospitais da cidade lotaram, o que forçou nova suspensão das atividades não essenciais. Na ocasião, Sheinbaum justificou que o governo vinha evitando o fechamento — realizado apenas após a lotação de leitos — por considerar a época muito importante em termos econômicos para as famílias, referindo-se ao período de Natal.

A microbióloga mexicana Laurie Ann Ximénez-Fyvie, doutora em Ciências Médicas pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e chefe do laboratório de Genética Molecular da Faculdade de Odontologia da Universidade Nacional Autônoma do México, criticou duramente, em março, a condução do país durante a crise pandêmica.

Conforme ela, o subsecretário de Prevenção e Promoção da Saúde, Hugo López-Gatell, que é médico epidemiologista, se deixou levar por critérios “mais políticos do que científicos”, tendo apostado na chamada “imunidade de rebanho”.

Da mesma forma, ao longo da pandemia, o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, posicionou-se contra medidas recomendadas para conter a disseminação, como a adoção de lockdown, por exemplo, chegando a sugerir que os políticos que impõem bloqueios ou toques de recolher agem como ditadores.

Obrador também incentivou o contato físico e, poucas vezes foi visto utilizando máscara, defendendo que o uso ou não deveria partir do desejo de cada cidadão. Em janeiro de 2021, ele foi infectado pela covid-19 e, após se recuperar, afirmou que não usaria mais a proteção, argumentando ‘não ser mais contagioso’. Incentiva, por outro lado, a vacinação, tendo incluído educadores nos grupos prioritários e prometido concluir a campanha até outubro.

Ao lado de Egito, Brasil e Argentina, o México foi um dos países que mais investiram em pesquisas clínicas com ivermectina logo na esteira do estudo australiano in vitro. Em 29 de janeiro, no entanto, um painel de especialistas coordenado pelo governo mexicano afirmou que não existem evidências científicas suficientes para recomendar o uso do vermífugo no tratamento da covid-19 e contraindicou a droga fora de estudos clínicos em qualquer estágio da doença, assim como o uso preventivo.

Contrariando esse posicionamento, a secretária de Saúde da Cidade do México, Oliva López Arellano, uma das autoras do estudo mencionado, defendeu a continuidade da distribuição do medicamento para a população, iniciada no final de dezembro, em coletiva de imprensa, por considerar que a política era “muito pertinente na ausência de antivirais específicos”, segundo a revista Expansión.

Poucos dias antes, ao site Animal Político e ao jornal El Heraldo de México, a pasta justificou a entrega de ivermectina nos quiosques com base em uma manifestação da Aliança para Cuidados Intensivos na Linha de Frente da Covid-19 (FLCCC), um grupo de médicos norte-americanos favorável ao uso. Nos Estados Unidos, o FDA não concorda com esse posicionamento, como citado anteriormente.

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Projeto Comprova investiga conteúdos duvidosos com grande circulação nas redes sobre a pandemia de covid-19 e políticas públicas. As postagens em questão tiveram mais de 55 mil interações no Facebook, no Instagram e no Twitter.

As peças foram difundidas por políticos que defendem o chamado “tratamento precoce” — um kit de remédios sem eficácia comprovada, propagandeado pelo presidente Jair Bolsonaro — como os deputados federais Bibo Nunes (PSL-RS) e Bia Kicis (PSL-DF), além de blogs e páginas de apoiadores do governo federal.

Boatos sobre o uso da ivermectina e de outros remédios sem eficácia comprovada contra a covid-19 já foram alvo de várias checagens do Comprova. O projeto mostrou que é falso que 52 municípios tenham zerado o número de mortes ao supostamente adotarem o “tratamento precoce” e que um protocolo italiano de atendimento domiciliar não tem relação com o conjunto de remédios sem eficácia comprovada, por exemplo.

Enganoso, para o Comprova, é qualquer conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; e o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Saúde

Investigado por: 2021-05-19

Ao contrário do que afirma deputado, estudo de vencedor do Nobel não prova eficácia da ivermectina contra a covid

  • Enganoso
Enganoso
São enganosas as afirmações do deputado federal Bibo Nunes em live no Facebook em que ele defende o uso da ivermectina contra o coronavírus. O político se baseia em um estudo de Satoshi Omura, vencedor do Nobel de medicina, que não comprova a eficácia do medicamento.
  • Conteúdo verificado: Em live no Facebook, o deputado bolsonarista Bibo Nunes destaca texto do japonês Satoshi Omura, Nobel de medicina, e afirma que a ivermectina é eficaz contra a covid-19.

São enganosas as afirmações feitas pelo deputado federal Bibo Nunes (PSL) em defesa do uso da ivermectina contra a covid-19 em uma live realizada no seu perfil no Facebook em 26 de abril. Ele apresenta o estudo “Global trends in clinical studies of ivermectin in Covid-19” (Tendências globais em estudos clínicos de ivermectina para Covid-19, em tradução livre), que tem entre os autores Satoshi Omura, vencedor do Prêmio Nobel de medicina em 2015 pela pesquisa que levou ao descobrimento do remédio.

O estudo tem falhas, como usar dados postados na plataforma ivmmeta.com, um site informal sem nenhum valor de publicação científica, como mostra essa checagem feita pelo Estadão Verifica. Além disso, os próprios autores afirmam que, embora os ensaios clínicos venham mostrando dados positivos, ainda não há estudos que expliquem esses resultados. Por isso mesmo, pedem uma cooperação internacional para acelerar as pesquisas sobre o uso da ivermectina em pacientes com covid-19.

Ao contrário do que afirma o deputado, não é verdade que “a ivermectina não tem efeito colateral; só faz bem”. Segundo a bula do medicamento produzido pela Vitamedic, sua ingestão pode causar “reações adversas leve e transitória”, que são “diarreia, náusea, falta de disposição, dor abdominal, falta de apetite, constipação e vômitos”. Ainda de acordo com a bula, “também podem ocorrer: tontura, sonolência, vertigem, tremor, coceira, lesão de pele até urticária, inchaço na face e periférico, diminuição da pressão arterial ao levantar-se e aumento da frequência cárdica”. Ainda há registros de hepatite medicamentosa por uso do chamado “kit Covid”, que inclui a ivermectina.

A própria Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) anunciou em comunicado que as “indicações aprovadas para a ivermectina são aquelas constantes da bula” – ou seja, não incluem o combate ao coronavírus. E, em 16 de maio de 2021, a Folha divulgou informações sobre o documento “Diretrizes Brasileiras para Tratamento Hospitalar do Paciente com Covid-19”, que foi elaborado pelo Ministério da Saúde após revisão de estudos com especialistas e que não recomenda o uso de ivermectina, cloroquina e azitromicina, entre outros medicamentos para tratamento de pacientes hospitalizados com covid-19.

O Comprova tentou contatar Bibo Nunes, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.

Como verificamos?

Após assistir ao vídeo, o Comprova buscou o estudo citado pelo deputado e analisou o conteúdo do material. Também encontrou a checagem feita pelo Estadão Verifica, que serviu de apoio ao trabalho.

Por telefone, a equipe entrevistou Vinícius Medina Kern, professor de Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Além disso, o Comprova pesquisou comunicados de entidades de saúde em relação ao uso da ivermectina no combate à covid.

A equipe ainda tentou contatar a empresa Vitamedic. Por telefone, um funcionário disse que havia recebido o e-mail da reportagem, mas, mesmo após pedidos de retornos, não houve resposta. A equipe também enviou e-mail e mensagens via Facebook para Bibo Nunes e ligou no escritório do deputado. Uma funcionária passou o número do “responsável pelo escritório”. Por WhatsApp, ele respondeu: “Assim que possível repasso ao deputado para ver se ele tem interesse em responder! Vou tentar te dar um retorno o mais breve possível!”. Às 10h30 do dia 19 de maio, o Comprova perguntou se ele iria responder e não recebeu resposta até a publicação desta checagem.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 19 de maio de 2021.

Verificação

O que diz o artigo

O artigo usado pelo deputado Bibo Nunes em sua live no Facebook tem 52 páginas, foi revisado e aceito para publicação no dia 10 de março de 2021 pelo The Japanese Journal of Antibiotics e é assinado por Satoshi Omura, vencedor do Prêmio Nobel de medicina de 2015, e também por Morimasa Yagisawa, Hideaki Hanaki e Patrick J. Foster. Yagisawa é, junto com Foster e Omura, membro do Instituto Memorial Satoshi Omura, da Universidade Kitasato, no Japão. Yagisawa e Foster são professores da Faculdade de Farmácia da Universidade Keio, no mesmo país.

Diferente do que diz o deputado, o artigo não prova que a ivermectina é eficaz contra a covid-19, nem que previne a doença. Na publicação, os autores fazem um apanhado geral da situação do uso de drogas para tratamento da covid-19 e afirmam que medicamentos como hidroxicloroquina, cloroquina, a combinação de lopinavir e ritonavir e o interferon tiveram eficácia limitada ou nula no tratamento da covid-19.

Sobre outras drogas, como o Remdesivir, falam de limitações, como a melhoria de 30% na recuperação de pacientes críticos, mas o fato de não ser indicado para casos leves e moderados. O argumento utilizado pelos pesquisadores, antes de falarem sobre a ivermectina, é de que não há remédios para pacientes em casos leves e que, por isso, um método de tratamento eficaz ainda está sendo procurado.

A ivermectina surge no artigo no momento em que os pesquisadores citam um grupo australiano, que teria registrado que o medicamento suprimiu a replicação do SARS-CoV-2 em um experimento in vitro, ou seja, em laboratório. Em seguida, eles falam sobre o histórico do uso de ivermectina desde 1987 para tratamento de oncocercose e filariose linfática – ambas doenças tropicais –, bem como no tratamento da escabiose em humanos.

A partir daí, eles fazem uma ampla defesa da ivermectina para pacientes com covid-19, mas utilizam relatos de ensaios clínicos listados na plataforma ivmmeta.com, um site informal sem valor de publicação científica, com análises enviesadas sobre o medicamento, como mostrado nesta verificação, feita em março, pelo Estadão Verifica. Eles argumentam que os ensaios clínicos começaram a ser publicados por pesquisadores de diversos países no site Clinical Trials.gov (dos Estados Unidos) e na OMS, na área dedicada aos ensaios.

O discurso dos pesquisadores é de que esses ensaios clínicos, com cerca de 15 mil pacientes, têm apresentado resultados positivos para a ivermectina tanto no tratamento quanto na prevenção de casos de covid-19 e que a probabilidade de que os resultados desses ensaios sejam um erro é “tão baixa quanto 1 em 4 trilhões”.

Eles não deixam de apontar que os resultados encontrados levam em conta altas doses do medicamento, mas mencionam que há relatos de que, na prática médica real, existem respostas eficazes com o uso de doses consideradas normais. Por isso, seria necessário definir qual a sensibilidade do SARS-CoV-2 às doses de ivermectina.

Nas considerações finais, os autores afirmam que, embora os ensaios clínicos venham mostrando eficácia da ivermectina, ainda não há achados que expliquem razoavelmente esses resultados. Por isso, eles dizem que vêm buscando o máximo de apoio possível para acelerar as pesquisas sobre o uso da ivermectina em pacientes com covid-19.

Qual a validade científica do artigo?

Professor de Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Vinícius Medina Kern observa que o fato de um dos autores ter sido laureado com um Nobel não significa que o estudo não possa ser contestado, particularmente se considerar que Satoshi Omura recebeu o prêmio justamente pelas pesquisas que o levaram à descoberta da ivermectina. Nesse contexto, inclusive, estaria numa condição de conflito de interesses. Artigos científicos costumam mencionar os possíveis conflitos de interesse. O artigo em questão, no entanto, diz que não há conflitos de interesse a declarar.

Vinícius Kern, cuja atuação tem foco em avaliação da ciência, ressalta que apenas a publicação do estudo não sustenta uma licença para o uso da ivermectina contra a covid-19.

Para validar as informações deste ou qualquer outro estudo, explica Vinicius Kern, é preciso haver consenso científico a partir, por exemplo, de revisões sistemáticas na literatura sobre o tema que, neste caso, é a indicação de ivermectina para prevenir a infecção pelo coronavírus ou tratar pacientes já contaminados. Outra metodologia é a meta-análise, que faz uma avaliação estatística de resultados de vários estudos individuais para se obter uma conclusão geral.

O professor buscou referências na PubMed, uma base de dados com resultados de pesquisas médicas, mas encontrou apenas cinco estudos que citam a ivermectina e nenhum, até o momento, tem evidência forte de que a medicação funcione para a covid-19.

Em artigo publicado no Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a farmacêutica e doutora em Genética e Biologia Molecular Tatyana Tavella também aponta que o rigor científico é indispensável para que um estudo seja legitimado, isto é, há critérios que precisam ser observados durante a análise. No texto, ela cita a ivermectina e frisa que não existe tratamento precoce para a covid-19.

O Estadão fez a checagem de um vídeo com o mesmo teor e, segundo especialistas consultados, o artigo de Satoshi Omura não é relevante cientificamente para atestar a eficácia da ivermectina.

O que dizem as fabricantes

Em 4 de fevereiro deste ano, a norte-americana Merck, que fabrica a ivermectina (mas não vende no Brasil), anunciou em um comunicado que não “há base científica para potencial efeito terapêutico do medicamento contra a covid-19 a partir de estudos pré-clínicos”. O texto afirma ainda que não existe “evidência significativa para atividade clínica ou eficácia clínica em pacientes com covid-19” e conclui que a empresa não acredita que haja dados que sustentem a segurança e eficácia da ivermectina além das doses e populações indicadas na bula.

Um dia depois, a Vitamedic, que fabrica ivermectina em Anápolis, em Goiás, divulgou que está com a produção em ritmo acelerado porque “é um medicamento que está sendo testado em várias partes do mundo com uma grande expectativa que ela reduza a carga viral do coronavírus impedindo que a infecção causada por ele se desenvolva para quadros graves”.

Segundo a bula do medicamento da Vitamedic, a ivermectina é indicada para “o tratamento de várias condições causadas por vermes ou parasitas” e funciona no tratamento de infecções como “estrongiloidíase intestinal, oncocercose, filariose (elefantíase), ascaridíase (lombriga), escabiose (sarna) e pediculose (piolho)”. Ou seja, não há nenhuma referência ao coronavírus.

Ainda segundo a bula, no campo “interações medicamentosas” é explicado que “não há relatos sobre interações medicamentosas com a ivermectina; no entanto, deve ser administrada com cautela a pacientes em uso de medicamentos que deprimem o Sistema Nervoso Central, como medicamentos para o tratamento de insônia, ansiedade, alguns analgésicos ou mesmo bebidas alcoólicas. Informe ao seu médico ou cirurgião-dentista se você está fazendo uso de algum outro medicamento. Não use medicamento sem o conhecimento do seu médico. Pode ser perigoso para a sua saúde”.

O penúltimo item da bula é a pergunta “Quais os males que este medicamento pode me causar?”. A resposta, diferentemente do que afirma Bibo Nunes no vídeo quando diz que a ivermectina “só faz bem”, é: “as reações adversas são leves e transitórias: diarreia, náusea, falta de disposição, dor abdominal, falta de apetite, constipação e vômitos. Também podem ocorrer: tontura, sonolência, vertigem, tremor, coceira, lesão de pele até urticária. Inchaço na face e periférico, diminuição da pressão arterial ao levantar-se e aumento da frequência cárdica”.

O que dizem as entidades de saúde

A posição mais recente da Organização Mundial de Saúde (OMS) é de 31 de março de 2021, portanto 21 dias após a revisão e publicação do artigo de Satoshi Omura sobre o assunto. Segundo o órgão, a recomendação ainda é de que a ivermectina seja usada para tratar a covid-19 apenas em ensaios clínicos.

“Até que mais dados estejam disponíveis, a OMS recomenda que o medicamento seja usado apenas em ensaios clínicos”, diz a organização, em nota. A recomendação, agora, faz parte das diretrizes para tratamentos de pacientes com covid-19, atualizadas periodicamente, e se aplica àqueles em qualquer gravidade e com qualquer duração de sintomas.

Posicionamento semelhante teve a Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês), que, em 22 de março, divulgou um comunicado em que conclui que os dados disponíveis não apoiam o uso do medicamento para covid “fora de ensaios clínicos bem planejados”. O documento afirma ainda que “os medicamentos com ivermectina não estão autorizados para uso na Covid-19 na União Europeia, e a EMA não recebeu nenhum pedido para tal uso”.

Ainda antes disso, em 5 de março, a FDA, órgão de saúde dos Estados Unidos, publicou em seu site o texto “Por que você não deve usar a ivermectina para tratar ou prevenir a Covid-19”. No documento, a entidade afirma que o medicamento é usado nos Estados Unidos para tratar ou prevenir parasitas em animais e que “tem recebido inúmeros relatos de pacientes que solicitaram ajuda médica e foram hospitalizadas após se auto medicarem com ivermectina destinada a cavalos”.

No Brasil, a ivermectina foi um dos medicamentos sem eficácia comprovada defendidos pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido), ao lado da cloroquina e da azitromicina, entre outros.

Em julho do ano passado, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) anunciou em comunicado que “é preciso deixar claro que não existem estudos conclusivos que comprovem o uso desse medicamento para o tratamento da Covid-19, bem como não existem estudos que refutem esse uso” e que as “indicações aprovadas para a ivermectina são aquelas constantes da bula do medicamento” – ou seja, não é indicada contra a covid.

Embora tenha sido defendida pelo governo, entidades da área da saúde são contra o uso do remédio para conter a pandemia. A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Associação Médica Brasileira (AMB) afirmaram em 19 de janeiro que “as melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no tratamento precoce para a covid-19 até o presente momento”.

Além disso, em 16 de maio deste ano, um parecer do Ministério da Saúde contraindica a prescrição da ivermectina, entre outras drogas, para pacientes hospitalizados com Covid, como a Folha informou em 16 de maio. Foi a primeira vez que a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) avaliou o uso desses medicamentos contra o coronavírus.

Por que investigamos?

O Comprova verifica conteúdos possivelmente falsos ou enganosos, divulgados em redes sociais, sobre a pandemia e que tenham alcançado alto grau de viralização.

O vídeo investigado teve mais de 364 mil visualizações, 32 mil interações e 7,2 mil comentários até a tarde do dia 19 de maio de 2021. Conteúdos suspeitos sobre medicamentos sem eficácia comprovada colocam a população em risco, pois podem dar a entender que basta tomar o remédio para estar imune ao coronavírus, o que é mentira. É importante que todos saibam que é preciso seguir as medidas realmente eficazes na redução dos casos de covid-19, como a vacinação, o uso de máscaras e álcool em gel, a lavagem das mãos e o distanciamento social.

Nesta fase, o Comprova já investigou outros conteúdos suspeitos relacionados à ivermectina e ao chamado “tratamento precoce”, com uso de substâncias que não têm eficácia comprovada contra a covid-19. No mês passado, matéria destacava que a OMS não indica o uso de ivermectina, após uma publicação no Facebook sugerir que a organização recomendava o remédio. Outra reportagem indicava ser falsa a alegação de que 52 municípios zeraram as mortes provocadas pelo coronavírus devido ao uso de remédios do “tratamento precoce.”

Em 7 de maio, o Estadão Verifica também analisou um conteúdo semelhante, que usava o mesmo estudo de pesquisadores japoneses para defender a ivermectina.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações.