O Projeto Comprova é uma iniciativa colaborativa e sem fins lucrativos liderada pela Abraji e que reúne jornalistas de 41 veículos de comunicação brasileiros para descobrir, investigar e desmascarar conteúdos suspeitos sobre políticas públicas, eleições, saúde e mudanças climáticas que foram compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.
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Saúde

Investigado por: 2020-10-07

Post distorce informações para insinuar que China não usará a própria vacina

  • Enganoso
Enganoso
Ao contrário do que afirma uma publicação no Facebook, os chineses têm realizado testes de suas vacinas na população. O post também desconsidera que vários países além da China têm buscado diversificar seus fornecedores de vacinas
  • Conteúdo verificado: Postagem no Facebook afirma que a China comprou vacina da Suécia para aplicar nos chineses, enquanto vendeu para o Brasil os imunizantes desenvolvidos na Ásia

Uma publicação distorce informações sobre as negociações para aquisição de vacinas contra a covid-19 sugerindo que há algo de errado com os imunizantes desenvolvidos por empresas chinesas, já que um laboratório do país fechou acordo com a AstraZeneca, empresa parte britânica e parte sueca, para que a China receba 100 milhões de doses do composto desenvolvido em parceria com a Universidade de Oxford, caso ele se prove eficaz para combater a doença. O post questiona por que os chineses estariam em busca dessas vacinas enquanto vendem os seus produtos para o Brasil.

Apenas uma das 13 vacinas desenvolvidas por chineses tem acordo para distribuição no Brasil: a CoronaVac, da Sinovac Biotech. O acordo com o governo de São Paulo prevê a importação de 60 milhões de doses, mas também que a tecnologia será transferida para o Instituto Butantan, que produzirá a vacina no país. Até dezembro deste ano, o Butantan pode produzir até 40 milhões de ampolas.

O conteúdo verificado desconsidera ainda que a China já concedeu autorização especial para que as vacinas da Sinovac e da Sinopharm – ambas desenvolvidas lá – sejam aplicadas na população do país considerada de alto risco, caso dos médicos e profissionais de saúde. O material não leva em conta, também, que vários países têm buscado diversificar seus fornecedores de vacinas.

A China não é o único país que desenvolve vacinas contra covid-19 a comprar imunizantes produzidos por outras nações. Estados Unidos e Reino Unido, por exemplo, têm, cada um, acordos com seis diferentes fornecedores de vacinas contra o novo coronavírus, segundo levantamento do jornal Financial Times. Como ainda não é possível saber quais das 42 vacinas em fase de testes serão eficazes para imunizar o vírus, o país que conseguir fechar acordos de fornecimento com mais de uma empresa farmacêutica tem mais chances de ter um imunizante eficiente disponível para sua população, mesmo que um deles não seja aprovado.

A publicação também desconsidera que 12 das 13 vacinas desenvolvidas por empresas ou institutos de pesquisa chineses foram aplicadas primeiro em cidadãos da própria China, em suas fases 1 e 2 de testes em humanos. A Coronavac, vacina da Sinovac que está sendo testada no Brasil em conjunto com o Instituto Butantan, veio realizar a fase 3 do ensaio clínico na América do Sul porque, na época, o número de novos casos na China havia caído substancialmente, o que tornaria difícil saber se as pessoas não se infectaram por causa do imunizante ou simplesmente porque não tiveram contato com o vírus.

Como verificamos?

Para essa verificação, primeiramente buscamos por notícias sobre acordos feitos pela China com laboratórios de fora do país para negociar a pré-aquisição de doses de vacina contra a covid-19. Também buscamos matérias detalhando as negociações entre os países e fornecedores de imunizantes. Ao ver que alguns países estavam trabalhando para diversificar os seus fornecedores de vacinas, procuramos a imunologista Viviane Boaventura (Fiocruz) e o epidemiologista Eduardo Martins Netto (UFBA) para entender a estratégia por trás dos acordos prévios para a compra desses produtos com mais de um fornecedor.

Depois, buscamos na lista da Organização Mundial da Saúde (OMS) todas as 42 vacinas contra o novo coronavírus que já estão em estágio de ensaio clínico. Elas foram desenvolvidas por 74 empresas ou institutos de pesquisa. Procuramos os sites de cada uma dessas companhias ou entidades para saber quais delas eram chinesas e se tinham relações conhecidas com o governo chinês. Depois que encontramos 13 vacinas com a participação de instituições chinesas, usamos o banco de dados da OMS para ver em que país foram realizados os testes clínicos de cada um desses imunizantes.

Por fim, procuramos a autora da postagem, que não respondeu até a publicação desta verificação.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 07 de outubro de 2020.

Verificação

Acordo com a AstraZeneca

Em agosto, a AstraZeneca, uma empresa parte sueca, fechou um acordo com o laboratório chinês Shenzhen Kangtai Biological Products para produzir 100 milhões de doses por ano da vacina contra a covid-19, desenvolvida junto com a Universidade de Oxford. A produção ainda depende da comprovação da eficácia da vacina, atualmente em fase 3 de testes – o último estágio dos ensaios clínicos que envolve milhares de voluntários.

Esse, porém, não é o único imunizante no radar do governo chinês. Desde julho, a TV estatal chinesa informou que vacinas experimentais estavam sendo administradas em grupos de risco, como profissionais de saúde. Esses imunizantes foram desenvolvidos por companhias chinesas, de acordo com a CCTV. Os nomes dos laboratórios não foram especificados na época. Mas várias vacinas passaram por fases anteriores de testes na China, incluindo a CoronaVac, que está realizando a sua fase 3 no Brasil em parceria com o Instituto Butantan.

No mês passado, a chefe de biossegurança do Centro de Controle de Doenças e Prevenção chinês, Wu Guizhen, anunciou que o país pode ter uma vacina contra o coronavírus disponível para o público em novembro. Ela não explicou, porém, a qual vacina se referia. Vacinas da Sinovac e da Sinopharm já receberam uma aprovação para uso especial no país por pessoas que são grupos de alto risco, como médicos e profissionais de saúde.

Além disso, as vacinas da AstraZeneca, por si só, não seriam suficientes para imunizar a população chinesa. O acordo prevê a produção de 100 milhões de doses em um ano e a China tem uma população de quase 1,4 bilhão de pessoas.

Diversidade de fornecedores

Países têm apostado em diversificar seus fornecedores de vacina, segundo levantamento do Financial Times. Os Estados Unidos e o Reino Unido pré-encomendaram vacinas de seis fornecedores. O Canadá e o Japão encomendaram imunizantes de quatro laboratórios. A Austrália, a Índia e o Brasil fizeram compra antecipada de doses de dois fornecedores. Além da CoronaVac, o Brasil fechou um acordo com a AstraZeneca para produção dos imunizantes.

No caso da CoronaVac, o governo de São Paulo informa que 60 milhões de doses serão importadas da China e, desde que seja comprovada a eficácia, serão distribuídas gratuitamente à população através do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas não só. O acordo também prevê que a Biovac transfira para o Brasil a tecnologia para que o Instituto Butantan seja capaz de produzir os imunizantes em território nacional. Até dezembro deste ano, o governo paulista espera receber 6 milhões de doses da Sinovac e produzir outras 40 milhões no Butantan, segundo uma matéria da BBC News Brasil. O objetivo é imunizar toda a população do Estado.

O Brasil também aderiu à Covax, uma coalizão global para a compra e distribuição de vacinas contra a covid-19 que está sendo liderada pela Gavi (aliança para a vacinação mundial da Fundação Bill e Melinda Gates) e pela OMS. A meta da Covax é viabilizar a compra de 2 bilhões de doses até o final de 2021.

Para o professor Eduardo Martins Netto, que é médico-epidemiologista do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes) e chefe do Laboratório de Pesquisa em Infectologia na mesma unidade, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), além de coordenador do Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Bahia (Famed), é normal que os países busquem, neste momento, uma diversidade de fornecedores de vacinas.

“Não existe ainda nenhuma vacina licenciada em nível mundial. Só existe investigação, pesquisa para vacina. Os países estão diversificando os possíveis fornecedores. Isso é muito natural, porque se você não tem nada, você pode comprar de uma determinada fábrica ou de outra. Você pode dizer: ‘olha, se essa vacina não deu certo, não protegeu, tem uma perspectiva para outra vacina”, aponta.

Para o epidemiologista, o que os países podem fazer, neste momento, é se comprometer a comprar uma vacina, se ela funcionar. “Já houve investimento em fábricas, como Butantan, Manguinhos, que investiram em aumentar as instalações para produção da vacina”, completa.

Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professora de Imunopatologia da Faculdade de Medicina da Bahia (Famed/UFBA), a imunologista Viviane Boaventura explica que “há normas de ética e boas práticas em pesquisa clínica que tornam necessário que as primeiras etapas de estudos de desenvolvimento de medicamentos e vacinas sejam testadas necessariamente no país que desenvolveu”.

Sobre a diversidade de fornecedores, ela disse acreditar que os países possam, sim, comprar de outros. “Mesmo porque devem ser tecnologias diferentes e podem facilitar a produção e distribuição para um grande número de pessoas. Pode ser o caso”, sugere.

Testes na China

Segundo o levantamento da Organização Mundial da Saúde, atualmente, 42 vacinas candidatas estão em ensaio clínico (isto é, sendo testadas em humanos), enquanto 151 estão em estágio pré-clínico. Entre as vacinas que já estão em teste clínico, 13 foram desenvolvidas por companhias chinesas ou institutos de pesquisa da China (veja detalhes de cada uma delas no próximo tópico).

Cidadãos chineses foram os primeiros a serem inoculados com os imunizantes desenvolvidos por empresas locais. Das 13 vacinas em fase de ensaio clínico desenvolvidas por empresas ou instituições chinesas, 12 tiveram testes realizados na própria China. É o caso das cinco vacinas que chegaram à fase 3: Sinovac, Wuhan Institute of Biological Products, Beijing Institute of Biological Products, CanSino Bio e Fosun Pharma. Todas elas tiveram suas fases 1 e 2 realizadas com voluntários chineses. Só a fase 3 foi sediada em outros países, possivelmente por causa da queda no número de infectados na própria China. Esse foi o caso da Coronavac, que veio para o Brasil quando havia poucos casos ativos entre os chineses. “Não podemos fazer isso (os testes) quando não há casos”, afirmou o presidente da Sinovac, Yin Weidong, em maio.

Os imunizantes da Anhui Zhifei Longcom Biopharmaceutical e da Chinese Academy of Medical Sciences, que ainda não chegaram à fase 3, realizaram os testes das fases 1 e 2 na China.

As vacinas da Beijing Minhai Biotechnology, da Academy of Military Medical Sciences, do West China Hospital, da Beijing Wantai Biological Pharmacy e da Walvax Biotech também recrutaram voluntários chineses para a fase 1 de testes. Elas ainda não avançaram para a segunda etapa do ensaio clínico.

De todos os imunizantes com participação de empresas chinesas, o único que não teve nenhuma fase da testagem realizada na China foi o da Clover Biopharmaceuticals. A vacina, que tem participação da empresa americana Dynavax e da britânica GSK, está realizando a fase 1 do ensaio clínico na Austrália.

Vacinas chinesas

A Sinovac é uma empresa biofarmacêutica criada em 2001 com foco no desenvolvimento de vacinas e com ações negociadas na bolsa de valores americana Nasdaq. Atualmente, a vacina está na fase 3 de testes. Ela usa o vírus desativado e exigiria a aplicação de duas doses com 14 dias de diferença entre cada aplicação.

O Wuhan Institute of Biological Products é um braço da Sinopharm, uma estatal chinesa que atua em toda a cadeia do ramo farmacêutico, incluindo desenvolvimento, produção e distribuição de medicamentos. A vacina, que usa o vírus inativo, está em fase 3 de testes e exigiria duas doses de aplicação, com intervalo de 21 dias entre cada uma delas.

O Beijing Institute of Biological Products também é uma subsidiária da estatal chinesa Sinopharm. Eles tentam desenvolver uma vacina que usa o vírus desativado e que já está na fase 3 de testes. Seria necessário tomar duas doses com 21 dias de distância entre cada aplicação.

A CanSino Bio foi fundada em 2009 e tem suas ações negociadas na bolsa de valores de Hong Kong. A vacina que eles estão desenvolvendo está na fase 3 e usa um adenovírus para estimular a resposta imune no corpo. Seria necessária apenas uma dose.

A Fosun Pharma é uma companhia chinesa fundada em 1994 com ações negociadas nas bolsas de Shanghai e Hong Kong. Ela é uma das fundadoras da Sinopharm, farmacêutica estatal, junto com a China National Pharmaceutical Group Corporation. A Fosun Pharma é uma das parcerias da americana Pfizer e da alemã BioNTech no desenvolvimento de uma vacina à base de RNA que está na fase 3 de testes. Ela exigiria a aplicação de duas doses, tomadas com uma diferença de 28 dias.

Anhui Zhifei Longcom Biopharmaceutical é uma companhia chinesa fundada em 2002 com ações negociadas na bolsa de valores de Shenzhen. A empresa desenvolve uma vacina em conjunto com o Institute of Microbiology da Chinese Academy of Sciences. O instituto surgiu em 1958. A academia data de 1949 e foi berço de parte dos projetos de planejamento de longo prazo do governo chinês. A vacina está na fase 2 e usa uma proteína como estimulante da resposta imune. Ela pode exigir duas ou três doses para ser eficaz, com 28 dias de distância na aplicação de cada uma delas.

O Institute of Medical Biology da Chinese Academy of Medical Science, uma instituição pública, foi fundado em 1958 para produzir e comercializar vacinas contra vírus. A vacina desenvolvida lá usa o vírus inativo e está na fase 2 de testes. Ela exigiria a aplicação de duas doses e 28 de intervalo entre uma aplicação e outra.

A Beijing Minhai Biotechnology é uma subsidiária da Shenzhen Kangtai Biological Products, empresa fundada em 1992 com ações negociadas na bolsa de valores de Shenzhen. A vacina usa vírus inativo e ainda está na fase 1 de testes. A aplicação pode ter 1, 2 ou 3 doses.

O Institute of Biotechnology da Academy of Military Medical Sciences, PLA of China é uma instituição pública ligada às Forças Armadas chinesas. A vacina está na fase 1 de testes e utiliza um vetor viral não-replicante. Ela exigiria duas doses de aplicação, com 28 dias de diferença entre uma e outra.

A Clover Biopharmaceuticals é uma companhia chinesa, que desenvolve uma vacina em parceria com a americana Dynavax e com a britânica GSK. A vacina usa proteína para gerar a resposta imune. Ela está na fase 1 de testes e deve exigir duas doses de vacinação, com 21 dias entre as duas aplicações.

O West China Hospital da Sichuan University é uma instituição de ensino que existe desde 1892. Eles trabalham em uma vacina que está na fase 1 de testes e utiliza uma proteína para ativar a resposta imune. Ela exigiria duas doses com 28 dias de diferença entre uma aplicação e outra.

A Beijing Wantai Biological Pharmacy é uma empresa fundada em 1991 com ações sendo negociadas na bolsa de valores de Shanghai. Ela está trabalhando em uma vacina com a Xiamen University, uma universidade pública chinesa fundada em 1921. A vacina está na fase 1 de testes e usa um vetor viral republicante. Ela exigiria apenas uma dose para ser aplicada.

A Walmax Biotechnology é uma empresa chinesa fundada em 2001 que tem ações sendo vendidas na bolsa de valores de Shenzhen. A vacina está sendo desenvolvida em conjunto com a Academy of Military Sciences, ligada às Forças Armadas. Ela usa RNA e está na fase 1 de testes. A vacina exigiria duas aplicações, com 14 ou 28 dias de intervalo entre ambas.

Por que investigamos?

Em sua terceira fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre a pandemia de covid-19 e sobre políticas públicas do governo federal que tenham ampla repercussão nas redes sociais. Quando a publicação envolve medicamentos ou métodos de imunização contra o novo coronavírus, a checagem é ainda mais importante porque o conteúdo enganoso pode levar as pessoas a deixarem de tomar medidas para se proteger contra a infecção.

Atualmente, as vacinas são um dos meios mais promissores para o controle definitivo da doença, que já causou 147,4 mil óbitos e infectou 4,9 milhões de pessoas apenas no Brasil, de acordo com o painel do Ministério da Saúde.

O mesmo conteúdo foi verificado por Aos Fatos, que classificou de distorcido, pelo Estadão Verifica, que apontou como enganoso, e pelo Boatos.org, que tratou como um boato. A publicação no perfil pessoal do Facebook que foi verificada aqui teve mais de 41 mil compartilhamentos. O texto teve 9,4 mil interações na rede social, após ser compartilhado por páginas de apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), segundo a ferramenta de monitoramento CrowdTangle. O presidente disse, em setembro, que não podia obrigar ninguém a tomar a vacina, embora uma lei assinada por ele em fevereiro preveja a possibilidade de vacinação compulsória contra o novo coronavírus, como mostrou o Comprova.

O Comprova verificou recentemente publicações que tentavam desacreditar a importância da imunização, mostrando que as vacinas não vão ser usadas para monitorar a população, não causarão danos irreversíveis ao DNA, nem poderão rastrear as pessoas. Desde o início da pandemia, o Comprova também verificou peças de desinformação sobre a China, como a de que o país contaminou máscaras, que as principais cidades chinesas não tiveram casos de covid-19 e que o novo coronavírus teria sido criado num laboratório chinês.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos; ou que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Eleições

Investigado por: 2020-10-01

É falso que apenas três países, inclusive o Brasil, utilizem urnas eletrônicas

  • Falso
Falso
Urnas eletrônicas são utilizadas em 15 países além do Brasil. Em Cuba, votações usam cédulas de papel
  • Conteúdo verificado: Postagem no Facebook afirma que, além do Brasil, apenas Cuba e Venezuela usam urnas eletrônicas

É falso o conteúdo de uma publicação que viralizou no Facebook afirmando que, apesar de existirem 193 países no mundo, as urnas eletrônicas só são utilizadas em Cuba e na Venezuela, além do Brasil. Dados do Institute for Democracy and Electoral Assistance (IDEA) mostram que ao menos 46 países utilizam votação eletrônica em algum tipo de eleição (seja nacional, regional ou para escolha de dirigentes sindicais). Desses, ao menos outros 15 países, além do Brasil, utilizam máquinas de votação eletrônica de gravação direta (não usam boletins de papel e registram os votos eletronicamente, sem que o eleitor interaja com qualquer cédula física).

Também é falso que Cuba utilize urnas eletrônicas. A Lei Eleitoral do país prevê a votação por meio de cédulas de papel em eleições ou referendos. Na Venezuela, urnas eletrônicas são utilizadas desde 2004 com equipamentos fornecidos pela empresa Smartmatic.

Em relação à quantidade de países, não há um levantamento único de quantos existem, já que cada governo é livre para reconhecer ou não a existência de outras nações e estabelecer relações diplomáticas com elas. Hoje, a Organização das Nações Unidas (ONU) possui 193 estados-membros. O Brasil reconhece a existência de 196 nações, inclusive algumas que não têm assento na ONU, como o Vaticano e a Palestina.

Como verificamos?

Primeiro, buscamos verificações anteriores sobre temas similares, as quais nos serviram como ponto de partida. Por meio de uma checagem feita pelo Estadão Verifica, chegamos ao Institute for Democracy and Electoral Assistance, que possui um levantamento sobre a digitalização de processos eleitorais. Acionamos o IDEA por e-mail e recebemos um retorno de Peter Wolf, especialista sênior em Eleições, Democracia e Tecnologia, que nos passou os dados mais recentes da entidade e nos ajudou a interpretá-los.

Depois, consultamos os sites do Conselho Eleitoral Nacional de Cuba, onde encontramos a Lei Eleitoral cubana e outras informações sobre a eleição mais recente no país, e do Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela, que lista várias informações sobre o histórico de digitalização local. Também consultamos o site da Smartmatic, empresa que forneceu urnas eletrônicas para a Venezuela, onde encontramos dados sobre o rompimento da companhia com as autoridades venezuelanas e sobre sua atuação no Brasil.

Consultamos o site da ONU para saber quantos são os estados-membros que integram a entidade e consultamos o site do Ministério das Relações Exteriores para saber quantos países têm sua existência reconhecida pelo Brasil. Também pesquisamos quais os sistemas de segurança da urna brasileira no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Por fim, enviamos mensagem para a autora do conteúdo verificado, mas ela não respondeu até a publicação dessa verificação.

Verificação

O uso de urnas eletrônicas não é exclusividade do Brasil. Levantamento do IDEA mostra que ao menos 45 outros países utilizam algum tipo de votação eletrônica. A maioria deles (26), em eleições nacionais. Os dados do instituto também mostram que, além do Brasil, outros 15 países utilizam urnas eletrônicas com gravação direta. Mas existem outros modelos de votação eletrônica, como o voto pela Internet, que é regulamentado em 10 países.

“Veja que máquinas de votação são certamente utilizadas em muito mais do que três países. […] Se você incluir todos os tipos de máquinas de votação, achará inúmeros exemplos: Estados Unidos, Canadá, Venezuela, Bélgica, França, Índia, Filipinas, República Democrática do Congo e Namíbia”, afirma Peter Wolf, especialista sênior da IDEA.

Ele lembra, porém, que há especificidades nas urnas eletrônicas brasileiras. “Notadamente a ausência de comprovante de papel, que é menos comum. É possível que o conteúdo que você está verificando se refira a isso. Em alguns locais nos Estados Unidos, na Namíbia e parte da França são os únicos exemplos de sistemas sem comprovante de papel que me vêm à mente agora. Além, é claro, de sistema de votações on-line que, obviamente, não possuem uma função de registro em papel”, explica Wolf.

Uma lei de 2015 previu a emissão de um comprovante de votação pelas urnas brasileiras, mas o trecho foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por colocar em risco o sigilo do voto, como mostrou o Comprova recentemente.

Eleições em Cuba

Cuba não utiliza urnas eletrônicas em suas votações. A Lei Eleitoral cubana prevê o uso de cédulas de papel (boletas, em espanhol) para eleições e para a realização de plebiscitos ou referendos. As cédulas devem conter os nomes e sobrenomes dos candidatos, além dos cargos aos quais eles estão concorrendo, segundo as regras complementares das eleições de janeiro. Elas devem ser impressas com tinta preta em papel branco.

Os delegados, então, devem marcar um xis do lado direito do candidato em quem desejam votar. A lei determina que a marcação seja feita em um lugar reservado, em que o eleitor possa votar de forma secreta, como explica uma cartilha elaborada pelo Conselho Eleitoral Nacional.

A apuração é feita pelo Conselho Eleitoral Municipal, que verifica quantas cédulas haviam na urna, quantas delas são votos válidos, em brancos ou anulados e, por fim, a quantidade de votos de cada candidato. No caso de referendos e plebiscitos, o eleitor também deve marcar um xis ao lado das palavras SIM ou NÃO.

Eleições na Venezuela

A Venezuela usa urnas eletrônicas em suas eleições desde 2004, com máquinas que imprimiam o comprovante dos votos. A partir de 2012, passou a adotar a identificação biométrica para liberar o funcionamento das máquinas, segundo informa o Conselho Nacional Eleitoral do país. As máquinas foram desenvolvidas pela empresa Smartmatic.

A Smartmatic foi fundada nos Estados Unidos, mas hoje tem sede no Reino Unido. A empresa trabalhou em 15 eleições venezuelanas entre 2004 e 2017. Em agosto de 2017, o CEO da companhia, Antonio Mugica, realizou uma coletiva de imprensa em que informou que a taxa de comparecimento dos eleitores anunciada pela Comissão Eleitoral nas eleições de 30 de julho daquele ano não correspondia aos números que haviam sido registrados pela empresa, com a taxa de participação tendo sido inflacionada em pelo menos um milhão de eleitores. Por isso, a companhia suspendeu suas atividades no país.

A Smartmatic também informa no seu site que nunca forneceu urnas para as eleições brasileiras. A empresa atuou no Brasil nas eleições de 2012, 2014 e 2016 fornecendo comunicação de dados em áreas remotas do país para que os votos pudessem ser transferidos ao TSE. Especificamente em 2012, ela também treinou operadores de campo e prestou serviços de manutenção e testes para urnas. A Smartmatic não forneceu urnas ou prestou outros serviços durante as eleições do Brasil de 2018.

Quantos países existem?

A ONU é composta por 193 estados-membros desde que a República do Sudão do Sul se separou do Sudão em 9 de julho de 2011, como resultado de um referendo realizado em janeiro do mesmo ano que contou com observadores internacionais.

Para que um país possa ser aceito como estado-membro da ONU, suas credenciais precisam ser recomendadas pelo Conselho de Segurança da entidade e, depois, aceitas pela Assembleia Geral, órgão que reúne todos os membros atuais. A própria ONU, porém, explica que reconhecer a existência de um país ou governo é um ato que apenas outro país pode conceder; o que, em geral, implica no estabelecimento de relações diplomáticas entre ambos. Por não ser um estado ou governo, tecnicamente a ONU não tem autoridade para reconhecer se um país existe ou não.

Hoje, o Brasil reconhece e, por sua vez, possui relação diplomática com 196 países, além de um representante junto à União Europeia. A lista inclui autoridades nacionais que não integram a Assembleia Geral da ONU, como a Palestina e o Vaticano. Igualmente, existem 197 embaixadas e consulados estrangeiros no Brasil (incluindo a representação da União Europeia).

Segurança da urna brasileira

A Justiça Eleitoral brasileira utiliza uma série de mecanismos para garantir a segurança e a confiabilidade das urnas e, consequentemente, das eleições no País. O equipamento utiliza criptografia, assinatura digital e resumo digital para garantir que somente o software criado pelo TSE possa ser usado nas urnas. A tentativa de executar qualquer outro programa bloqueia a máquina. O software oficial também não pode ser rodado em outro equipamento.

A assinatura digital também protege contra modificações os dados sobre cada candidato e eleitor, assim como o resultado da votação e os registros das operações. A urna eletrônica também não possui mecanismos que permitam conectá-la a redes de computadores, como a internet, para evitar ataques de hackers. O aparelho também registra qualquer alteração feita em seu código, para evitar tentativas de alterar o software por pessoas que tenham acesso às urnas no dia da votação.

O desenvolvimento do programa utilizado pela Justiça Eleitoral pode ser acompanhado pelos partidos políticos, pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil por meio de inspeções para verificar a sua confiabilidade. O TSE também realizou testes públicos de segurança em 2009 e 2012, nos quais ninguém conseguiu adulterar os sistemas, nem o resultado das votações.

Por que investigamos?

Em sua terceira fase, o Projeto Comprova monitora e verifica conteúdos sobre a pandemia do novo coronavírus, eleições municipais de 2020 e políticas públicas do governo federal que podem causar desinformação nas redes sociais. É o caso do conteúdo objeto desta verificação, que reproduz uma informação falsa sobre as urnas eletrônicas para questionar a confiabilidade dos resultados das votações.

De acordo com os dados da plataforma CrowdTangle, até a data de publicação deste texto, o conteúdo somava mais de 4,4 mil interações no Facebook. O mesmo conteúdo foi verificado pela Agência Lupa, que concluiu que ele é falso.

Conteúdos semelhantes à este também viralizaram nas redes sociais às vésperas da eleição presidencial de 2018. À época, o Tribunal Superior Eleitoral concluiu se tratar de um conteúdo falso e o Estadão Verifica classificou o boato como uma mentira.

O Comprova já mostrou que o STF não decidiu que o voto impresso é inconstitucional; que as Forças Armadas não solicitaram perícia nas urnas eletrônicas; que os códigos usados no aparelho não foram entregues aos venezuelanos; que a Polícia Federal não apreendeu uma van com urnas adulteradas e que a Polícia Militar não apreendeu um carro com votos já preenchidos dentro do equipamento.

Falso para o Comprova é todo conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.

Saúde

Investigado por: 2020-10-01

Estudo distorce dados para dizer que países que usaram a hidroxicloroquina tiveram 75% menos mortes pela covid-19

  • Falso
Falso
A pesquisa, anônima e manipulada, foi divulgada por um site de extrema-direita com histórico de publicação de conteúdos distorcidos
  • Conteúdo verificado: Postagem de Arthur Weintraub no Twitter mostrava o resultado de um estudo que afirmava que países que usaram a hidroxicloroquina tiveram 75% menos mortes.

Um estudo sobre o uso da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 usa dados e informações incorretas para concluir que países que usaram a droga tiveram 75% menos mortes. Tanto a hidroxicloroquina quanto a cloroquina não possuem eficácia comprovada contra o novo coronavírus. Os dados foram compartilhados no Twitter por Arthur Weintraub, antigo assessor especial do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Para atingir os resultados, os responsáveis pelo estudo excluíram países que adotaram as medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como distanciamento social e o uso de máscaras. Os autores, que não se identificaram, também manipularam termos científicos e editaram o texto da pesquisa sem sinalizar aos leitores.

“A quantidade de variáveis confundidoras é tão grande que esse desenho de estudo é inadequado para abordar essa pergunta científica (se a cloroquina é eficaz como tratamento precoce). A forma adequada e com menor risco de ruído de variáveis confundidoras é fazer um estudo clínico randomizado [quando um grupo aleatório toma o remédio e outro grupo, um placebo]”, explica Letícia Kawano-Dourado, pneumologista e pesquisadora da Universidade de Paris, na França.

Como verificamos?

A publicação de Arthur Weintraub levava para um tuíte da médica Simone Gold, que havia colocado o link de uma notícia do site norte-americano de extrema-direita WND, publicação que possui histórico de notícias falsas. Ao acessar a matéria, encontramos o link do estudo que embasou a publicação.

Procuramos pelos autores no site HCQTrial.com, mas, na página de “perguntas frequentes”, eles afirmam que querem seguir anônimos. Ainda assim, enviamos uma mensagem no campo de “feedback” e não tivemos retorno.

Na sequência, procuramos no Google matérias que tivessem relação com o que foi publicado na página do estudo. Encontramos um texto de David H. Gorski, pesquisador e médico oncologista da Universidade Wayne State, nos Estados Unidos, com longas críticas ao artigo. Também encontramos a conta do Twitter do biologista Carl Bergstrom, da Universidade de Washington, nos Estados Unidos. Ele também fez críticas ao estudo.

Depois, entramos em contato com o infectologista Gerson Salvador, da USP. Ele analisou parte do estudo e nos indicou a médica Letícia Kawano-Dourado, pneumologista e pesquisadora da Universidade de Paris. As duas entrevistas foram feitas por WhatsApp.

Tentamos contato com Arthur Weintraub, mas não tivemos resposta.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 30 de setembro de 2020.

Verificação

O estudo e suas limitações

O site HCQtrial apresenta sua análise como um “estudo randomizado de países”. A proposta é comparar a mortalidade (óbitos por milhão) da covid-19 entre diferentes grupos de nações, a depender do uso de hidroxicloroquina no combate à doença. De acordo com os responsáveis, países que adotaram “amplamente” a substância como “tratamento precoce” têm taxa 73,1% menor que as nações onde o uso precoce da medicação foi limitado. Os números foram atualizados pela última vez em 27 de setembro, três dias depois da publicação de Weintraub.

“Eles não randomizaram ninguém. Randomizar é sortear um indivíduo ou um hospital, por exemplo, para receber uma intervenção. O estudo deles não sorteou ninguém, apenas analisou o que aconteceu. É um estudo observacional, com todos os vieses dos estudos observacionais”, explica Letícia Kawano-Dourado.

Os pesquisadores não detalham o que seria o tratamento precoce ou tardio, quais os protocolos utilizados por cada país nem há quanto tempo cada tipo de procedimento foi adotado. Eles excluíram países com menos de 1 milhão de habitantes e em que menos de 0,5% da população tenha mais de 80 anos. De acordo com os pesquisadores, também ficaram de fora países que adotaram rapidamente o uso de máscaras e estratégias de isolamento, afirmando que nesses casos “há baixa dispersão do vírus no momento”.

O Brasil, por exemplo, não foi considerado na análise, apesar de ser o 2º com mais mortes por covid-19 e estar entre os cinco países onde há mais óbitos por milhão de habitantes. O HCQtrial justifica a exclusão pelo “uso muito variado” da hidroxicloroquina durante o surto no país. Desde maio, o governo brasileiro permite a administração de cloroquina para o tratamento de casos leves da doença.

O médico David H. Gorski, que analisa pesquisas “pseudocientíficas” há cerca de 20 anos, e o biologista Carl Bergstrom, da Universidade de Washington (EUA), são alguns dos especialistas que criticam severamente o artigo do HCQtrial.

De acordo com ambos, o problema começa já na caracterização da análise. Gorski explica o funcionamento dos estudos randomizados: “Por exemplo, se você quiser determinar se a droga X pode servir de tratamento para a condição Z, a forma clássica seria aleatoriamente escolher indivíduos com essa condição para receber ou a droga X ou um placebo [grupo de controle]. Idealmente, o estudo seria duplamente cego: nem os voluntários nem os pesquisadores saberiam quem está recebendo o quê”. O médico ressalta ainda que, nesse tipo de teste, os participantes aderem ao estudo antes de o tratamento ser administrado e que existe um esforço para manter o mesmo tamanho e características entre os dois grupos que serão analisados.

“Nenhuma dessas características se aplica ao estudo do HCQTrial”, explica Gorski. “Não há como alguém ‘randomizar’ países para usar ou não determinada substância. Não faz sentido.”

Bergstrom acrescenta que a caracterização de “estudo randomizado de países” parece ter sido inventada para essa pesquisa específica, “feita para confundir”.

Gorski acrescenta: “Se você não sabe nada sobre epidemiologia, essa caracterização pode soar razoável e te levar a concordar com a conclusão”. Ele ressalta ainda que a análise não considera sequer os diferentes usos da substância em um mesmo país.

Gorski e Bergstrom também constataram que o texto do artigo muda com frequência, sem sinalizar as edições aos leitores. Por exemplo, em determinado momento, o HCQTrial afirmou que cerca de 2,7 bilhões de pessoas fazem parte do grupo de tratamento. Até a publicação deste texto, a amostra foi reduzida e está em 1,8 bilhão.

A nomenclatura dá a entender que 1,8 bilhão é a quantidade de pessoas sujeitas ao uso da cloroquina contra a covid-19, quando, na verdade, é a população somada dos países onde a substância é aceita amplamente como tratamento precoce. Não há indicação de quantas pessoas efetivamente usaram o medicamento em nenhum dos dois grupos analisados.

Autores anônimos

Não é possível saber quem está por trás dos sites C19Study.com, C19HCQ.com e HCQTrial.com, que compõem o grupo verificado. Na página “perguntas frequentes”, a explicação seria um possível medo de retaliação.

“Somos pesquisadores PhDs, cientistas e pessoas que esperam dar uma contribuição, mesmo que pequena. (…)Temos pouco interesse em aumentar nossas listas de publicações, estar no noticiário ou na TV (já fizemos todas essas coisas antes, mas sentimos que há coisas mais importantes na vida agora)”, informa a página citando possíveis casos de ameaças a Didier Raoult e Simone Gold, médicos defensores do uso da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19.

Didier Raoult foi responsável por publicar em março um estudo afirmando que o uso da cloroquina teria curado 75% dos pacientes com covid-19 em seis dias. A pesquisa foi alvo de críticas da revista Science, referência em estudos científicos, e seus resultados foram questionados e considerados incompletos.

Simone Gold é uma médica norte-americana. Em suas redes sociais, ela costuma postar diversas matérias em defesa da hidroxicloroquina. Algumas delas possuem alerta de conteúdo falso pelo Instagram.

A postagem de Arthur Weintraub teve como base um tuíte de Simone Gold, que continha um link que levava para uma matéria sobre o site HCQTrial. Tentamos contato com o ex-assessor especial de Jair Bolsonaro (sem partido), mas não obtivemos respostas.

“Alguém trabalhou muito nesse falso relatório, e é alguém que não quer ser identificado. Não apenas não há autores ou entidades listadas, como a informação sobre o registro do site estão protegidos. Isso – junto com a análise terrivelmente enganada – deveria ser uma enorme bandeira vermelha”, criticou o biologista Carl Bergstrom.

O grupo responsável pelo site HCQTrial.com mantém uma conta no Twitter com pouco mais de 3 mil seguidores, também sem identificação alguma sobre seus autores. Na página, costumam publicar textos defendendo a hidroxicloroquina.

O infectologista Gerson Salvador aponta a ausência de informação dos autores como um dos problemas presentes no site. “Salta aos olhos quatro coisas: 1) não haver descrição da metodologia; 2) não haver exposição de quem são os investigadores; 3) não haver menção de submissão a comitê de ética; 4) o produto estar publicado no próprio site do projeto ao invés de uma plataforma científica”, afirma.

Cloroquina e hidroxicloroquina

A ideia de que a cloroquina e a hidroxicloroquina pudessem ser prescritas para pacientes infectados pelo novo coronavírus surgiu por causa de uma pesquisa de 2005, que indicava efeitos positivos contra outros tipos de coronavírus em laboratório. Mas os testes em humanos nunca aconteceram.

Em junho, a Organização Mundial da Saúde suspendeu em definitivo os testes com as duas drogas. Os testes feitos pela entidade mostraram que as substâncias não reduzem a mortalidade em pacientes internados com a doença.

Estudos realizados de acordo com o padrão ouro para pesquisa com medicamentos — que exige testes com grupos de controle e o uso de placebos — publicados no Journal of the American Medical Association (Jama) e no British Medical Journal (BMJ) apontaram que pacientes tratados com cloroquina e hidroxicloroquina não tiveram melhores resultados que aqueles que não receberam os mesmos remédios. Uma pesquisa realizada em 55 hospitais brasileiros e publicada no New England Journal of Medicine (NEJM) chegou às mesmas conclusões.

Cloroquina no Brasil

O uso da cloroquina e da hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19 é amplamente defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. Mesmo as drogas não tendo comprovação científica, em março, ele ordenou que o Laboratório do Exército produzisse os medicamentos.

A pressão para que as substâncias fossem adotadas custou o cargo de dois ministros da Saúde: Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Desde que assumiu a função interinamente, Eduardo Pazuello alterou o protocolo do Ministério da Saúde e ampliou a possibilidade do uso dos medicamentos para pacientes com sintomas leves – até então, eram recomendados apenas em casos graves e com monitoramento em hospitais.

Agora efetivado como novo ministro da Saúde, Pazuello planeja um “Dia D” de enfrentamento da covid-19, em 3 de outubro. De acordo com o Estadão, a pasta planeja uma série de ações, entre elas, turbinar a distribuição de medicamentos do “kit covid-19”, que reúne além da cloroquina e da hidroxicloroquina, a azitromicina e ivermectina. Essas duas também não possuem eficácia comprovada no combate à doença.

Por que investigamos?

A terceira fase do Comprova verifica postagens suspeitas envolvendo a pandemia da covid-19 e políticas públicas do governo federal. A publicação de Arthur Weintraub no Twitter teve, até o fechamento deste texto, 7,5 mil interações, entre curtidas, compartilhamentos e comentários.

Postagens como essa são perigosas porque alimentam a esperança da população em um remédio que não tem eficácia comprovada no tratamento de uma doença que não tem cura e já matou mais de 1 milhão de pessoas no mundo e mais de 143 mil no Brasil. Além disso, a hidroxicloroquina possui efeitos colaterais, que podem ser prejudiciais sem um acompanhamento médico.

O Comprova já verificou outros conteúdos envolvendo estudos sobre a hidroxicloroquina. Mostramos que um artigo belga não comprovava a eficácia da droga no tratamento precoce da covid-19, assim como pesquisadores de um estudo italiano não propunham o uso da hidroxicloroquina no tratamento da doença.

Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.

Política

Investigado por: 2020-10-01

Postagem acusa sem provas MST de ter relação com as queimadas na Amazônia e no Pantanal

  • Falso
Falso
Texto com afirmações sem base tem como origem a página de Facebook de um general da reserva do Exército que afirma desconhecer a fonte do conteúdo
  • Conteúdo verificado: Post com conteúdo atribuído a general e publicado em página de apoio ao vice-presidente Hamilton Mourão afirma que a Polícia Federal investiga MST e João Pedro Stédile por conexão com incêndios no Pantanal.

É falso um texto disseminado via redes sociais segundo o qual João Pedro Stédile, um dos fundadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), teria relação com incêndios no Pantanal. A postagem afirma que a Polícia Federal (PF) investiga, além do MST, ONGs pela autoria de queimadas. A PF não comenta casos em andamento, mas informou que todas suas operações deflagradas envolvendo casos recentes na Amazônia e no Pantanal estão no site oficial da entidade. Em consulta ao site, o Comprova não encontrou menções ao MST ou a Stédile no que diz respeito aos incêndios nesses dois biomas.

O post menciona, ainda, que há detidos na Amazônia, e que ONGs e tribos indígenas teriam envolvimento em possíveis crimes ambientais. Essas informações também não são verdadeiras. A peça também pontua que Stédile vive na Venezuela, o que não é verdade, e classifica o líder do movimento como terrorista – acusação imprópria juridicamente neste caso, conforme especialista.

A autoria do material é atribuída a um general da reserva do Exército. Ao Comprova, ele confirmou que postou o conteúdo no Facebook após receber pelo WhatsApp, mas não sabe sua origem. “Compartilhei como recebi. Não sei qual é a fonte”, disse ele. A página que divulgou o material verificado aqui foi acionada pelo Comprova, mas não retornou o contato.

Como verificamos?

Recorremos ao Google para mapear possíveis acusações ambientais contra o MST ou João Pedro Stédile, bem como encontrar reportagens sobre tais questões para auxiliar na apuração. Serviram de apoio a esta checagem, ainda, verificações prévias das agências Lupa e Boatos.org sobre o assunto — ambas apontando que o conteúdo não é verdadeiro.

Contatamos também a assessoria da Polícia Federal via e-mail questionando sobre investigações de incêndios na Amazônia e no Pantanal, além de possíveis inquéritos envolvendo MST e seu integrante fundador. Para complementar, acionamos um especialista em Direito para compreender se é pertinente considerar Stédile terrorista do ponto de vista legal. Quem nos trouxe esclarecimentos foi o professor de Processo Penal da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Matheus Felipe de Castro.

Durante o processo, localizamos o militar da reserva apontado como autor do texto, general Paulo Chagas, e pedimos esclarecimentos via Facebook à página que divulgou as informações.

Verificação

De onde vem?

Em 28 de setembro, a página “General Mourão – Eu Apoio” fez uma publicação com o título: “Polícia Federal na cola de João Pedro Stédile do MST”. Nela, o texto é acompanhado por uma montagem que traz o rosto do economista à frente do Movimento Sem Terra com aplicações de desenho que aludem a chamas. O conteúdo é atribuído ao general da reserva Paulo Chagas, que realmente divulgou o material no mesmo dia, pela manhã, às 9h02.

Contatado via WhatsApp pelo Comprova para saber a origem do que está escrito, o militar retornou dizendo que apenas compartilhou. “Não sei qual é a fonte. Recebi em um grupo de Zap e compartilhei no FB”, afirmou o general.

A possível origem das acusações contra o integrante da direção do MST é uma peça anterior que o acusava de ter declarado que o movimento estaria disposto a “incendiar o Brasil para derrubar Bolsonaro”. Em 21 de setembro, a Agência Lupa mostrou que a frase não foi encontrada em nenhuma entrevista concedida por Stédile, nas redes sociais do MST ou no site oficial do movimento.

O mesmo tema foi objeto de análise do Boatos.org, que destacou que a mensagem se baseia em uma informação sem comprovação: a de que o MST seria responsável pelos incêndios no Pantanal.

O mesmo texto da publicação analisada, sobre a suposta participação do líder do MST nos incêndios, também apareceu seis dias antes, em 22 de setembro, em um blog e, um dia depois, em 23 de setembro, em uma série de postagens no Twitter, com link para um grupo fechado de Facebook chamado “Grupo Elas e Eles com Bolsonaro”.

Investigações

A postagem verificada aqui destaca que “a Polícia Federal está investigando os incêndios criminosos que estão acontecendo no Pantanal, segundo superintendente da PF, há fortes indícios de que o MST e ONGs ligadas ao terrorista João Pedro Stédile estejam agindo ilegalmente, devemos ressaltar que Stédile já fez graves ameaças no sentido de ‘incendiar o Brasil’ caso Bolsonaro vencesse as eleições.” Porém, não há fontes dessas afirmações.

Questionada pelo Comprova via e-mail, a PF respondeu, por meio de sua assessoria, que tem deflagrado diversas operações para combater crimes ambientais, tanto na Amazônia quanto no Pantanal e que “todas elas foram divulgadas amplamente para toda a imprensa”.

Em busca no site do órgão, responsável por investigações de possíveis crimes ambientais, o Comprova não encontrou citações a Stédile ou ao MST nos links que tratam de operações deflagradas a respeito de incêndios no Pantanal e na Amazônia.

A única menção a investigações sobre incêndios no Pantanal no site da PF é uma nota sobre a Operação Matáá, deflagrada em 14 de setembro nas cidades de Corumbá e Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. O texto aponta que a investigação identificou o início e a evolução diária dos focos de queimada na região por meio de imagens de satélite e sobrevoos. A nota diz que foram cumpridos 10 mandados de busca e apreensão, mas não divulga os nomes dos investigados.

Segundo reportagem do portal G1 de 24 de setembro, os incêndios “começaram em quatro fazendas de grande porte em Corumbá (MS)”, conforme a investigação da PF. Ainda de acordo com a matéria, “a suspeita é que produtores rurais tenham colocado fogo na vegetação para transformação em área de pastagem”.

Sobre investigações de incêndios na Amazônia, a notícia mais recente no site da PF é de outubro de 2019 e versa sobre cumprimento de mandados para “colher novas provas em investigação que apura associação criminosa suspeita de praticar crimes ambientais em reservas e Unidades de Conservação Federais na Amazônia.”

O The Intercept, em reportagem de novembro de 2019, apontou que entre os suspeitos pelo ‘Dia do Fogo’ na Amazônia “não há nenhuma organização não-governamental”. Também não há material que indique culpa de populações indígenas.

Stédile terrorista?

A postagem verificada aqui também classifica João Pedro Stédile como “terrorista” ao culpá-lo por queimadas no Pantanal. O Comprova consultou o professor de Processo Penal no curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Matheus Felipe de Castro para saber se o fundador do MST poderia ser considerado terrorista segundo a lei brasileira.

O professor apontou que a chamada Lei Antiterrorismo (Lei 13.260/2016, artigo 2º) define o que é considerado terrorismo no país, como a prática de atos “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”. Essa mesma lei diz, no entanto, que isso “não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais”, entre outros.

Para o advogado, seria impróprio pela tipificação penal brasileira chamar o líder de um movimento social de terrorista mesmo se houvesse suspeita de um incêndio, por exemplo, já que este crime possui outra legislação específica.

“Não estou dizendo que um movimento social não poderia começar a praticar o terrorismo, mas você precisaria ter totalmente caracterizado o ato de terrorismo, com razões de xenofobia, discriminação, preconceito de raça, cor, etnia e religião. E nenhuma dessas razões é mencionada naquele artigo (objeto desta verificação). Ele simplesmente diz que a Polícia Federal o investiga [a Stédile] por incêndio no Pantanal e já o chama de terrorista. Só como está colocado ali, é uma utilização indevida e sensacionalista, que não está baseada na legislação” afirmou, em entrevista por telefone.

Na Câmara e no Senado existem projetos de lei que tentam incluir movimentos sociais entre os grupos enquadrados na Lei Antiterrorismo, mas nenhum deles já foi, ou está em vias de ser, aprovado. As situações dos projetos foram consultadas no site das duas Casas.

O Comprova ainda enviou e-mail à PF perguntando se havia investigações contra João Pedro Stédile e se alguma poderia ser tipificada como terrorismo. A PF respondeu que “não se manifesta sobre nomes de investigados, tampouco sobre eventuais investigações em andamento”.

Também checamos o Banco Nacional de Mandados de Prisão, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e o banco de procurados da Interpol e não há qualquer menção ao nome do líder do MST.

Stédile mora na Venezuela?

A assessoria de comunicação do MST informou ao Comprova por mensagem no WhatsApp que Stédile não mora na Venezuela, como pontua o material verificado, mas sim no Brasil. Também reafirmou que ele não ameaçou “incendiar o Brasil” em caso de vitória de Bolsonaro.

Stédile também aparece como membro em situação regular de filiação ao Partido dos Trabalhadores (PT) em Cachoeirinha (RS).

Por que investigamos?

Em sua terceira fase, o Comprova verifica postagens suspeitas que tenham viralizado nas redes sociais que tenham ligação com políticas públicas do governo federal ou com a pandemia do novo coronavírus. É o caso do post verificado aqui.

O Brasil padece de uma série de problemas ambientais, principalmente em decorrência das queimadas que consomem a Amazônia e o Pantanal. Segundo matéria da Folha de S.Paulo, os 14 dias de setembro deste ano já registraram mais focos de incêndio na floresta amazônica do que em todo o mesmo mês no ano passado. Já o Pantanal — apontado como maior planície alagada do Planeta e com um bioma que cobre Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bolívia e Paraguai — é vítima de um dos maiores incêndios da história.

O post divulgado pela página “General Mourão – Eu Apoio” teve mais de 2,5 mil interações no Facebook até 30 de setembro.

O Comprova já verificou outros conteúdos relacionados às queimadas na Amazônia e no Pantanal. Entre eles, um vídeo lançado pela Associação de Criadores do Pará afirma que a Amazônia não está queimando, que o Brasil é o país que mais preserva áreas nativas do mundo, outro sobre publicações nas redes sociais dizendo que indígenas prenderam em flagrante membros de ONGs que seriam incendiários e uma filmagem mostra brigadistas usando técnica de fogo controlado sugerindo que seriam os próprios combatentes responsáveis por incêndios.

Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.

Política

Investigado por: 2020-09-30

Vacinas contra a covid-19 não serão capazes de provocar danos genéticos nem vão monitorar a população

  • Falso
Falso
Ao contrário do que afirma vídeo publicado no YouTube, as vacinas mRNA são desenvolvidas para não interferir no DNA humano e não são capazes de provocar danos genéticos. Além disso, essas vacinas nada têm a ver com a instalação de microchips ou com controle social
  • Conteúdo verificado: Vídeo publicado no YouTube alega que vacinas contra o novo coronavírus poderão causar danos genéticos irreversíveis e conterão nanopartículas de controle social, que vão permitir o monitoramento de quem for imunizado.

São falsas as alegações sobre as vacinas contra o novo coronavírus feitas em um vídeo que circula na internet. No material, um homem alega que a imunização que usa a técnica mRNA seria capaz de causar defeitos genéticos irreversíveis – o que não é verdade. As vacinas desse tipo são desenvolvidas para não interferir no DNA humano e não são capazes de provocar danos genéticos, segundo Cristina Bonorino, professora titular da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), ouvida pelo Comprova.

No vídeo, o autor também afirma que nanopartículas serão instaladas nas doses da vacina, com capacidade de monitorar quem for imunizado, sugerindo a participação de Bill Gates. Isso também não é verdade. Uma das vacinas em desenvolvimento contra a covid-19 é a INO-4800, da empresa Inovio, que recebeu uma doação da Fundação Bill & Melinda Gates, e usa uma tecnologia chamada de eletroporação para aumentar a permeabilidade da membrana das células – e nada tem a ver com a instalação de microchips ou com controle social.

Tentamos entrar em contato com o autor do vídeo, mas não recebemos retorno até a publicação deste texto.

Como verificamos?

Primeiramente, para entender melhor as alegações sobre as vacinas, buscamos conteúdos publicados na imprensa sobre os modelos atualmente em desenvolvimento no mundo, e recuperamos uma entrevista que já havia sido feita pelo Comprova sobre o tema, com uma consultora científica da Sociedade Brasileira de Imunologia. Buscamos também informações nos sites oficiais da Fundação Bill & Melinda Gates, do Centers for Disease Control (CDC) e de empresas farmacêuticas envolvidas na produção de vacinas.

Depois, para confirmar quem é o autor do vídeo, Claudio Lessa, acessamos, além de reportagens encontradas por meio do Google, informações sobre ele em suas redes sociais, no Portal da Transparência da Câmara dos Deputados, já que ele afirma ser servidor concursado do Legislativo, e em um processo contra ele por meio do site do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, ao qual fomos direcionados por uma reportagem de junho deste ano. Por Twitter e Facebook, tentamos contato com ele, sem retorno.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 30 de setembro de 2020.

Verificação

Vacinas mRNA

Entre as 40 vacinas contra o novo coronavírus que estão em fase de ensaios clínicos, segundo a Organização Mundial da Saúde, cinco utilizam o mRNA. São elas: Moderna, BionTech (desenvolvida em parceria com a Pfizer), Curevac, Arcturus e People’s Liberation Army (PLA) Academy of Military Sciences/Walvax Biotech. Entre as 151 candidatas em avaliação pré-clínica, 15 se valem dessa técnica.

Normalmente, essas vacinas usam o vírus desativado ou pedaços de proteínas do vírus para provocar uma resposta imune no organismo. As vacinas de mRNA têm pedaços do código genético do vírus, o RNA. Esse material é introduzido nas células do paciente dentro de lipossomos – pequenas bolhas de gordura – e faz com que o próprio corpo humano passe a produzir essas proteínas do vírus.

Ao contrário do que Lessa afirma no vídeo, elas são desenvolvidas para não interferir no DNA humano e são incapazes de causar danos genéticos. Em entrevista ao Comprova, em agosto, Cristina Bonorino, professora titular da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia, explicou que, “biologicamente, não tem evidência nenhuma disso [da possibilidade de que sejam causados danos genéticos]. No caso das vacinas de mRNA, tudo é transparente, tudo é publicado. Os dados estão aí para serem analisados”.

A técnica, moderna, realmente nunca foi utilizada em uma vacina aprovada para uso em humanos, mas o método já é conhecido há décadas e vinha sendo aprimorado mesmo antes dos primeiros casos da covid-19. “Já fazia muito tempo que essa discussão estava em andamento para liberar essas vacinas porque tem evidência robusta de que ela funciona e ela não tem efeitos adversos graves”, afirmou ainda a professora da UFSCPA.

Anthony Fauci

Lessa afirma que a vacina é “desenvolvida e endossada” pelo infectologista Anthony Fauci, considerado o principal especialista em doenças infecciosas dos Estados Unidos. É verdade que Fauci endossa, ou seja, defende, a criação de uma imunização. Porém, Lessa não explica direito o envolvimento de Fauci na produção da vacina. O especialista é diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), órgão norte-americano que tem, entre suas funções, a de garantir a segurança das vacinas no país. Ou seja, ele tem o poder para permitir ou barrar uma vacina, mas não participa de seu desenvolvimento diretamente. Quem as produz são empresas do ramo farmacêutico. Neste momento, há duas em teste no país.

Fauci ficou conhecido mundialmente por ser um dos membros da força-tarefa da pandemia na Casa Branca e se tornou alvo de aliados de Donald Trump por ter contrariado o presidente ao não defender o uso da hidroxicloroquina e ao propor medidas de isolamento mais fortes, afetando a economia.

Bill Gates

Outra figura que Lessa ataca no vídeo é Bill Gates. Na terceira e última vez em que cita o magnata, diz: “Bill Gates deve ter orgasmos múltiplos só de pensar numa possibilidade dessas [controlar os dados dos imunizados], além de promover a drástica redução da população mundial, como é o desejo dele, coisa que ele já declarou publicamente”.

O empresário norte-americano é alvo de apoiadores de Trump há algum tempo, o que se intensificou na pandemia. Lessa engana ao afirmar que o fundador da Microsoft deseja um extermínio. O jornalista distorce afirmações de Gates na Conferência de Segurança, em Munique, em 2017. À época, o empresário disse que o mundo precisava se preparar para uma pandemia: “Os epidemiologistas dizem que uma doença transmitida pelo ar que se propaga rapidamente pode matar 30 milhões de pessoas em menos de um ano”.

Lessa também erra ao afirmar que Bill Gates financia uma vacina que usa o mRNA e que vai controlar os dados de quem a tomar. Em março, a Fundação Bill & Melinda Gates investiu US$ 5 milhões na empresa de biotecnologia norte-americana Inovio Pharmaceuticals, que está testando a INO-4800. Diferentemente das vacinas que usam o mRNA, a da Inovio é “focada na injeção direta de DNA cultivado por cientistas (o coronavírus só tem RNA, então cientistas precisam cultivar o DNA com a ajuda de estruturas bacterianas chamadas plasmídeos) para o interior das nossas células para que elas produzam anticorpos para combater a infecção”, segundo explica reportagem da BBC.

Ela usa uma tecnologia conhecida como eletroporação, que aumenta a permeabilidade da membrana da célula por meio de impulsos elétricos no músculo após a injeção.

A fundação também investiu US$ 150 milhões no Serum Institute of India, maior fabricante mundial de vacinas. Ele trabalha em parceria com a britânica SpyBiotech no desenvolvimento de uma vacina que usa partículas semelhantes ao vírus, as VLPs, na sigla em inglês (Virus Like Particles).

Ou seja, novamente, o que Lessa faz é disseminar desinformação, já que nenhuma das vacinas financiadas por Bill Gates usa partículas que causarão danos ao nosso organismo ou controlarão nossos dados. Em março, questionado em seu blog sobre quais mudanças teremos que fazer para manter a economia com distanciamento social, Gates respondeu que, “eventualmente, nós teremos alguns certificados digitais para mostrar quem se recuperou ou foi recentemente testado ou, quando houver uma vacina, quem a recebeu”. Ou seja, ele não falou sobre usar a vacina como forma de controle social.

O nome do magnata é tão envolvido em teorias da conspiração que o site da Fundação Bill & Melinda Gates até inclui a pergunta “A fundação ou Bill Gates está planejando implantar microchips para rastrear quem se vacinar?” em sua página. Como resposta, informa que isso é falso e encaminha o leitor para uma verificação feita pela agência Reuters.

O autor do vídeo

O homem que aparece no vídeo é Claudio Lessa. Em seu canal no YouTube, que tem mais de 200 mil inscritos, ele afirma que é jornalista, tendo trabalhado para diversos veículos em Brasília até o início dos anos 2000, quando foi aprovado em um concurso para a Câmara dos Deputados. Lessa foi diretor da TV Câmara durante a gestão de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) à frente da Casa, por indicação do político, mas foi demitido do cargo em 2016, pelo presidente interino Waldir Maranhão (PP-MA), após transmitir, na íntegra, uma entrevista dada por Cunha quando ele já havia sido afastado do cargo e estava impedido, por decisão do STF, de exercer o mandato. A assessoria da Câmara e de Maranhão negaram, na época, que o motivo da demissão do cargo tivesse sido a veiculação do conteúdo.

Em uma reclamação datada de 17 de março de 2016, “em razão de graves irregularidades ocorridas no serviço de comunicação social desta Câmara dos Deputados”, a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) escreve que “Lessa tem adotado atitudes infringentes e desconexas com o ordenamento constitucional e legal vigentes, que assegura a liberdade de expressão e de manifestação de todas as pessoas”.

Atualmente, Lessa consta como funcionário do quadro efetivo da Câmara, no cargo de analista legislativo. Ele começou a atuar como servidor em 2004 e tem uma remuneração bruta mensal de mais de R$ 34 mil.

Neste ano, Lessa foi alvo de uma ação civil do governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), para a retirada do ar de conteúdos considerados difamatórios e falsos sobre a família do governador e o uso de hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19. No dia 9 de junho, o juízo da 7ª Vara Cível de Vitória concedeu uma liminar ao governador, exigindo que Lessa, o Facebook e o Instagram removessem os vídeos das redes sociais. O processo (n. 0008977-12.2020.8.08.0024), que também pede indenização de R$ 8 mil por danos morais, ainda está em andamento, mas, até a publicação desta checagem, os vídeos que deveriam ter sido retirados do ar ainda estavam disponíveis.

Além do canal no YouTube, Lessa também publica vídeos diários comentando assuntos do momento, na plataforma Vimeo e, no formato podcast, no site Spreaker.com. Ele também mantém um perfil no Twitter e uma página no Facebook, onde, basicamente, republica os links para acesso aos vídeos.

O Comprova tentou entrar em contato com Lessa, pelo Facebook e Twitter, mas ele não respondeu até o fechamento deste texto.

Por que investigamos?

Em sua terceira fase, o Projeto Comprova investiga conteúdos relacionados às políticas públicas do governo federal e à pandemia. Conteúdos que trazem desinformação relacionada à covid-19, como o verificado aqui, são ainda mais perigosos pois colocam a saúde da população em risco e podem custar vidas.

Uma vacina é a forma mais eficiente de imunizar a população e esforços estão sendo feitos em todo planeta para chegar a essa solução. O vídeo em questão, que teve 180.585 visualizações no YouTube até 30 de setembro, gera medo e desconfiança e pode levar pessoas a decidirem não se vacinar quando a proteção estiver disponível para os brasileiros. O mesmo conteúdo foi publicado pelo site Jornal da Cidade Online, e foi compartilhado no Facebook mais de 56,2 mil vezes. Após ser informado pela Agência Lupa, que também verificou o material, o site fez uma errata – mas manteve o vídeo no ar.

Publicações que tentam desacreditar a importância da vacina já foram verificadas pelo Comprova, como o texto que afirmava que a proteção causa danos irreversíveis ao DNA, o tuíte sobre as vacinas usarem células de fetos abortados e uma teoria conspiratória segundo a qual a proteção teria um microchip para rastrear a população.

Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.

Política

Investigado por: 2020-09-30

Demarcação de terra indígena em Roraima não tem relação com alta do preço do arroz

  • Enganoso
Enganoso
Vídeo atribui inflação do arroz à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, mas desconsidera fatos básicos a respeito da produção de grãos no Brasil
  • Conteúdo verificado: Vídeo que relaciona a alta do preço do arroz verificado ao longo deste ano no Brasil com a demarcação e homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, realizadas na década passada.

É enganoso o conteúdo do vídeo que relaciona a alta no preço do arroz ocorrida neste ano com a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, localizada em Roraima.

A terra indígena foi identificada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1993, demarcada ainda no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e homologada em 2005 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Corroborada por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), a demarcação promoveu a expulsão dos arrozeiros da região e a queda da produção do grão em Roraima, como alegam as imagens. O vídeo, no entanto, não leva em conta que o arroz produzido em Roraima representou apenas 0,79% da safra brasileira, na média dos últimos 20 anos – ou seja, desde antes da homologação; e desconsidera que agricultores têm preferido investir na soja, devido à maior rentabilidade.

A própria Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), fonte dos dados utilizados nos gráficos apresentados, destacou que a alta acumulada de 19,25% no preço do arroz desde o início do ano é resultado de seis fatores, entre eles a alta do dólar, a maior exportação e a pandemia da covid-19.

Diretor de assuntos internacionais da Associação Brasileira da Indústria do Arroz (Abiarroz), Mário Eduardo Figueira Pegorer esclareceu que a produção de Roraima já foi mais expressiva, mas que “ela não tem nada a ver com a alta do preço do arroz neste ano”. “Se tem um culpado, é o novo coronavírus”, diz.

Como verificamos?

O primeiro passo foi verificar as informações divulgadas sobre a produção de arroz em Roraima. Como os dados eram creditados à Conab, entramos no site da companhia. Nele, é possível encontrar a série histórica das safras de arroz, desde 1976, tanto por área plantada quanto por produção.

Depois, fizemos o levantamento de qual o aumento do preço do arroz em 2020 no Brasil e a que essa alta é atribuída. Para isso, usamos os levantamentos mensais do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e reportagens feitas por A Gazeta, pelo Jornal CORREIO, pelo G1 e pelo Fantástico.

Também buscamos informações sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, por meio do portal Terras Indígenas do Brasil, do Instituto Socioambiental (ISA). Nele, há informações sobre a demarcação de terras indígenas e notícias relacionadas. Nessa última página, uma matéria do Conselho Indigenista Missionário traz os números da petição e da portaria relacionadas à Raposa Serra do Sol e uma reportagem especial do Estadão.

Para analisar as informações encontradas e as divulgadas feitas por meio do vídeo investigado, entrevistamos ainda um especialista da Abiarroz. Também questionamos, por e-mail, a própria Conab sobre o cenário nacional; e acionamos o Governo de Roraima, que deu detalhes sobre a produção de arroz e a agricultura no estado.

Verificação

Por que o arroz aumentou?

De acordo com as informações mais recentes do IBGE, divulgadas no dia 9 de setembro e referentes ao mês e agosto, o preço médio do arroz subiu 19,25% desde o início deste ano. Consequentemente, diversos veículos de comunicação, como o G1, A Gazeta, CORREIO e o Fantástico, fizeram matérias repercutindo a alta e explicando os fatores que a motivaram. Entre eles estão:

  • Valorização do dólar frente ao real, que encareceu insumos agrícolas, deixou o arroz brasileiro mais barato para o mercado internacional e tornou mais vantajosa a exportação do grão;
  • Período de entressafra do arroz, que acontece no segundo semestre de cada ano;
  • Aumento da demanda por causa da pandemia do novo coronavírus.

Além desses três motivos, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), procurada pelo Comprova, também citou:

  • Patamares elevados do preço internacional antes da crise da covid-19;
  • Menor disponibilidade de importação de arroz dos parceiros do Mercosul;
  • Redução da área de arroz no Brasil nas últimas duas safras, como consequência do resultado das baixas rentabilidades identificadas nos últimos anos.

Diretor de assuntos internacionais da Associação Brasileira das Indústrias de Arroz (Abiarroz), Mário Eduardo Figueira Pegorer explicou a dinâmica do mercado. “Em termos de preço internacional, o arroz não teve uma variação muito grande. Porém, a tendência é o preço do arroz no Brasil ir para a cotação média internacional. Como houve uma desvalorização muito forte do real bem no início da nossa safra, houve essa alta expressiva aqui”, esclareceu.

A demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol

Diferentemente do que sugere o vídeo, a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol não é resultado de uma “canetada do governo Lula” – mas, sim, de um processo judicial que durou anos no Supremo Tribunal Federal (STF) e que teve como origem a portaria 820 do Ministério da Justiça, em 1998. A judicialização do caso aconteceu no ano seguinte, 1999, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso.

Somente em 2005 o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto que homologava de forma contínua o território da terra indígena, atendendo a uma demanda dos próprios índios da região. A portaria 534/2005 alterava a anterior, de 1998. Dois anos depois, o STF determinou a saída dos outros povos, incluindo os rizicultores – produtores de arroz -, que pediam que fosse esperado o período da colheita.

Após a safra, os produtores de arroz permaneceram no local e o Instituto Nacional de–Colonização e Reforma Agrária (Incra) deu início ao reassentamento. Líder dos arrozeiros e então prefeito do município de Pacaraima (RR), Paulo César Quartiero acabou preso pela Polícia Federal, após um atentado contra indígenas, ocorrido em maio de 2008.

Em março de 2009, o STF encerrou o julgamento da petição 3388, que questionava a demarcação da Raposa Serra do Sol, e a manteve contínua. Relator do caso, o ministro Ayres Britto declarou no voto que “a presença dos arrozeiros subtrai dos índios extensas áreas de solo fértil, imprescindíveis às suas atividades produtivas, impede o acesso das comunidades indígenas aos rios Surumu e Tacutu e degrada os recursos ambientais”.

No mesmo julgamento, o STF também decidiu que os produtores deveriam sair imediatamente da região. O ministro Gilmar Mendes foi um dos que votou a favor desta retirada: “Uma vez reconhecida a ilegalidade da ocupação deles, acho que não se justifica qualquer prazo para que eles continuem produzindo ilegalmente dentro da terra indígena e causando danos às comunidades”.

Atualmente, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol abriga mais de 26 mil índios de cinco povos, conforme levantamento feito neste ano pelo Instituto Socioambiental (ISA). O território tem 1.747.000 hectares e fica dentro da Amazônia Legal. No extremo norte de Roraima, ela faz parte de três municípios: Normandia, Pacaraima e Uiramutã.

O impacto na produção de arroz de Roraima

Por causa da demarcação e homologação da terra indígena, o vídeo afirma que “os arrozeiros viram as áreas plantadas encolherem pela metade” – o que não é verdade. De acordo com dados históricos da Conab, havia 25.500 hectares de plantação em 2005. Essa área só chegou à metade entre 2015 e 2016, mais de cinco anos após a retirada dos produtores da região.

No que diz respeito à produção em si, houve três reduções significativas. A primeira aconteceu entre as safras de 2004/05 e 2006/07; e a segunda na de 2008/09. “Eu me lembro que, na época, havia alguns projetos de expansão e produtores foram afetados. Esses pontos de queda podem ser em virtude da Raposa Serra do Sol”, explicou Mário Pegorer, da Abiarroz.

 

A preferência pela soja

Desde 2001, a menor produção de arroz aconteceu na safra de 2015/16. Nesse período, a produção de soja em Roraima apresentou o quinto crescimento consecutivo, superando a do arroz em 19 mil toneladas. Essa mudança do cenário agrícola no estado é mencionada pelo vídeo, mas também é atribuída – equivocadamente – à demarcação da terra indígena.

“Esse ponto de inflexão e esse preterimento do arroz está acontecendo em várias regiões, porque a soja tem um atrativo muito forte. A remuneração é melhor, os preços são maiores. Então, os produtores optam por ela”, explicou Mário Pegorer, da Abiarroz. Segundo a Conab, a nível de produtor, o preço da saca (60 kg) do arroz era R$ 66 e da soja, R$ 112 no último mês de agosto, em Roraima.

“Em 2020, a soja teve um salto de área de 50 milhões de hectares, mais que dobrou”, afirmou o governo de Roraima, por meio de nota. De acordo com a Secretaria Estadual de Planejamento e Desenvolvimento, esse investimento na soja é um dos principais fatores que contribuíram para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do estado.

Qual a importância diante da produção e do consumo nacionais?

Na média dos últimos 20 anos, a produção de arroz de Roraima representou apenas 0,79% de toda a produção brasileira. Nesse período, a maior representatividade aconteceu na safra de 2007/08 – após a homologação da terra indigena, mas com a questão ainda judicializada -, quando chegou a 1,05% da nacional, com 127 mil toneladas produzidas. Em termos absolutos, a maior safra aconteceu três anos antes, com 135 mil toneladas.

“Se você pensar que o Brasil vai precisar importar cerca de 200 mil toneladas de arroz de países de fora do Mercosul, essa produção (antiga, de 135 mil toneladas) é significativa. Tem a sua importância para o abastecimento interno. Apesar disso, ela não tem nada a ver com a alta do preço do arroz neste ano”, afirmou Mário Pergorer.

Já o governo de Roraima ressaltou que o arroz produzido no estado tem, tradicionalmente, a Venezuela como principal destino. No ano de 2018, as exportações também foram significativas para a Holanda e Guiana. Além disso, o grão serve apenas ao mercado local e do Amazonas.

Por que investigamos?

Na terceira fase, o Comprova verifica postagens suspeitas que tenham viralizado nas redes sociais e que tenham ligação com políticas públicas do governo federal ou com a pandemia da covid-19. É o caso do vídeo que relaciona a alta no preço do arroz brasileiro neste ano com a demarcação e homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2005.

As disputas por terras indígenas têm aparecido com frequência em postagens nas redes sociais que questionam ou criticam o direito das comunidades indígenas de permanecerem nas próprias terras – que, neste caso, faz parte da Amazônia Legal, que tem sofrido com diversas queimadas e informações falsas sobre a respectiva preservação.

Esta também não é a primeira vez que conteúdos tentam atribuir problemas enfrentados na região da Amazônia aos povos indígenas. O Comprova verificou recentemente conteúdos relacionados à questão, como um vídeo que deturpava informações sobre a atuação do governo na preservação da Amazônia e uma fotografia retirada de contexto para afirmar que ONGs provocavam queimadas na Amazônia. Em 2019, o Comprova também mostrou que era falso um texto compartilhado no Facebook afirmando que terras indígenas em Rondônia tinham sido vendidas a uma empresa irlandesa.

Enganoso, para o Comprova, é todo conteúdo que usa dados imprecisos e induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou que confunde, com ou sem a intenção de causar dano.

Comunicados

Projeto Comprova lança curso de verificação para jornalistas com foco na cobertura de eleições

  • Curso Comprova de verificação
Curso Comprova de verificação
Curso Comprova de verificação será gratuito e pretende capacitar jornalistas para investigar conteúdos suspeitos compartilhados em redes sociais sobre as eleições municipais

O Projeto Comprova abre nesta terça-feira, 29 de setembro, as inscrições para o Curso Comprova de verificação, um programa destinado à capacitação de jornalistas para investigar conteúdos suspeitos, compartilhados em redes sociais e aplicativos de mensagens, relacionados às eleições municipais de novembro.

O curso será realizado entre os dias 7 e 17 de outubro, terá uma carga horária de 10 horas e será gratuito. O conteúdo será oferecido pela plataforma de cursos da Abraji.

O programa está baseado na metodologia criada pela First Draft e utilizada desde as eleições de 2018 pelo Projeto Comprova no Brasil. Os instrutores são profissionais experientes no tratamento da desinformação. Eis os temas que serão abordados no curso:

  • Desinformação e eleições
  • Preparo do ambiente de trabalho e caixas de ferramentas
  • Monitoramento de redes sociais
  • Técnicas para verificação de dados
  • Trabalhando com buscadores
  • Verificando fotos
  • Verificando vídeos
  • Verificando mapas (e outros)
  • Narrativas de checagem

As inscrições podem ser feitas por este formulário e estarão abertas até as 20 horas da segunda-feira, 5 de outubro.

O Projeto Comprova é uma iniciativa da First Draft, liderada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
Google News Initiative e Facebook Journalism Project ajudaram a financiar o projeto, e ambas as empresas estão fornecendo suporte técnico e treinamento para as equipes envolvidas.

O Comprova tem como parceiros institucionais a Associação Nacional de Jornais no Brasil (ANJ)o Projor, a Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), a agência Aos Fatos e a RBMDF Advogados.

Os parceiros de tecnologia são CrowdTangle, NewsWhip, Torabit, Twitter e WhatsApp.

MAIS INFORMAÇÕES:
WhatsApp: (11) 97795-0022
Site: projetocomprova.com.br
E-mail: [email protected]
Facebook: facebook.com/ComprovaBR
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Saúde

Investigado por: 2020-09-28

Vídeo de homem implorando por banho de mar foi gravado um dia depois do anúncio de reabertura da orla

  • Enganoso
Enganoso
Fechada para banhos de mar desde março, a orla de Salvador foi reaberta dois dias depois da gravação. Três praias, incluindo o local em que o vídeo foi gravado, permaneceriam fechadas por conta da estreita faixa de areia
  • Conteúdo verificado: Tuíte exibe um vídeo em que um homem de sunga é impedido de entrar no mar para afirmar que suas liberdades individuais estariam sendo sufocadas.

Postagem que afirma que um homem está tendo as liberdades individuais sufocadas ao ser impedido por dois guardas municipais de entrar na praia do Porto da Barra, em Salvador, omite o fato de que as praias da cidade, fechadas desde março por conta da pandemia do novo coronavírus, estavam em processo de reabertura no momento da gravação do vídeo.

No dia anterior à gravação das imagens, a prefeitura havia anunciado que quase todas as praias de Salvador estariam liberadas para banhistas de segunda a sexta-feira. A liberação, seis meses após a interdição, no entanto, não incluiu as praias do Porto da Barra, da Paciência e do Buracão – as duas últimas no bairro do Rio Vermelho – porque elas têm uma faixa de areia pequena. A autorização foi suspensa novamente no dia 28 de setembro, porque o decreto foi desrespeitado e as pessoas frequentaram as praias no final de semana.

O vídeo foi postado originalmente no perfil do Facebook do homem que aparece nas imagens. De sunga e sem máscara, ele alega que quer dar apenas um mergulho e que precisa tomar banho de mar diariamente por recomendação médica. Na postagem original, feita no sábado (19), o vídeo tem 1 minuto e 36 segundos. No dia 22 de setembro, a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) postou o vídeo em sua conta no Twitter, com 36 segundos a menos – foi cortado o início, em que o homem diz o seu nome. Ele é candidato a vereador em Salvador.

Procurado pelo Comprova, o homem que aparece de sunga no vídeo disse que adquiriu um problema de saúde depois de um assalto e que o tratava com banhos de mar. Apesar da interdição ter sido feita em março, o homem declarou que se banha todos os dias na praia do Porto da Barra e que não sabia que o local estava interditado.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Como verificamos?

Primeiro, o Comprova buscou por vídeos e outras publicações na internet que levassem a um homem que protestava contra a proibição do banho de mar em Salvador. Foram localizados outros vídeos de protesto durante a pandemia. Em um deles, o homem usava um megafone para protestar na porta do prédio onde mora o prefeito ACM Neto e se identificava.

A partir do nome dito pelo homem em um dos vídeos, localizamos o perfil dele no Facebook. Lá, encontramos o vídeo original gravado na praia do Porto da Barra e outras postagens feitas no local, ao vivo, no mesmo dia.

Procuramos ainda a Guarda Civil Municipal de Salvador, responsável pela fiscalização do acesso às praias e o homem que aparece nas imagens, além do Ministério Público Estadual (MP-BA) e Federal (MPF), citados por ele no vídeo. Também foi procurada a deputada federal Bia Kicis, que compartilhou o vídeo viralizado.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 28 de setembro de 2020.

Verificação

Porto da Barra, 19 de setembro, praia interditada

O vídeo foi gravado no dia 19 de setembro de 2020, um sábado, na praia do Porto da Barra, uma das mais frequentadas de Salvador (BA), e postado originalmente no perfil de Facebook do homem que aparece de sunga nas imagens. As imagens são feitas por uma outra pessoa, que não aparece nas gravações. Procurado pelo Comprova, o homem disse não saber quem gravou o vídeo, embora ele o tenha postado diretamente em sua conta no Facebook.

No mesmo dia, o usuário fez uma transmissão ao vivo na mesma praia, às 9h52. Um pouco mais tarde, às 11h41, ele também fez uma transmissão ao vivo na entrada do Shopping Barra, que fica no mesmo bairro que a praia em questão.

Em postagens nos dias seguintes, ele afirma que se dirigiu ao Porto da Barra, no sábado (19), e que foi impedido de acessar o local pela Guarda Municipal. No vídeo, é possível perceber que, diante do pedido do homem para entrar na praia, os dois guardas respondem que “infelizmente, não é possível”.

O acesso de banhistas ao local está proibido desde 21 de março. No dia em que as imagens foram feitas, a interdição valia para o Porto da Barra e outras cinco praias da capital baiana: Farol da Barra, Rio Vermelho, Itapuã, Piatã e Ribeira. Nas demais, não havia proibição, mas recomendação para que as pessoas não as frequentassem para evitar aglomerações. As operações de fiscalização feitas pela prefeitura nas praias foram batizadas de ‘Tira o pé da areia’.

No vídeo, o homem cobra providências de deputados, promotores e do Ministério Público Federal. O decreto que interdita as praias de Salvador, no entanto, é municipal e não tem interferência de deputados. Por e-mail, o Ministério Público Federal disse que, “por não envolver autoridades com foro por prerrogativa de função em tribunais superiores, a Procuradoria-Geral da República não atua no caso das praias de Salvador”.

O Ministério Público Estadual informou, por e-mail, que o Grupo de Trabalho de Enfrentamento do Novo Coronavírus (GT Coronavírus) “recebeu reclamações de cidadãos quanto à restrição do acesso às praias” e que “o GT enviou ofício à prefeitura pedindo informações sobre o protocolo de reabertura das praias, dos estudos técnicos que vão baseá-lo”.

A assessoria de comunicação da Prefeitura de Salvador informou que “todas as ações são amplamente divulgadas em todos os canais oficiais da Prefeitura, além da imprensa, e que o MP tem acesso através do Diário Oficial do Município, onde são publicados todos os protocolos”.

Abertura parcial

As imagens foram feitas no Porto da Barra no dia seguinte ao anúncio feito pelo prefeito ACM Neto (DEM) de que o acesso à maioria das praias de Salvador seria liberado, mas somente de segunda a sexta-feira. Ou seja, a determinação passou a valer no dia 21 de setembro, seis meses após as interdições e dois dias após a gravação do vídeo.

Apesar da liberação, três praias seguiram interditadas, mesmo durante a semana: o próprio Porto da Barra, a Praia da Paciência e a praia do Buracão – estas duas últimas no bairro do Rio Vermelho. Apesar do bloqueio para banhistas, as praias estiveram liberadas para pescadores neste período.

Por e-mail, a Guarda Civil Municipal, responsável por fiscalizar o acesso, informou que estas três praias ficaram fora da liberação, neste primeiro momento, porque “possuem uma faixa de areia pequena, logo sendo ambientes com facilidades para gerar aglomerações”. A Guarda acrescentou que “em tempos comuns, sem a atual pandemia, [esses locais] recebem uma grande quantidade de público”.

Outras opções

O mesmo homem que foi barrado no Porto da Barra no dia 19 de setembro voltou ao local na segunda-feira, 21 de setembro. Neste dia, no entanto, ele e outros banhistas tinham uma alternativa: a praia do Farol da Barra, vizinha ao Porto, estava liberada por decreto municipal. O acesso fica a cerca de 800 metros do local onde foi gravado o vídeo.

Incluindo as três ilhas que compõem o território de Salvador – Ilha dos Frades, Ilha de Maré e Ilha de Bom Jesus dos Passos – a capital baiana possui 64 quilômetros de orla marítima. Dentro da cidade, são 50 quilômetros de praias, que lotaram no final de semana em que o vídeo foi gravado.

Por causa do desrespeito ao decreto que permitia a liberação das praias somente durante a semana, a prefeitura decidiu interditá-las novamente. O anúncio foi feito no dia 28 de setembro e, a princípio, a interdição tem o prazo de validade de uma semana.

Que doença ele tem que pede um tratamento com banho de mar?

Procurado pelo Comprova e questionado sobre qual doença ele tinha que necessitava de banhos de mar, o homem informou que foi assaltado, “pegou pânico e se curou tomando banho de mar”. “Todos os dias tenho que toma banho de mar sempre tomei banho de mar no Porto não sabia que estava proibido (sic)”, declarou.

Ele acrescentou que ele e mais pessoas tomam banho de mar no Porto da Barra todos os dias, que 60 idosos se reúnem no lugar para “curar tudo” e que o banho de mar “relaxa, dá saúde em todo o corpo, tira manchas e tira covid-19 (sic)”. O homem não respondeu que médico lhe fez a recomendação, nem explicou como não sabia que a praia estava interditada, mesmo tendo informado que ia lá todos os dias. O homem ainda disse que em outra praia da cidade, no Jardim de Alah, teve o mesmo problema. Questionado se foi em outra praia, disse que não por ser “homem idoso” e alegou que frequenta o Porto da Barra por morar no bairro de Brotas. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), ainda não há cura para a covid-19.

Procurada pelo Comprova, a deputada federal Bia Kicis informou que não sabia detalhes sobre a situação, mas que “é nítido pelo vídeo que essa informação [interdição] não foi passada a esse senhor”, disse a assessoria da parlamentar, em nota.

Apesar disso, no dia 20 de março, o acesso à praia foi fechado por tapumes e uma placa foi instalada no local informando que a praia estava interditada por força do decreto 32.272/2020.

Por que investigamos?

Em sua terceira fase, o Comprova checa conteúdos virais que possam espalhar desinformação nas redes sociais sobre a pandemia de covid-19. O vídeo compartilhado pela deputada teve mais de 31 mil curtidas no Twitter até o dia 28 de setembro, além de ter sido retuitado 3,8 mil vezes até a mesma data.

Embora o vídeo seja verdadeiro, ele omite a informação de que um homem estava tentando acessar uma praia que foi interditada por decreto municipal devido à pandemia do novo coronavírus, para evitar aglomerações que possam disseminar ainda mais a doença. Outras praias da cidade não foram interditadas, mas havia a recomendação de também evitar aglomerações.

Como o homem que aparece nas imagens é candidato a vereador em Salvador, o Comprova omitiu seu nome desta verificação.

Não é a primeira vez que medidas de proteção contra a covid-19 são atacadas nas redes sociais. O Comprova mostrou que eram enganosas as postagens que relacionavam a morte de uma menina na Alemanha ao uso de máscara e que equipamentos de proteção exportados pela China estavam contaminados.

Política

Investigado por: 2020-09-28

Texto usa erroneamente dados preliminares para ligar queda de homicídios a aumento de armas de fogo

  • Enganoso
Enganoso
Texto compara dados preliminares com dados consolidados – um erro metodológico – e não leva em conta diversos aspectos relevantes para correlacionar números de armas vendidas com números de homicídios. O próprio Ministério da Saúde afirmou ao Comprova que “os dados de óbitos levam dois anos para serem consolidados” e que “não é correto comparar dados fechados com preliminares”
  • Conteúdo verificado: Publicação em site que divulga uma análise do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), na qual o autor relaciona a queda de homicídios no Brasil com a alta do registro de armas de fogo durante os últimos anos.

É enganosa uma publicação segundo a qual o Brasil teve, em 2019, o menor índice de homicídios por armas de fogo desde 1999 e que isso ocorreu a despeito do aumento do número de armas de fogo em circulação.

O texto é baseado em um estudo, de responsabilidade do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes, uma organização independente e sem relação com o governo), que compara dados preliminares com dados consolidados – um erro metodológico – e não leva em conta diversos aspectos relevantes para correlacionar números de armas vendidas com números de homicídios.

Os assassinatos com arma de fogo, de acordo com documentos consultados pelo Comprova, ainda são uma parcela significativa do total de homicídios no Brasil, mas seu crescimento vem desacelerando desde que o Estatuto do Desarmamento entrou em vigor, em 2003. Além disso, especialistas afirmam que o efeito do maior número de armas só poderá ser avaliado a médio e longo prazos.

O autor do artigo do Cepedes não considera nenhum dos aspectos listados acima. A análise se apoia em números oficiais, mas preliminares. O próprio Ministério da Saúde, órgão responsável pelas informações, afirmou ao Comprova que “os dados de óbitos levam dois anos para serem consolidados” e que “não é correto comparar dados fechados com preliminares”.

Os dados consolidados mais recentes disponibilizados pelo Datasus são referentes a 2018. Eles são utilizados por pesquisas como o Atlas da Violência, feito por especialistas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), lançado no final do mês de agosto.

Como verificamos?

A verificação começou com a busca das informações que embasam a análise feita pelo Cepedes. O próprio autor do estudo, Fabrício Rebelo, destaca que utiliza “dados preliminares” do ano passado, disponíveis no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.

Por meio do Datasus, foram levantados os números de óbitos nas 12 categorias relacionadas a armas de fogo, chegando ao total preliminar de 2019. Na mesma página é possível levantar as mortes por tais causas ocorridas durante os anos anteriores.

No que diz respeito ao armamento da população, o Projeto Comprova entrou em contato com a Polícia Federal, que disponibilizou o número de registros de armas de fogo feitos no país desde 2009 – com uma categoria específica relacionada a pessoas físicas.

Além de consultas ao Atlas da Violência de 2020 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram ouvidos quatro especialistas: Luiz Cláudio Lourenço, do Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade da Universidade Federal da Bahia; Leonardo Carvalho, do Instituto Sou da Paz; Jose Ignacio Cano Gestoso, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj); e Daniel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Verificação

Os números

Os dados levantados pelo Cepedes existem e estão disponíveis no site do Ministério da Saúde (MS), mas não são dados definitivos. Segundo o próprio ministério, os números de óbitos levam dois anos para serem consolidados e, por isso, não é correto comparar dados fechados com preliminares, como feito pelo artigo em questão.

Rebelo aponta, fazendo essa comparação, que os homicídios registraram a maior queda desde 1999 no Brasil, sobretudo os cometidos com arma de fogo. A queda, comparando os números preliminares de 2019 com os consolidados de 2018, seria de 26,65%, saindo de 41.179 registros de mortes intencionais com emprego de arma de fogo em 2018, para 30.206 em 2019 – ainda maior do que os 13,33% de queda no mesmo item comparando dados, agora consolidados, de 2018 com relação a 2017.

O pesquisador usa esses resultados para falar que dois anos de uma série consolidada mostram recordes inversos: enquanto o número de homicídios com emprego de armas de fogo vem caindo, o número de vendas de armas vem subindo no mesmo período. “A relação entre armas legalmente postas em circulação e quantidade de homicídios se revelou inversamente proporcional”, afirma Rebelo, na conclusão do artigo.

Para especialistas ouvidos pelo Comprova, a conclusão é enviesada e não leva em conta o impacto do Estatuto do Desarmamento, de 2003, na queda do número de homicídios com emprego de arma de fogo.

Estatuto do Desarmamento

Divulgado no mês de agosto deste ano, o Atlas da Violência 2020 tem um trecho dedicado ao número de mortes por armas de fogo. Os pesquisadores apontam dados que mostram como o Estatuto do Desarmamento, de 2003, foi fundamental para frear a escalada de homicídios que ocorria desde 1980 no Brasil.

De acordo com o Atlas da Violência, a taxa de homicídios por arma de fogo a cada 100 mil habitantes teve um crescimento médio de 5,8% entre os anos de 1999 e 2003; de 5,9% entre 1989 e 2003; e de 6% de 1980 a 2003. Nos quinze anos após o Estatuto (entre 2003 e 2018), a velocidade média de crescimento anual dessas mortes diminuiu para 0,9%.

Os pesquisadores concluem que, antes de 2003, quando foi sancionado o Estatuto do Desarmamento, “a velocidade de crescimento das mortes era cerca de 6,5 vezes maior do que a que passou a vigorar no período subsequente”. Apesar disso, não houve tanta alteração na velocidade de crescimento das mortes por outros meios, que não a arma de fogo.

O sociólogo Luiz Cláudio Lourenço, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia (Lassos/Ufba), rejeita a declaração de que a venda de armas não tem efeito sobre as mortes por arma de fogo. “A finalidade da arma de fogo é matar. É como você falar que um explosivo não serve para explodir”, declarou.

Ignacio Cano, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), considera “oportunista” dizer que uma queda de homicídios em 2019 está ligada ao porte de armas.

Segundo Leonardo Carvalho, coordenador de projetos e pesquisador do Instituto Sou da Paz, também não há ainda um estudo que aponte que a política apoiada pelo governo federal, de liberação de mais armas para civis, redunde em mais segurança para a população.

“Não tem ainda nenhum estudo que mostre que esse tipo de iniciativa política redundou em mais segurança para a população. O que a gente teme é justamente o contrário, que mais armas redundem em mais violência. Para você ter causalidade, você tem que ligar uma coisa à outra, usar o dado isolado é uma falácia”, completa.

Na edição de 2020, o Atlas da Violência reafirma uma conclusão já consolidada em edições anteriores e bastante debatida na publicação do ano passado: a de que a flexibilização da política de acesso a armas e munição tem uma forte influência no aumento dos índices de crimes violentos letais intencionais, os chamados CVLIs.

Venda de armas de fogo

O artigo de Rebelo cita números corretos de registros de novas armas de fogo no País. O autor usou como fonte uma reportagem do jornal O Globo, que indicou alta de 24% entre o número de armas novas registradas de janeiro a novembro de 2019 e todo o ano de 2018. No período coberto pela matéria, o presidente Jair Bolsonaro editou oito decretos sobre posse de armas de fogo que facilitaram o acesso da população a revólveres e pistolas.

O Comprova também analisou os dados de registros de armas de fogo fornecidos pela Polícia Federal. No total, o número de armas novas registradas por pessoas físicas em 2019 foi de 61.821, um salto de 67% em relação ao ano anterior. Em nosso levantamento, consideramos armas compradas por cidadãos comuns, servidores públicos e caçadores de subsistência. Todas essas categorias estavam englobadas na nomenclatura “pessoa física” em 2018.

O aumento no número de registros de novas armas de fogo em 2020 deve ser ainda maior. Considerando apenas o período de janeiro a maio — meses dos dados mais recentes disponibilizados pela Polícia Federal — a alta neste ano é de 184%, em comparação com o mesmo período de 2019.

 

Dos civis para o mercado ilegal

Segundo Leonardo Carvalho, do Instituto Sou da Paz, quanto mais armas circulando, mesmo que legalmente, maior a chance de elas irem parar no mercado ilegal. O efeito disso não vai ser visto imediatamente. “Essas armas que estão hoje no mercado legal, de repente são subtraídas e vão parar no mercado ilegal. A vida útil dela vai de 60 a 80 anos”.

“Se você tira a arma de circulação, acabou. Mas enquanto ela está circulando, ela está sendo usada. A gente já viu apreensão de arma da Segunda Guerra Mundial. Com o avanço tecnológico, tem armas com uma vida útil muito grande”, completa Leonardo. Ou seja, o impacto da circulação dessas armas sobre os dados de letalidade ainda vai demorar um pouco a aparecer.

É uma conclusão parecida com a do professor Ignacio Cano, da Uerj. “As armas que estão sendo difundidas vão provocar violência a longo e médio prazo. O impacto dessas armas não se mede a curto prazo. Quanto mais armas circularem no mercado formal, mais armas vão aparecer no mercado ilegal e mais baixo vai ser o preço dessas armas no mercado ilegal”, explica.

Números preliminares

Embora os números apresentados por Fabrício Rebelo existam e estejam disponíveis no site do Ministério da Saúde, eles são ainda preliminares. Pesquisadores ouvidos pelo Comprova não recomendam o uso destes para fazer comparações, uma vez que pode haver variação até a consolidação, em um prazo de dois anos.

O Comprova questionouRebelo quanto ao uso de dados preliminares. Ele afirmou que as informações do Datasus apresentam “variação mínima entre a divulgação preliminar e os definitivos”. Leonardo Carvalho, do Instituto Sou da Paz, considera a posição de Rabelo “bem equivocada”.

Carvalho explica que o Datasus libera dados preliminares “como uma medida de engajar os estados” e afirma que “nenhum estudo sério considera esses dados”. Segundo Ignacio Cano, os números não costumam variar muito nacionalmente, mas podem apresentar discrepâncias regionais. Leonardo Carvalho exemplifica: “Pelos dados preliminares do Datasus, o Rio de Janeiro teria uma redução de 56% de mortes por arma de fogo e 54% no total, comparando 2019 a 2018. Eu queria muito que fosse verdade, mas não vai ser. Historicamente, o RJ e nenhum outro estado teve uma queda tão grande de um ano para outro”.

Daniel Cerqueira, que é técnico de planejamento e pesquisa na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest) do Ipea e coordenador do Atlas da Violência 2020, ressaltou que não existem dados revisados do Ministério da Saúde sobre óbitos de 2019.

“Os dados de óbitos que os estados começam a enviar preliminarmente referentes a 2019 estão muito longe de serem adequados para análise, porque existem muitas informações que precisam ser checadas pelo MS, principalmente a causa básica da morte (se foi agressão, violência auto infligida ou acidente). É um trabalho difícil e cuidadoso que o MS faz, motivo pelo qual demora quase dois anos para liberar os dados oficiais revisados”, destacou Cerqueira. Para ele, o pesquisador que faz análise com dado preliminar está cometendo um “erro grosseiro” e, por isso, “qualquer análise dessa natureza não pode ser levada a sério”.

Leonardo Carvalho defende o uso dos números do Datasus, mas diz que é preciso aguardar a publicação dos dados definitivos. “O Datasus é uma referência para a gente falar de homicídio no país, é uma metodologia conhecida e que está rodando desde a década de 1970. Mas você não vai ver nenhum estudo sério usando dados preliminares”, afirma.

Qualidade dos dados

Há duas fontes de dados principais no Brasil usadas para tratar de números da violência: o Datasus, do Ministério da Saúde, e os dados enviados pelas secretarias estaduais de Segurança Pública, com números de crimes. Para pesquisadores, no entanto, os números do Datasus são os mais consistentes e confiáveis, já que têm abrangência nacional e são alimentados seguindo uma mesma metodologia – o que não acontece com a contabilização dos estados.

Apesar disso, segundo texto publicado no Atlas da Violência, até mesmo os números do Datasus têm perdido qualidade por causa do não preenchimento correto das informações sobre vítimas e incidentes e, sobretudo, porque em alguns casos não se consegue estabelecer a causa básica do óbito ou a motivação que gerou o fato. Ou seja, não dá para dizer se a pessoa cometeu suicídio, foi vítima de acidente de trânsito ou de uma agressão por terceiros ou por intervenção legal (homicídios).

“Nesse caso, o óbito fica classificado como uma morte violenta com causa indeterminada (MVCI), e a sociedade e o Estado ficam sem saber por que o cidadão morreu. Com isso, muitos casos de homicídio ficam ocultados, fazendo com que o principal termômetro da violência letal nos estados deixe de funcionar adequadamente. Entre 2017 e 2018, o número de MVCI aumentou 25,6%”, aponta o Atlas da Violência.

O Atlas considera alguns resultados “escandalosos”. Por exemplo, a taxa de MCVI em São Paulo em 2018 foi de 9,4 para cada 100 mil habitantes, enquanto a taxa de homicídios foi menor, de 8,2 para cada 100 mil habitantes. Em publicação de 2013, Daniel Cerqueira, coordenador do estudo, estimou que, no Brasil, “73,9% das MVCI eram, na verdade, homicídios que ficaram ocultos, em face do desconhecimento da informação correta”.

O autor e a página

Coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes) e autor do artigo verificado, Fabricio Rebelo já foi diretor do Movimento Viva Brasil, que se descreve como “associação civil sem fins lucrativos em defesa do direito de possuir e portar armas” e é presidido por Bene Barbosa, um dos principais nomes contra o desarmamento da população no Brasil. Tratando-se como amigos, os dois já realizaram palestras juntos em prol do armamentismo, em um evento realizado em fevereiro deste ano em Mato Grosso do Sul.

Questionado pelo Comprova, Rebelo declarou que não considerou o aumento de mortes por causas violentas indeterminadas ao analisar a evolução de homicídios por arma de fogo. Ele argumentou que “os dados analisados são objetivos, considerando as variações diretas dos indicadores disponibilizados no Datasus”. Rebelo disse ainda que “a pesquisa não busca causas ou determinantes sociais, mas, apenas, evidenciar que a relação ‘armas x homicídios’ é imprópria”. Os demais especialistas consultados nesta verificação criticaram a ausência de contexto dos dados.

Já o site Senso Incomum, que divulgou o artigo, se coloca como publicador de “notícias e opiniões contra a corrente”. No entanto, essa não é a primeira vez que a página publica conteúdos problemáticos. No último dia 15 de setembro, a página compartilhou uma informação enganosa sobre a inconstitucionalidade do voto impresso, que chegou a ser verificada e esclarecida pelo Projeto Comprova.

Por que investigamos?

Na terceira fase, o Projeto Comprova verifica conteúdos relacionados à covid-19 e a políticas públicas do governo federal. Informações falsas ou enganosas como a checada acima são prejudiciais à sociedade e contribuem para uma interpretação distorcida da realidade.

No conteúdo verificado, a relação equivocada entre a queda de homicídios e a alta de registros de armas de fogo pode afetar discussões de temas importantes à sociedade, como segurança pública. Incluindo Facebook e Twitter, as publicações foram curtidas por cerca de 2,5 mil pessoas.

No ano passado, o Projeto Comprova fez duas verificações semelhantes. A primeira de um artigo que enganava os leitores ao vincular o maior número de armas a menores índices de violência, por meio de estatísticas incompletas do Brasil e dos Estados Unidos. Já a segunda, de uma publicação enganosa que atribuía melhorias nos índices de segurança ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos, que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Política

Investigado por: 2020-09-25

Vídeo deturpa informações sobre a atuação do governo na preservação da Amazônia

  • Enganoso
Enganoso
Bolsonaro não foi o responsável por criar Conselho da Amazônia e seu governo não foi o que mais destinou verba aos indígenas
  • Conteúdo verificado: Vídeo que circula nas redes sociais defende a atuação do governo Jair Bolsonaro na preservação da Amazônia usando dados enganosos.

Vídeo que viralizou nas redes sociais traz informações deturpadas sobre a atuação do atual governo no combate às chamas e na preservação da Amazônia brasileira. A produção audiovisual “Preservar a Amazônia” afirma que Jair Bolsonaro (sem partido) criou um conselho para atuar na proteção da floresta e que “é a primeira vez na história que um governo mobiliza todas as suas forças para combater, de verdade, os ilícitos ambientais.” Não é verdade. Bolsonaro reformulou o Conselho Nacional da Amazônia Legal, órgão regulamentado em 1993 por Itamar Franco.

Ao afirmar que a gestão atual prestou mais assistência em saúde aos povos indígenas do que nos últimos cinco anos, a gravação desconsidera os recursos voltados a essa população. Segundo o site Siga Brasil, sistema de informações sobre orçamento público federal, a verba destinada à assistência aos indígenas em 2020 é a menor desde 2015 (R$ 1,4 bilhão).

A peça alega, ainda, que o “país irá prover a segurança alimentar do mundo. Já somos responsáveis por alimentar 1 bilhão de pessoas no planeta”. Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), essa conta teria como base dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Porém, o órgão, braço das questões ligadas à fome na ONU afirma que é difícil estabelecer essa estatística de maneira precisa. A FAO tem dados sobre a quantidade nutricional necessários ao ser humano, mas não estudos que indiquem o potencial de pessoas que cada país consegue alimentar com sua produção.

Além disso, especialistas contestam a metodologia da Embrapa argumentando que não é possível comprovar quantas pessoas são beneficiadas por alimentos oriundos do Brasil, já que muitos produtos exportados – grãos, principalmente – são usados para alimentar animais, não humanos. O papel do Brasil na segurança alimentar do planeta também é posto em cheque pela FAO e por pesquisadores.

O mesmo vídeo, que viralizou nas redes via Twitter, foi publicado anteriormente pelo deputado federal Coronel Armando (PSL-SC). Ele não soube informar a origem da gravação e, questionado sobre as informações distorcidas, negou qualquer desinformação e disse que o material não tem “a distorção produzida por uma parte da grande imprensa”.

Como verificamos?

Por meio de pesquisa de imagem reversa nas ferramentas InViD e Google Imagens, foi possível encontrar a primeira vez em que o vídeo aparece, na página do deputado coronel Armando, com quem conversamos por mensagem no Facebook.

Em sites como Google e Siga Brasil, fizemos buscas sobre o papel do país na segurança alimentar do planeta, a atuação do governo federal da proteção dos índios e na preservação da Amazônia.

Também conversamos com especialistas para abordar esses tópicos e esclarecer dúvidas. Entrevistamos o professor de sociologia de desenvolvimento rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Sergio Schneider, e o professor de Economia Agrícola do Instituto de Economia da Unicamp, Walter Belik. Falamos ainda com o Instituto de Estudos Socioeconômico (Inesc) e Greenpeace — ONGs que trabalham na preservação dos povos indígenas e do meio ambiente —, e com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.

Acionamos, ainda, órgãos do governo para confirmar informações, como Embrapa, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Ministério da Saúde e Fundação Nacional do Índio (Funai).

Verificação

Criação do conselho

O vídeo afirma que “Jair Bolsonaro criou um conselho para atuar na proteção da floresta brasileira” e que “é a primeira vez na história que um governo mobiliza todas as suas forças para combater, de verdade, os ilícitos ambientais”.

O Conselho Nacional da Amazônia Legal foi regulamentado em 1993, pelo então presidente Itamar Franco. Um dos objetivos era coordenar uma “política nacional integrada para a região amazônica” e, para isso, era composto por ministros e representantes dos governos dos estados que compõem a Amazônia.

Em junho de 1995, Fernando Henrique Cardoso publicou um novo texto, com algumas mudanças – como a inclusão do novo nome do ex-Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, que passou a se chamar Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, e da sigla Conamaz para designar o conselho.

No mês seguinte daquele mesmo ano, ao discursar em uma audiência do Conamaz, FHC falou sobre o surgimento do conselho: “Este órgão, em si mesmo, já mostra a importância que o governo da República – não o meu, mas em geral, desde o governo anterior, quando já tínhamos essa organização – atribui à questão da região amazônica. Este tipo de conselho é uma peculiaridade na nova organização política-administrativa brasileira, porque aquela é a única região do Brasil onde há formalmente um mecanismo de entrelaçamento do governo federal com os governos estaduais e com os vários níveis de administração”.

O que Bolsonaro fez foi reinstalar o órgão, apesar de tê-lo anunciado como novidade em resposta às cobranças de entidades ambientais. Em janeiro deste ano, no Fórum Econômico de Davos, ele afirmou que criaria um conselho para a proteção da Amazônia. Segundo ele, o objetivo é “coordenar as diversas ações em cada ministério voltadas para a proteção, defesa e desenvolvimento sustentável da Amazônia”.

Menos de um mês depois, em 11 de fevereiro, Bolsonaro assinou o decreto que dispõe sobre o Conselho Nacional da Amazônia Legal, revogando o decreto de FHC, de 1995 – que, por sua vez, anulou o de Itamar, de dois anos antes. A sigla do órgão passou a ser CNAL.

Se em seu formato anterior, o conselho ficava sob o guarda-chuva do Ministério do Meio Ambiente, agora ele foi transferido para a vice-presidência da República – Hamilton Mourão é o seu presidente. Além disso, os governadores da região amazônica, que faziam parte do conselho, foram excluídos do texto de Bolsonaro. Questionado sobre essa mudança, o presidente afirmou que ter governadores no grupo “não resolveria nada”, mas que não tomaria decisões sem falar com eles.

Povos indígenas

“Hoje, o Brasil é um país que cuida não só do seu território, mas da sua gente. Os índios que vivem na Amazônia e em outras partes do país querem proteção, como todos nós, mas querem, acima de tudo, liberdade.” Assim o vídeo introduz a afirmação de que Bolsonaro prestou mais assistência em saúde aos indígenas do que nos últimos cinco anos e ataca as ONGs.

O Ministério da Saúde, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena, informou que desde 2019 foram realizados 21 milhões de atendimentos, enquanto que, entre 2014 e 2018, foram 19,6 milhões. Mas, ao informar apenas sobre o número de procedimentos, o órgão não leva em conta os recursos voltados às populações indígenas.

Uma consulta simples no site Siga Brasil, que reúne informações sobre orçamento da União, mostra que o orçamento planejado para assistência aos povos indígenas neste ano, de R$ 1,4 bilhão, é o menor desde 2015. Em 2017, na presidência de Michel Temer, os recursos planejados foram de R$ 1,8 bilhão.

Em nota enviada ao Comprova, o Instituto de Estudos Socioeconômicos, afirma que houve uma redução nos valores do programa “Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde Indígena”, do governo federal: “Houve uma queda de 9% no valor autorizado entre 2019 e 2020. Isto, seguido de uma queda de 5% entre 2018 e 2020, totalizando um corte de 14% se comparado ao orçamento autorizado para 2018”.

Sobre assistência durante a pandemia, o Ministério da Saúde afirmou que “foram realizadas 14 missões interministeriais de atendimento em áreas indígenas, garantindo reforço aos atendimentos realizados pelos 14 mil profissionais” e que enviou “mais de 2,5 milhões de equipamentos de proteção individual, medicamentos, insumos e testes rápidos”.

Entretanto, a nota do Inesc ressalta ainda que “apesar da chegada do novo coronavírus, não houve recomposição orçamentária nem mesmo através de créditos extraordinários, o que seria tanto justificado pela vulnerabilidade indígena diante da pandemia, como autorizado pelo regime fiscal especial decorrente da emergência sanitária”. Para Leila Saraiva e Alessandra Cardoso, assessoras políticas do instituto que assinam a nota, “o governo federal tem falhado seriamente no enfrentamento do novo coronavírus entre os povos indígenas”.

Danicley Aguiar, porta-voz da campanha de Amazônia do Greenpeace, fala em incompetência do governo. “A verdade é que o governo se preparou para enfrentar uma gripe e não foi capaz de propor um plano eficiente de combate à covid-19, do contrário, não teria sido instado pelo STF a fazê-lo”, afirmou

O papel do Brasil na segurança alimentar mundial

Em determinado trecho do vídeo verificado, há a afirmação de que o Brasil “é o país que irá prover a segurança alimentar do mundo. Já somos responsáveis por alimentar um bilhão de pessoas no planeta”. Não há menção à fonte desses dados. Questionamos Embrapa e Ministério da Agricultura sobre qual o papel do Brasil nessa questão mundial e se há algum tipo de estudo sobre isso. Também indagamos os dois órgãos sobre quantas pessoas o país é responsável por alimentar no planeta e como é feita essa mensuração.

Somente a Embrapa retornou ao pedido do Comprova por e-mail. A mensagem da empresa explica que “a informação de que a agropecuária brasileira alimenta hoje mais de 1,5 bilhão de pessoas em todo o mundo a partir de um dado da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO-ONU), de que uma pessoa precisa de 250 kg de alimentos por ano para ter segurança alimentar. A partir desse dado, foi feito o seguinte cálculo: só com a produção de grãos (250 milhões de toneladas por ano), o Brasil alimenta 1 bilhão de pessoas. Se for somado a esse total 30 milhões de toneladas de tubérculos (mandioca, batata, batata doce, inhame etc), 35 bilhões de litros de leite, 60 milhões de toneladas de frutas e hortaliças e 31 milhões de toneladas de açúcar, chega-se ao redor de 1,5 bilhão de pessoas. Não está incluída no cálculo a produção brasileira de proteína animal (bovinos, caprinos, ovinos, suínos, aves, ovos, pescado). Para chegar a esta estimativa de 250 kg por habitante: a FAO calcula que uma pessoa precisa, por dia, no mínimo (varia com idade, peso, atividade, por exemplo), de 2,5 mil calorias/dia. Para obter 2,5 mil calorias/dia, uma pessoa precisa, em média, de 0,70 kg de grãos (arroz, feijão, trigo, milho, soja, por exemplo) por dia. Em 365 dias são aproximadamente 250 quilos por habitante.”

De acordo com Carlo Cafiero, gerente do projeto Voices of the Hungry (Vozes da Fome, em tradução livre) e líder da equipe de segurança alimentar e estatísticas nutricionais da FAO, é impreciso dizer quantas pessoas os alimentos produzidos no Brasil são capazes de alimentar. Em resposta ao Comprova, por e-mail, ele explica que é extremamente complexo rastrear dados e fazer essa avaliação: “Existem muitas etapas intermediárias da produção agrícola ao consumo de alimentos, especialmente para commodities comercializadas internacionalmente”.

Para o professor de sociologia de desenvolvimento rural da UFRGS, Sergio Schneider, afirmações assim não são precisas e tendem a ser equivocadas. “’O Brasil produz uma quantidade x de toneladas de grãos, por exemplo. Mas essas toneladas são transformadas em alimentos não para seres humanos, mas para animais. A soja é transformada em farelos para bovinos e suínos. Essa estatística eu temo que ela seja muito difícil de ser estabelecida.”, pondera o docente.

Para Schneider, que também coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento (Gepad), não há clareza em como o cálculo foi feito: “Suponho que, simplesmente, tenha sido tomado a quantidade de toneladas produzidas e dividida por uma quantidade de calorias/dias que uma pessoa deve consumir. Não esqueçamos que, do ponto de vista nutricional, as pessoas não devem comer só um tipo de comida. Por exemplo, derivados de grão ou de proteína animal. É muito complicado pegar essas informações sobre a quantidade produzida de grãos e de carnes que o Brasil exporta e dizer que isso gera um abastecimento para um número x ou y de pessoas. Essa informação não é usada no mundo acadêmico, nem entre pesquisadores e cientistas, porque é de difícil comprovação e não é uma estatística adequada que possa servir para medir a eficiência de um determinado sistema de produção.“

O professor de Economia Agrícola do Instituto de Economia da Unicamp, Walter Belik, reforça a avaliação do colega gaúcho. “Não existe essa estatística de que o Brasil alimenta tantas pessoas no planeta. Os indianos não comem carne, os chineses não tomam café e o mundo está diminuindo o consumo de açúcar. Cada país tem o seu sistema alimentar e suas preferências. Somar todos os produtos, mesmo que seja em termos calóricos, e dividir pelo número de habitantes do planeta não quer dizer nada”, exemplifica Walter Belik.

Ele também rebate a alegação de que o Brasil vai prover segurança alimentar para todo o planeta: “A alimentação do mundo não depende do Brasil. O nível de autossuficiência alimentar é elevado e apenas poucos e pequenos países dependem de importações. Ocorre que, como o comércio internacional derrubou boa parte das barreiras, o que acaba valendo são as vantagens competitivas de cada país, e o Brasil, dada a geografia, mantém vantagens competitivas enormes na área agrícola. […] Hoje o mundo convive com o fantasma da superprodução e do desperdício, não precisamos produzir mais e, sim, produzir com qualidade”.

Schneider tem raciocínio na mesma linha. Ele alega que existem alimentos suficientes no mundo para que todas as pessoas possam se alimentar a uma quantidade de 2,7 mil calorias/dia. “O Brasil certamente tem papel importante na oferta de alimentos, é um dos principais produtores mundiais de alimentos. Isso é reconhecido tanto por organizações internacionais, como a FAO, quanto por organizações do comércio. Mas a discussão sobre segurança alimentar propriamente dita não é exclusivamente sobre quantidade. A segurança alimentar do mundo depende, e está fundamentalmente ligada, a questões de como se distribuem os alimentos. De como as pessoas acessam os alimentos. Então, você pode ter uma superoferta de alimentos, um quantidade enorme de comida disponível, mas as pessoas podem não ter acesso a ela”, analisa o professor da UFRGS.

O chefe da equipe de segurança alimentar e estatísticas nutricionais da FAO referenda a posição dos especialistas afirmando não estar ciente de nenhum estudo específico que discuta a contribuição do Brasil ou qualquer outro país para a segurança alimentar do planeta. “O conceito de segurança alimentar (a definição internacional endossada pela FAO) refere-se à habilidade de as pessoas terem acesso à alimentação de que precisam, e não simplesmente a disponibilidade geral de comidas. Embora se possa presumir que a maior disponibilidade local de alimentos pode contribuir para o combate à insegurança alimentar, a verdade é que a oferta atual de alimentos no mundo, em termos quantitativos, supera em muito as quantidades necessárias para garantir uma vida ativa e saudável a todos. O problema da segurança alimentar hoje tem mais a ver com as desigualdades no acesso aos alimentos disponíveis para as pessoas do que com a falta de suprimentos baratos”, reforça Cafiero.

Postagem

O vídeo viralizou no Twitter a partir do dia 20 de setembro, mas circula na internet pelo menos desde o dia 8, quando foi postado no YouTube do deputado federal Coronel Armando (PSL-SC). Ao Comprova, ele disse que não sabe a origem do material – apenas o compartilhou. Avisado sobre a conteúdo enganoso, ele enviou o link de uma reportagem sobre o anúncio da criação do Conselho da Amazônia feito por Bolsonaro.

Sobre a assistência aos indígenas, disse: “Da mesma forma que você tem a impressão de que os índios não estão sendo melhor atendidos, nós temos a impressão oposta, já que vivenciamos diariamente todas as ações que o governo federal vem tomando em prol do Brasil e dos índios, e nos informamos diretamente pelos sites dos Ministérios, sem a distorção produzida por uma parte da grande imprensa”.

Por que investigamos?

Em sua terceira fase, o Comprova verifica postagens suspeitas que tenham viralizado nas redes sociais que tenham ligação com políticas públicas do governo federal ou com a pandemia. É o caso do vídeo verificado aqui, que desconsidera informações para afirmar que Jair Bolsonaro é o presidente que mais se preocupou com a floresta amazônica e seus moradores.

Enquanto a floresta está sob ameaça, sofrendo incêndios criminosos, Bolsonaro enfraquece a gestão ambiental do país afirmando em discurso na ONU que as queimadas ocorrem “onde o caboclo e o índio queimam seus roçados”. No mês passado, inclusive, ele chegou a afirmar que “essa história de que a Amazônia arde em fogo é uma mentira”. Conteúdos como a gravação investigada, que teve, 1,9 mil visualizações no Twitter até 25 de setembro (e 10 na página do coronel Armando no YouTube), disseminam versões distorcidas da realidade, agravando o risco que a floresta e a população indígena correm.

O Comprova já investigou conteúdos relacionados aos indígenas e à Amazônia, como o post que usa uma foto antiga de madeireiros para acusar ONGs por incêndios, o vídeo que distorce dados sobre queimadas na região e o que mostra fogo controlado feito pelo Ibama, e não incêndio provocado para culpar o presidente.

Enganoso, para o Comprova, é todo conteúdo que usa dados imprecisos e induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou que confunde, com ou sem a intenção de causar dano.