O Projeto Comprova é uma iniciativa colaborativa e sem fins lucrativos liderada pela Abraji e que reúne jornalistas de 41 veículos de comunicação brasileiros para descobrir, investigar e desmascarar conteúdos suspeitos sobre políticas públicas, eleições, saúde e mudanças climáticas que foram compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.
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Saúde

Investigado por: 2020-07-23

Publicação engana ao dizer que pandemia está em declínio após zerar excesso de mortes

  • Enganoso
Enganoso
Site usou dados ainda não atualizados do Portal da Transparência do Registro Civil e que não permitem chegar a essas conclusões
  • Conteúdo verificado: Texto do portal Notícias Brasil Online (NBO) que compara óbitos de 2019 e 2020 com base no Portal da Transparência e diz que pandemia entrou em declínio

É enganoso o texto apresentado pelo site Notícias Brasil Online (NBO) alegando que a pandemia do novo coronavírus está em declínio e que o Brasil “zerou o excesso de mortes em junho”. Em sua publicação, o site usou dados desatualizados que não permitem chegar a essas conclusões.

O texto usa como métrica o chamado “excesso de mortes”, que é a comparação entre o número de óbitos provocados por causas naturais que ocorreram neste ano, em que o mundo foi afetado pela pandemia de covid-19, e em 2019, sem a pandemia.

O texto foi publicado pelo NBO em 8 de julho, e o intervalo considerado é o de 16 de março a 7 de julho, tanto em 2019 quanto em 2020. Ocorre que a publicação não poderia ter levado em conta um período que se encerrava tão perto da data de publicação do texto. Isso porque os dados foram retirados do Portal da Transparência, do Registro Civil, que demora 14 dias ou mais para ser atualizado.

Um exemplo: quando o NBO publicou o texto, o número de óbitos entre 16 de março e 7 de julho de 2020 era de 388.386. Em 23 de julho, o Comprova verificou que o número de óbitos no mesmo período era de 422.256 mortes, quase 34 mil óbitos a mais do que constava no texto do site NBO.

Atualização: Depois que o Comprova publicou esta verificação, o NBO corrigiu a informação. O site mudou o título da reportagem para “Covid-19: Brasil não zerou excesso de mortes em junho” e afirmou ter atualizado as informações a partir do Estadão Verifica, um dos veículos que fazem parte da coalizão do Comprova.

Como verificamos?

Para confirmar se os números apontados pelo NBO eram verdadeiros, pesquisamos pelos dados disponíveis no Registro Civil e entramos em contato com a assessoria de imprensa do órgão. Por e-mail, explicaram o tempo concedido para resolver os trâmites relacionados ao registro de óbitos em cartórios e confirmaram os números apontados na matéria. O Comprova também realizou buscas sobre mortes por causas naturais nos registros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Enviamos duas mensagens ao NBO pela aba de “contato” do site, mas não recebemos resposta. Também não encontramos forma de contato ou mesmo o nome do responsável pelo site nas buscas pelo registro.

Ao pesquisar no Google sobre o conteúdo, encontramos a mesma notícia na Revista Oeste, também publicada no dia 8 de julho. O texto da revista digital era mais completo — indicando ser o conteúdo original —, contendo gráficos e uma entrevista com o cardiologista Juliano Lara Fernandes. Entrevistamos o médico para entender melhor os números e a metodologia por trás deles, já que o texto do NBO não detalhou como foi feita a pesquisa.

Também conversamos com o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que nos explicou que a comparação entre março e julho de 2020 com o mesmo período no ano passado é descabida por haver atraso para protocolar os óbitos, algo que escapa a um texto publicado com curto intervalo após os registros analisados. Os dados de óbitos avaliados pela matéria iam até 7 de julho, um dia antes da publicação do texto.

Após a conversa com Lotufo, procuramos novamente o Registro Civil e entrevistamos, por telefone, Luis Carlos Vendramin Junior, vice-presidente da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). Ele confirmou que o texto publicado pela NBO não poderia levar em consideração óbitos registrados até um dia antes justamente pela demora que alguns levam até serem reconhecidos.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 23 de julho de 2020.

Verificação

Onde o conteúdo foi publicado

O site Notícias Brasil Online (NBO), que viralizou com a notícia, já teve uma publicação checada pelo Comprova. Tratava-se de um boato que acusava equivocadamente o Greenpeace de envolvimento no vazamento de óleo em praias da região Nordeste em 2019. Boa parte das notícias é de teor político e nenhuma apresenta assinatura do autor. Em 2018, reportagem do G1 afirma que o site era responsável por “parte das fake news” que circulava na internet na época.

A única forma de contato apresentada pelo NBO é para quem deseja anunciar no site. Não há nomes de funcionários que atuem no portal na seção “Autores”. O Comprova utilizou a caixa de mensagens com pedidos de entrevista entre os dias 15 e 17 de julho para tentar levantar de onde saíram os dados. Não houve retorno até a data da publicação desta investigação.

No site Look Up, ferramenta que permite encontrar informações sobre páginas na internet, não há informação sobre o responsável pelo registro do site ou mesmo uma forma de contato. Na consulta do Who Is, ferramenta semelhante, também não consta nenhuma informação.

O NBO apresenta muitas publicações com títulos favoráveis ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e copia conteúdos de outros veículos. É o caso de um texto sobre o diagnóstico negativo da primeira-dama Michelle Bolsonaro para o novo coronavírus, afirmando se tratar de “Coisa de Deus!”.

O texto, no entanto, é copiado do jornal O Globo, apresentando as mesmas palavras, estrutura e o indicativo de localização de onde foi escrito — não há outros textos do NBO indicando em que cidade foram produzidos. Não há crédito para a informação do jornal no site.

Os dados

Como destacado anteriormente, ao afirmar que o Brasil zerou o excesso de mortes, o texto do NBO compara o total de óbitos de causas naturais entre 16 de março e 7 de julho de 2019 com o mesmo período de 2020 (incluindo as vítimas de covid-19). O dia 23 de junho de 2020 é citado como ponto de virada para o declínio no registro de mortes. Isso porque, até aquela data, segundo os dados do Portal da Transparência do Registro Civil, o total de mortes diárias em 2020 era maior do que em 2019.

Em 23 de julho, data em que o Comprova publicou esta verificação, os dados de 23 de junho já são diferentes: são 3.629 mortes em 2020 ante 3.391 em 2019. Também na data do levantamento, o suposto “ponto de virada” é o dia 28 de junho, mas, como esses dados estão sendo constantemente atualizados por cartórios no Brasil todo, não é possível, ao menos por enquanto, falar em excesso de mortes “zerado”.

O texto do site NBO, verificado aqui, foi publicado em 8 de julho, mas usou informações até o dia anterior, 7 de julho. Assim, desconsiderou semanas de atualizações. Segundo explicou o Registro Civil, “após o falecimento, a família tem até 24 horas para comparecer ao Cartório de Registro Civil; o cartório tem até cinco dias para efetuar o registro e, depois, oito dias para enviar o ato feito à Central Nacional de Informações do Registro Civil, que abastece a plataforma”. Isso significa que os dados só podem ser considerados consolidados depois de pelo menos 14 dias. E o intervalo pode ser ainda maior.

“Se você entrar no Portal da Transparência hoje e fizer a mesma pesquisa, vai ver que os dados são diferentes, porque a plataforma é viva, com informação nova disponibilizada automaticamente”, afirma Luis Carlos Vendramin Junior, vice-presidente da Arpen. “Nós sempre orientamos a considerar uma data de corte de 10 a 15 dias [para trás]. E ainda varia um pouco se for dia útil; se houver um feriado, é possível que atrase [o registro no site]”, diz.

O Projeto Comprova verificou, também, que há registros também de 2019 ainda atualização. Em 23 de julho, ao buscar no Registro Civil o número de óbitos entre março e julho de 2019, constatamos que ele havia aumentado. Enquanto o texto do NBO informava que o número de mortes por causas naturais em 2019 era de 368.724; passados 15 dias, o registro já apontava 370.134 óbitos no período.

Metodologia

O que o texto do NBO omite é que os dados partem de um gráfico do site mortalidade.com.br, criado a partir de dados do Registro Civil para analisar os impactos da covid-19. Logo no início da página, há o aviso: “Construímos esta página para propor um novo ponto de vista no entendimento da real mortalidade da pandemia do novo coronavírus, dado o cenário político conturbado, onde os dados divulgados sobre a pandemia oficialmente não são confiáveis (ou estão possivelmente sendo censurados)”.

A metodologia do site mortalidade.com.br se baseia na mortalidade por causas naturais e leva em conta o excesso de mortes, “ou seja, o número de mortes acima da média histórica. Ainda que somente das mortes por causas naturais”, como afirma a página.

A plataforma informa que veículos estrangeiros como Financial Times, The New York Times e BBC utilizam dados semelhantes.

O site do britânico Financial Times começou a usar os gráficos de excesso de mortalidade no dia 29 de abril, afirmando que eles mostram que a contagem de óbitos por covid-19 talvez seja significativamente subestimada. Na página, a comparação é feita entre mortes por todas as causas (não apenas causas naturais, como faz o mortalidade.com.br) em 2020 e em “anos recentes”.

A BBC publicou em 18 de junho o texto “Coronavírus: como o ‘excesso de mortes’ pode revelar o verdadeiro número de vítimas da pandemia de covid-19”. O texto apresenta dados de diversos países, incluindo o Brasil.

Para dizer que as mortes em excesso “sugerem que o impacto humano da pandemia vai além dos dados oficiais divulgados por governantes pelo mundo”, o veículo conta a história de uma brasileira cuja mãe foi internada após um AVC. Ela foi hospitalizada e teve alta 15 dias depois “porque a Santa Casa ia precisar de leito” para pacientes de covid-19. Ainda de acordo com a filha, a mãe não teria morrido se tivesse continuado no hospital. “Então, ela não morreu com a doença, mas por causa da doença”, conclui a mulher.

Já o New York Times publicou, em 29 de abril, gráficos com o total de mortes nos estados mais afetados pela pandemia para indicar uma possível subnotificação dos dados oficiais de óbitos apresentados pelo governo dos Estados Unidos. Segundo a publicação, a cidade de Nova York apresentava, entre 8 de março e 11 de abril, três vezes mais mortes do que o registrado no mesmo período no ano anterior. O texto também alerta para o fato de os números serem preliminares diante da demora em processar e coletar os atestados de óbitos.

“Se observarmos as mortes provisórias, por todas as causas, Nova York, Nova Jersey, Michigan, Massachusetts, Illinois, Maryland e Colorado tiveram um salto muito superior aos níveis normais”, diz trecho do texto.

O que diz o médico ignorado pelo NBO

Juliano Lara Fernandes, cardiologista que atua no Instituto José Michel Kalaf e foi ouvido pela reportagem da revista Oeste e ignorado pelo texto do NBO, disse ao Comprova que, por mais que os dados não estivessem consolidados na época da publicação do texto, eles continuam valendo. “Estamos há quase um mês do final de junho e o cruzamento do excesso de mortes [o ponto de virada] continua naquele mês mesmo”, afirmou.

Ele disse ainda que “a curva já vinha em declínio desde o dia 14 de maio, quando ocorreu o pico do excesso de óbitos”. “Não é que não haja mais mortes por covid-19, mas, desde 14 de maio, essa curva é descendente e zerou em excesso de mortes no final de junho.” Questionado se a curva pode voltar a subir, Fernandes reafirmou: “Não. A não ser que seja vista uma segunda onda muito forte, que não é provável”.

O epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP Paulo Lotufo é mais cauteloso ao analisar os mesmos dados. Em 14 de julho, Lotufo assinou um artigo na Folha de S.Paulo em que defende a métrica do excesso de mortes, como faz o site mortalidade.com.br. Segundo o especialista, “esse indicador é mais preciso do que o número de mortes por casos comprovados pela covid-19, porque mostra a letalidade do coronavírus em outras condições que desconhecíamos, principalmente as cardíacas e renais”.

O Comprova entrevistou Lotufo para saber sua avaliação sobre a metodologia usada no texto do NBO. Ele defende um intervalo maior entre publicação do texto e a data de registro dos óbitos em cartórios. “A censura [o dado utilizado] deveria ser 8 de junho ou, no máximo, 15 de junho [e não 7 de julho]. O Registro Civil tem um atraso de, no mínimo, 14 dias – em média, mais do que isso”, afirmou.

Lotufo elogia o sistema do Portal da Transparência, porém, para ele, para considerar a subnotificação e o tempo para lavrar os registros, deveria haver um mecanismo automático de censura, ou seja, de congelamento dos dados. “Sem isso, abriu-se uma brecha imensa para os negacionistas”, critica o epidemiologista.

Por que investigamos?

Conteúdos suspeitos a respeito do novo coronavírus são investigados pelo Comprova desde março deste ano, quando a doença foi decretada pandemia. Desde então, já foi desmentido que um cemitério de São Paulo teria covas vazias para simular o aumento de mortes pela covid-19, que estados receberiam repasses de acordo com número de mortos e infectados, e que hospitais recebiam valores por cada óbito registrado como covid-19.

A cautela com informações de saúde pública, que podem colocar em risco a vida das pessoas, levou o Comprova a averiguar conteúdos que apresentam ampla viralização nas redes sociais. Até 23 de julho, o texto do NBO somava 4,1 mil interações no Facebook, de acordo com a medição da plataforma CrowdTangle.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado de forma a induzir a uma interpretação diferente.

Postagens utilizando informações fora de contexto para minimizar a pandemia são recorrentes em checagens. É o caso de informação equivocada sobre pesquisadores que estudam a covid-19 e texto que cita o uso de cloroquina a partir de um estudo de metodologia contestada.

Saúde

Investigado por: 2020-07-23

Estudo da Henry Ford Health System é insuficiente para provar eficácia da cloroquina contra a covid-19

  • Enganoso
Enganoso
A conclusão do artigo ressalta que os resultados precisam ser confirmados através de outros testes que permitam avaliar “rigorosamente” a eficácia do tratamento. Especialistas entrevistados pelo Comprova apontam que o método e as conclusões tiradas pelos pesquisadores são frágeis e precipitadas
  • Conteúdo verificado: Post do site Pleno.News afirma que um estudo do Henry Ford Health System comprova a eficácia do tratamento com hidroxicloroquina nos casos de covid-19. O texto se baseia em uma reportagem da Fox News, do começo de julho, que foi publicada por Bolsonaro nas redes sociais.

Um texto publicado em 18 de julho, no site Pleno.News, distorce as informações de um estudo sobre o uso da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 ao afirmar que está comprovada a eficácia do medicamento.

A publicação cita um estudo do Henry Ford Health System, do começo de julho, que afirma que o tratamento com a droga reduziu significativamente a taxa de mortalidade em pacientes hospitalizados com covid-19, sem causar efeitos colaterais ao coração. A própria conclusão do artigo, porém, ressalta que os resultados precisam ser confirmados através de outros testes que permitam avaliar “rigorosamente” a eficácia do tratamento.

Além disso, especialistas entrevistados pelo Comprova apontam que o método e as conclusões tiradas pelos pesquisadores são precipitadas e muito frágeis.

Como verificamos?

O Comprova buscou o estudo do Henry Ford Health System, uma organização de assistência médica sem fins lucrativos, dos Estados Unidos, e comparou as informações com as que foram publicadas no texto verificado. Buscamos também outras publicações com grande respaldo científico sobre o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com a covid-19, bem como o posicionamento de órgãos e entidades de referência sobre o uso dos medicamentos.

Também entrevistamos Carlos Orsi, diretor do Instituto Questão de Ciência e Estevão Urbano, presidente da Sociedade Mineira de Infectologia, que comentaram sobre a metodologia do estudo e sobre os resultados apresentados.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 22 de julho de 2020.

Verificação

O texto do site Pleno.News fala sobre o estudo por causa de uma reportagem do canal americano Fox News, de 3 de julho, que foi postada pelo presidente Jair Bolsonaro em suas redes sociais. Na matéria da Fox, que anunciou um “novo estudo bombástico sobre a hidroxicloroquina”, a pesquisa do Henry Ford Health System foi comentada pelo médico cardiologista e CEO da Foxhall Cardiology, Ramin Oskui.

O Estudo da Henry Ford Health System

No estudo publicado pelo Henry Ford Health System no International Journal of Infectious Diseases, médicos analisaram 2.541 pacientes hospitalizados entre os dias 10 de março e 2 de maio de 2020 em seis hospitais que fazem parte da rede de saúde da organização, localizados na região metropolitana de Detroit, nos Estados Unidos. De acordo com os pesquisadores, 13% dos tratados apenas com hidroxicloroquina morreram, enquanto a taxa de mortalidade entre os pacientes não tratados com hidroxicloroquina foi de 26,4%. “Nenhum dos pacientes havia documentado anormalidades cardíacas graves; no entanto, os pacientes foram monitorados quanto a uma condição cardíaca rotineiramente apontada como uma razão para evitar o medicamento como tratamento para a covid-19”, afirma o estudo.

Os pesquisadores também analisaram a taxa de mortalidade entre pacientes que receberam uma combinação dos medicamentos hidroxicloroquina e azitromicina e aqueles que receberam apenas o último tipo.

O Comprova conversou com o diretor do Instituto Questão de Ciência, Carlos Orsi, que avalia que existem dois problemas nos argumentos apresentados pela pesquisa; um de caráter geral e outro específico do trabalho em questão. Segundo Orsi, trata-se de um estudo observacional, em que os autores apenas observaram os resultados dos pacientes, sem interferir ou controlar os tratamentos. “Estudos observacionais são logicamente incapazes de provar qualquer coisa. Eles apenas sugerem associações (no caso, entre hidroxicloroquina e menor mortalidade) que depois precisam ser validadas em estudos de intervenção, onde os tratamentos são devidamente controlados”, explica ele. Como o Comprova já explicou, em outras verificações, o método científico mais confiável é o chamado de ensaio clínico randomizado controlado, em que um grupo de voluntários é recrutado e acompanhado pelos pesquisadores ao longo de vários meses. Nesse modelo, também é sorteado aleatoriamente quem receberá a medicação, para evitar que fatores externos, como idade e condição de saúde, interfiram no resultado.

O estudo Instituto Henry Ford também mostrou que aqueles pacientes tratados apenas com azitromicina ou com uma combinação de hidroxicloroquina e azitromicina tiveram um desempenho um pouco melhor que aqueles não tratados com os medicamentos. A análise constatou que 22,4% dos tratados apenas com azitromicina morreram e 20,1% tratados com uma combinação de azitromicina e hidroxicloroquina morreram, em comparação com 26,4% dos pacientes que morreram e que não foram tratados com nenhum dos medicamentos.

Segundo Estevão Urbano Silva, diretor da Sociedade Mineira de Infectologia, o fato de os pacientes analisados no estudo do Henry Ford Health System não terem apresentado efeitos colaterais relacionados à medicação não é definitivo. “Não dá para trazer essa conclusão para todos os outros pacientes e para as situações do dia a dia, porque é um estudo com metodologia científica inadequada”, aponta o médico. No início de junho, uma nova pesquisa da Universidade de Minnesota constatou, após uma experiência com mais de 800 pacientes, que não há nenhum benefício no uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no combate ao novo coronavírus. Além dessa análise, o estudo também apontou para efeitos colaterais graves ou problemas cardíacos com o uso dos dois medicamentos.

Para o infectologista, no momento em que a ciência caminha para aperfeiçoar seus estudos sobre o novo coronavírus, é delicado e perigoso acreditar em apenas uma fonte de informação. “Temos que fazer uma avaliação sobre o tema. Tem estudos mais conclusivos falando contra o uso da cloroquina que não adiantou, então temos que nos firmar naqueles estudos que tiveram uma metodologia mais adequada, mais correta.”

Embora o neurocirurgião Steven Kalkanis, CEO do Henry Ford Medical Group e vice-presidente sênior e diretor acadêmico do Henry Ford Health System, esteja comemorando que o medicamento tenha ajuado a salvar vidas, ao fazer a leitura dos dados é possível encontrar inconsistência nos perfis dos grupos de pacientes.

De acordo com Carlos Orsi, uma das tabelas apresentadas no estudo informa que apenas 38% dos pacientes do grupo que não receberam hidroxicloroquina ou azitromicina tinham menos de 65 anos, enquanto a taxa de pacientes mais jovens medicados, nos outros grupos, era superior a 50%. “A comparação não é justa, é impossível atribuir o progressos dos pacientes que receberam hidroxicloroquina à medicação, já que eles eram mais jovens, estavam recebendo também outros remédios. Os autores do estudo tentam corrigir essas distorções aplicando técnicas estatísticas para estimar o peso relativo de cada fator (como a idade), mas estatísticas não fazem milagres”, avalia Orsi.

A emissora norte-americana CNN esteve na coletiva de imprensa em que a equipe do Henry Ford Health System anunciou os resultados. Segundo a reportagem, a equipe que coordenou os estudos destacou que os pacientes foram submetidos ao tratamento no início da manifestação da doença. “Para que a hidroxicloroquina seja benéfica, é preciso que os pacientes tomem antes de seu organismo produzir algumas reações imunológicas severas que podem ocorrer a quem está infectado com a covid-19”, afirmaram os pesquisadores, na apresentação dos dados à imprensa.

A reportagem destaca, também, que a pesquisa recebeu críticas da comunidade científica e cita que outros dois estudos de ampla divulgação foram interrompidos porque os resultados sugeriram que a hidroxicloroquina não trazia benefícios aos pacientes. O primeiro, realizado pela Agência Nacional de Pesquisa Médica (National Institutes of Health), testou o medicamento em 470 pacientes. O segundo, realizado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, contou com mais de 11 mil pacientes.

Apesar do entusiasmo que acompanhou a publicação da pesquisa realizada pelo Henry Ford Health System, e da ênfase do site Pleno.News sobre a comprovação dos benefícios, os próprios pesquisadores destacaram na conclusão do artigo que “os resultados devem ser interpretados com cautela e o tratamento não deve ser aplicado em pacientes fora do ambiente hospitalar. Os resultados também requerem confirmação através de testes randomizados que permitam avaliar rigorosamente a segurança e a eficácia do tratamento com hidroxicloroquina para pacientes hospitalizados com a covid-19”.

A hidroxicloroquina no tratamento da covid-19

A Fox News, que publicou a reportagem sobre o estudo do Henry Ford Health System, foi a primeira emissora americana a ventilar a possibilidade de uso da cloroquina e da hidroxicloroquina, ainda em março. O advogado Gregory Rigano foi entrevistado no canal e falou sobre os resultados promissores de um estudo francês, que ainda não havia sido publicado, sobre o uso da droga no tratamento da covid-19. Tratava-se do artigo de Didier Raoult, que, posteriormente, foi criticado pela comunidade científica em decorrência dos métodos duvidosos empregados na pesquisa. O estudo francês já foi alvo de outras verificações do Comprova.

Desde então, vários outros estudos já apontaram a ineficácia do tratamento com a cloroquina e a hidroxicloroquina nos pacientes com o novo coronavírus e a Organização Mundial da Saúde suspendeu as pesquisas com o medicamento em pacientes hospitalizados.

Na semana passada, a Sociedade Brasileira de Infectologia divulgou uma nota afirmando que dois estudos internacionais comprovaram que não há nenhum benefício clínico da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. No texto, a entidade diz que a substância não é eficaz nem na prevenção nem na cura da doença.

A entidade também pede que a cloroquina deixe de ser usada como tratamento da covid-19, que os órgãos públicos reavaliem orientações de uso de medicamentos comprovadamente sem efeito e que os recursos públicos sejam usados em anestésicos, bloqueadores neuromusculares e aparelhos para o tratamento da doença, em falta na rede pública.

Nos Estados Unidos, a Food and Drug Administration — órgão governamental responsável pela regulação de medicamentos — revogou, em junho, a autorização emergencial para o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com a covid-19 — a não ser no caso de ensaios clínicos. Em julho, o órgão atualizou as diretrizes e divulgou um documento com um resumo dos problemas de segurança encontrados durante o tratamento dos pacientes hospitalizados com o novo coronavírus. São mencionados “arritmias sérias”, “problemas hematológicos e linfáticos”, lesões renais e falhas no fígado.

Por que investigamos?

O Projeto Comprova verifica conteúdos sobre a covid-19 que tenham grande alcance em redes sociais e grupos de mensagem. A checagem de fatos durante a pandemia adquiriu uma importância ainda maior, uma vez que a desinformação afeta diretamente a saúde das pessoas. Nesse caso, a relevância da verificação justifica-se pelo fato de envolver um tratamento que, além de não possuir eficácia cientificamente comprovada, pode ocasionar efeitos colaterais graves aos pacientes que a ele são submetidos.

Além disso, no Brasil, o medicamento vem sendo apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) como uma possível cura para a doença. Após afirmar ter sido diagnosticado com a doença no início de julho, o presidente disse estar tomando o remédio e defende o uso para pacientes com sintomas leves. Em um encontro com apoiadores no Palácio do Planalto, Bolsonaro exibiu uma caixa do medicamento.

Uma pesquisa do Instituto Ipsos mostra que 18% dos brasileiros acreditam que a hidroxicloroquina é uma cura para a covid-19, apesar de não haver qualquer indicação científica a sustentar essa impressão. “Entre os 16 países pesquisados, o brasileiro é a segunda população que mais acredita que há, sim, uma cura para a covid e é a cloroquina. Só perde para a Índia nesse quesito”, disse o presidente do instituto Marcos Calliari em entrevista ao Valor Econômico.

De acordo com os dados da plataforma CrowdTangle, o conteúdo verificado conta com mais de 100 mil interações no Facebook, tendo sido compartilhado inclusive pelo deputado Marco Feliciano. O conteúdo também viralizou no Twitter, somando mais de 11 mil interações.

O conteúdo do site Pleno.News também foi encontrado em outros blogs como o A Trombeta News, Atualidade em Foco, Opinião Crítica e Mídia News.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro com o propósito de mudar o seu significado; que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Política

Investigado por: 2020-07-21

Tuíte compara orçamento do STF para plano de saúde com arrecadação do Pátria Voluntária, mas omite dados

  • Enganoso
Enganoso
Os valores que constam de um tuíte de Roberto Jefferson se aproximam dos valores reais, mas ele omite que o orçamento do STF-Med atende a 4.180 pessoas e que parte do valor é paga pelos beneficiários
  • Conteúdo verificado: Tuíte de Roberto Jefferson no qual ele compara os valores arrecadados pelo Projeto Pátria Voluntária, administrado pela primeira-dama Michelle Bolsonaro, com os gastos do STF-Med, plano de saúde que atende funcionários do Supremo Tribunal Federal.

Em uma publicação no Twitter, o ex-deputado federal e atual presidente nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Roberto Jefferson, diz que o programa Pátria Voluntária, administrado pela primeira-dama Michelle Bolsonaro, arrecadou R$ 11 milhões em doações para combate à covid-19 enquanto o Supremo Tribunal Federal estaria gastando valor similar com plano de saúde de ministros, familiares e funcionários. Os valores são próximos dos montantes reais, mas a publicação força uma comparação descabida.

Jefferson afirma que o STF vai gastar R$ 10 milhões com o plano de saúde. O valor aparece em dois editais do Supremo publicados nos dias 16 de abril e 28 de maio. Trata-se de uma estimativa de custos previstos para ampliar a rede de atendimento médico e odontológico credenciada do STF-Med, plano de saúde que atende a 4.180 pessoas vinculadas ao Supremo e não somente aos 11 ministros, como entendem alguns usuários que responderam ao post de Jefferson no Twitter. De acordo com os editais, o total de gastos pode chegar a R$ 10 milhões por ano, mas nos seis primeiros meses de 2020, mais da metade da despesa do plano foi bancada pelos beneficiários.

Parte do orçamento do plano é custeado por meio do auxílio-saúde, um benefício que a legislação garante a todos os servidores públicos da União, não apenas do STF. O resto dos recursos é custeado pelos próprios beneficiados, que recolhem mensalmente entre R$ 121,03 e R$ 1.722,91, dependendo do tipo de vínculo com o plano. Além disso, os segurados pagam do próprio bolso um percentual que varia entre 10% a 40% da consulta, internação ou exame que utilizarem.

A comparação é descabida pois equipara uma campanha de arrecadação com o orçamento da União. Além disso, não explica que a assistência médica é um benefício comum a muitas categorias de servidores públicos e não um privilégio do STF. No ano passado, o governo federal gastou mais de R$ 6 bilhões com esse benefício, sendo que quase 44% foram consumidos pelo Ministério da Defesa.

A “Arrecadação Solidária”, campanha do programa Pátria Voluntária para aliviar os efeitos da pandemia entre idosos, pessoas com deficiência, população de rua e povos e comunidades tradicionais, de fato arrecadou mais de R$ 10,8 milhões entre os dias 06 de abril e 20 de julho.

Como verificamos?

A equipe do Comprova usou ferramentas de busca na internet, como o Google, para entender de onde vieram os valores citados no tuíte de Roberto Jefferson, publicado em 13 de julho. E encontramos reportagens com os valores arrecadados pelo Pátria Voluntária e sobre o edital de ampliação da rede do STF-Med, publicadas em datas próximas à da postagem. Com isso, tentamos contato com o Roberto Jefferson por meio da assessoria de imprensa do PTB para saber a fonte das informações que estão no tuíte.

A reportagem pesquisou ainda as despesas orçamentárias do STF com assistência médica e odontológica a servidores por meio do site da transparência do órgão. Consulta semelhante foi feita no orçamento público federal a partir de dados disponibilizados no Portal Siga Brasil. Em seguida, entramos em contato com a assessoria de comunicação do STF para esclarecer dúvidas sobre o plano.

Para saber como funcionam as doações, quanto foi arrecadado pelo Pátria Voluntária e quanto foi encaminhado para as vítimas da covid-19, buscamos a assessoria de imprensa da Casa Civil, responsável pelo programa, e a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), que atende às demandas relacionadas à primeira-dama. Por e-mail, a Secom informou que todas as informações sobre doações e valores disponíveis no site da campanha “Arrecadação Solidária” estão atualizadas.

Por fim, recorremos à ferramenta de monitoramento de redes sociais CrowdTangle para saber o quanto a postagem de Roberto Jefferson havia viralizado.

Verificação

O Pátria Voluntária foi criado em julho de 2019, a partir do Programa Nacional de Incentivo do Voluntariado, inicialmente subordinado ao Ministério da Cidadania. O conselho é formado por representantes do governo e da sociedade civil, entre eles a primeira-dama Michelle Bolsonaro, que foi designada presidente. Seis meses depois, o Pátria Voluntária passou a ser vinculado à Casa Civil, um dos ministérios que funcionam dentro do Palácio do Planalto.

Em 6 de abril de 2020, o programa lançou a campanha “Arrecadação Solidária” para recolher fundos para o combate à pandemia de covid-19. Qualquer pessoa pode participar, com um valor mínimo de R$ 30. O site da campanha informa que, até o dia 20 de julho, foram 3.985 doações, somando R$ 10.842.970 — média de R$ 2.720,94 por doação. Por e-mail, a Secom comunicou que “não há recebimento de orçamento governamental para essa ação, apenas doações privadas e voluntárias”. A secretaria também esclareceu que os dados no site do Pátria Voluntária estão atualizados.

O Ministério da Casa Civil, órgão responsável pelo programa Pátria Voluntária, também confirmou que todos os recursos são captados através de doações e que os dados disponíveis no site são oficiais.

Uma planilha disponibilizada na página da campanha mostra que 26% deste valor foi repassado a 245 entidades: R$ 2.872.644,55. São 122.810 pessoas beneficiadas, entre idosos, pessoas com deficiência, população em situação de rua e povos e comunidades tradicionais. Nem a assessoria da Casa Civil e nem a Secom informaram quando o restante das doações será repassado às entidades.

STF-Med

O STF-Med é o plano de Assistência à Saúde e Benefícios Sociais do Supremo Tribunal Federal. Segundo o regulamento geral do STF-Med, aprovado em 16 de abril de 2019, podem ser beneficiários os ministros ativos e inativos do STF, os juízes auxiliares, os magistrados instrutores, os servidores ativos e inativos do quadro permanente do Supremo, os ocupantes de cargo em comissão sem vínculo efetivo com a Administração Pública e os servidores cedidos ao órgão. Eles também podem indicar dependentes e agregados, nos termos da legislação. Com isso, o STF-Med atende 4.180 pessoas, entre titulares, dependentes e agregados, em 20 estados e no Distrito Federal.

A contribuição mensal do STF-Med varia entre R$ 121,03 e R$ 654,97, para titulares e dependentes, e entre R$ 512,60 e R$ 1.722,91, para agregados. Além disso, os beneficiários também arcam com de 10% a 20% dos serviços usados na rede credenciada ou conveniada para atendimentos médico-hospitalares ou odontológicos. Para serviços de alto custo ou alta referência, o custeio fica entre 15% e 40% dos procedimentos prestados.

O orçamento do plano serve para despesas médicas, hospitalares e odontológicas, reembolsos aos beneficiários e as despesas administrativas. As receitas do STF-Med vêm de recursos próprios, arrecadados por meio da contribuição mensal e da participação de custeio dos beneficiários, rendimentos das aplicações financeiras e recursos da União. Neste ano, a previsão de gastos bancados com o dinheiro público é de R$ 15,85 milhões.

STF abriu editais de credenciamento para o plano

Por WhatsApp, um assessor de imprensa do PTB disse que Roberto Jefferson retirou as informações de uma matéria do site Metrópoles que noticiou que o STF abriu licitação de R$ 10 milhões para contratar serviços de assistência médica e odontológica. Segundo o assessor, Jefferson “não fez fake news” ao publicar o tweet.

O edital citado no site foi publicado em 28 de maio e pode ser encontrado na página do órgão. De acordo com o documento, ele se destina ao credenciamento de pessoas jurídicas para prestação de serviços aos beneficiários STF-Med “com vistas à complementação da rede credenciada”.

O documento também informa que “considerando o prazo de 60 meses e a estimativa total de credenciamentos a serem realizados, prevê-se o valor de R$ 10 milhões para o total de serviços”. As despesas da execução do contrato serão custeadas com os recursos consignados ao STF no Orçamento da União de 2020 e, na falta destes, por recursos próprios do STF-Med, ainda segundo o edital.

Procurado pela reportagem, o STF comentou, por meio de nota encaminhada pela assessoria de comunicação, que “não houve liberação/acréscimo de valores orçamentários no plano de saúde”. Dessa forma, segundo o órgão, não haveria custo maior para os cofres públicos. O Supremo declarou que o objetivo é credenciar “profissionais de saúde que eventualmente tenham interesse em oferecer os seus serviços aos servidores pelo valor da tabela de referência adotada pelo plano” e que estes receberão pagamentos “de acordo com o uso que os beneficiários do plano fizerem dos serviços oferecidos”.

Sobre os R$ 10 milhões publicados no edital, a assessoria de imprensa do STF afirmou que se trata de “estimativa anual que se faz necessária”, sem entrar em detalhes. Argumentou ainda que este não será, necessariamente, o valor total pago pelo plano de saúde aos profissionais credenciados e sugeriu que, em razão do orçamento não ter sido alterado este ano, a diferença será quitada por meio das demais fontes.

O Comprova também encontrou outro edital de credenciamento de empresas para prestação de serviços dentro do STF-Med, desta vez para a área odontológica, publicado em 16 de abril. O documento apresenta o mesmo valor — R$ 10 milhões — e a mesma nota de empenho do edital de assistência médica. A assessoria de comunicação do STF informou que a previsão de gastos engloba tanto o edital de credenciamento médico quanto o odontológico, totalizando R$ 10 milhões a cada ano.

Até agora, orçamento não sofreu alterações

De fato, não houve alteração no recurso orçamentário do STF para a finalidade até o momento, como foi declarado pelo órgão. De acordo com dados do portal de transparência do Supremo, o montante disponível para despesas com assistência médica e odontológica de servidores, até junho, era o mesmo aprovado inicialmente para 2020: R$ 15,85 milhões.

Dessa forma, o plano de saúde conta, neste ano, com cerca de 1,7% menos recursos públicos autorizados do que no ano passado, em comparação com o orçamento inicial de 2019, de R$ 16,12 milhões. Posteriormente, o recurso disponível foi atualizado para R$ 17,33 milhões, possibilitando a despesa real de R$ 17,23 milhões naquele ano.

Até o mês de junho deste ano, o STF executou R$ 8,45 milhões do orçamento destinado a este propósito. O valor equivale a 53,3% do montante autorizado.

A partir de informações prestadas pelo STF-Med e da análise do orçamento público federal, a reportagem pode estimar a participação da União no plano de saúde dos servidores do Supremo. Ela fica em torno de 48,7%, considerando a execução do repasse da União entre os meses de janeiro e junho (R$ 8,45 milhões) e a despesa informada pelo STF-Med no mesmo período (R$ 17,36 milhões).

Além disso, cada beneficiário do STF-Med custa, aproximadamente, R$ 336,82 por mês para os cofres públicos. O cálculo foi feito com base no número atual de beneficiários informado pelo STF-Med (4.180 pessoas) e a execução do orçamento no primeiro semestre deste ano (R$ 8,45 milhões).

Gasto total da União com assistência médica é de R$ 6,26 bilhões

Os funcionários do STF e seus dependentes não são os únicos a receberem o benefício. Dados do Portal Siga Brasil, do Senado Federal, mostram que, apenas no ano passado, a União gastou R$ 6,26 bilhões com assistência médica e odontológica aos servidores civis, empregados, militares e seus dependentes.

O STF teve despesa de R$ 17,23 milhões. O Poder Judiciário como um todo gastou, na esfera federal, R$ 966 milhões com o benefício — sendo as Justiças do Trabalho, Federal e Eleitoral as mais caras do grupo. A União ainda custeia assistência médica e odontológica para servidores dos ministérios e do Congresso Nacional.

Por que investigamos?

Nesta terceira fase, o Comprova verifica postagens com grande viralização que tratam de políticas públicas do governo federal ou relacionadas à pandemia de covid-19, que até o dia 20 de julho já custou a vida de 79.488 brasileiros, de acordo com dados da Universidade Johns Hopkins.

A publicação de Roberto Jefferson no Twitter soma as duas questões, ao comparar uma iniciativa beneficente coordenada pela primeira-dama no combate à covid-19 com críticas ao Supremo Tribunal Federal. O tuíte teve 8,1 mil interações em uma semana. A postagem foi reproduzida no Facebook e no Instagram por páginas de direita e de apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mas sem tanto alcance. Foram 323 e 826 interações até a data desta verificação.

O desempenho do governo Bolsonaro na pandemia é alvo de críticas no Brasil e no exterior. Mesmo depois de infectado pelo novo coronavírus, o presidente insiste em minimizar o impacto da pandemia e pedir a reabertura da economia. A postura gerou atritos com os ministros do STF. Logo nos primeiros meses da crise, o Supremo garantiu a governadores e prefeitos a autonomia para decretar medidas de isolamento social de acordo com a realidade local. A polêmica mais recente envolve o ministro do STF Gilmar Mendes, que afirmou no dia 11 de julho que o “Exército está se associando a genocídio” na pandemia do novo coronavírus.

Desde então, Roberto Jefferson posta conteúdo contrário a Gilmar Mendes e ao STF em sua página no Twitter. Jefferson é um aliado recente do presidente Bolsonaro. Velho conhecido na política, foi deputado federal de 1983 a 2005, até ser cassado por envolvimento no escândalo do Mensalão. Nesse período, participou da Assembleia Constituinte e fez parte da base de apoio do ex-presidente Fernando Collor. Voltou ao cenário nacional em abril deste ano, depois da aproximação de Bolsonaro com os caciques do Centrão.

O Comprova já verificou outros conteúdos falsos e enganosos envolvendo ministros do STF, como o texto que sugeria um decreto-lei inconstitucional para a criação de um tribunal militar, um áudio que pedia intervenção militar ou o vídeo que alegava que as Forças Armadas iriam prender os magistrados.

Enganoso, para o Comprova, é todo o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro com o propósito de mudar o seu significado; que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Saúde

Investigado por: 2020-07-18

Máscaras são eficientes no combate ao novo coronavírus, ao contrário do que diz influenciador

  • Falso
Falso
Ao contrário do que afirma o autor de um vídeo que viralizou no Instagram, o processo de filtragem das máscaras não depende unicamente do tamanho dos poros — o Comprova verificou que existem vários processos físicos envolvidos. Veja quais são eles.
  • Conteúdo verificado: Um vídeo que afirma que o uso de máscaras não ajuda no combate ao novo coronavírus publicado no Instagram pelo perfil rodrigopolesso.

É falso que o uso de máscaras, sejam elas caseiras ou profissionais, não ajude a diminuir a transmissão do novo coronavírus. Em vídeo publicado no Instagram, o influenciador e escritor Rodrigo Polesso afirma que a peça de proteção não teria eficácia porque as partículas de saliva expelidas por pessoas infectadas seriam menores do que os poros das máscaras.

Ele diz que a transmissão do SARS-CoV-2, o novo coronavírus, se dá por meio de aerossóis — que são partículas com tamanho menor que 5 micrômetros (μm). Porém, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a principal forma de transmissão do vírus é por meio de gotículas de saliva, maiores que 5 μm.

Mesmo assim, independentemente do tamanho das partículas, o processo de filtragem das máscaras não depende unicamente do tamanho dos poros — existem vários processos físicos envolvidos. Partículas maiores, de pelo menos um micrômetro, viajam em linha reta e, mesmo que passem pelos poros, irão se chocar com as fibras das máscaras, que possuem várias camadas. Partículas menores que um micrômetro estão sujeitas ao movimento browniano — princípio físico que faz com que a trajetória das partículas seja aleatória e não em linha reta — responsável por fazer com que elas se choquem com as fibras das máscaras. Por fim, partículas ainda menores são atraídas por campos eletrostáticos presentes nos materiais das máscaras. Por isso, é importante que elas tenham, pelo menos, três camadas e sejam feitas com diferentes materiais — a recomendação é da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

O vídeo engana também ao tentar relativizar a gravidade da pandemia afirmando que o SARS-CoV-2 está sendo estudado desde, pelo menos, 2015 e que todo ano o planeta enfrenta pandemias do vírus influenza e de outros coronavírus.

Procurado pelo Comprova, Polesso afirmou que seu vídeo se baseia em evidências e não em sua opinião sobre o assunto. Segundo ele, o fato de a “OMS [Organização Mundial da Saúde] dizer algo não significa que este algo é verdadeiro ou baseado em evidências”, o que é falso. O trabalho da organização é baseado em expertise técnica e científica, referência para pesquisadores de todo o mundo. O órgão conta, inclusive, com uma Divisão Científica para subsidiar as normas elaboradas pela organização e que produz pesquisa na área da saúde pública .

A OMS possui alto caráter técnico-científico, diferentemente de outras organizações internacionais, que têm, principalmente, a participação de diplomatas. Na Constituição da OMS — capítulo 5, artigo 11— é explicitado que as delegações na Assembleia Mundial da Saúde, o órgão máximo de deliberação da organização, devem ser escolhidas entre as personalidades mais qualificadas pela sua competência técnica no domínio da saúde.

Como verificamos?

A partir das informações presentes no perfil do Instagram de Rodrigo Polesso, o Comprova buscou mais informações sobre ele no Google e chegou ao projeto Emagrecer de Vez — que, segundo a definição do site, é um “movimento que tem com o objetivo quebrar mitos, simplificar e mostrar as verdades sobre o emagrecimento e estilo de vida saudável”. O site indica que Polesso é líder do “movimento” e reúne uma série de informações sobre ele e sua formação. Também buscamos os perfis de Polesso em outras redes sociais, como LinkedIn e Facebook.

O Comprova acessou os artigos citados no vídeo por Polesso e outros artigos científicos sobre a eficácia do uso de máscaras para diminuir a transmissão do novo coronavírus. Também buscou informações em órgãos como Anvisa, Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia), Organização Mundial de Saúde e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos.

Entramos em contato com o médico e professor de infectologia Antônio Carlos Bandeira, integrante do Comitê Científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e chefe do Serviço de Infecção e Controle do Hospital Aeroporto — Bahia. Conversamos, também, com o pesquisador do Laboratório de Imunorregulação da Universidade Federal de Santa Catarina Carlos Zárate-Bladés, que é médico com mestrado e doutorado nas áreas de microbiologia e imunologia.

Contatamos, ainda, o próprio autor do vídeo, Rodrigo Polesso, que respondeu aos questionamentos do Comprova por e-mail.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 17 de Julho de 2020.

Verificação

No vídeo publicado no Instagram, o influenciador Rodrigo Polesso afirma que o uso de máscaras não tem eficácia porque as partículas de saliva expelidas por pessoas infectadas seriam menores do que o tamanho dos poros das máscaras.

Pelo tamanho, essas gotículas não conseguem ficar suspensas no ar e caem no chão ou em outras superfícies rapidamente. As máscaras servem, principalmente, como uma barreira física para impedir que essas gotículas sejam expelidas por uma pessoa infectada, mas também para proteger a boca e o nariz de pessoas que não foram infectadas.

Recentemente, centenas de pesquisadores publicaram um texto no jornal The New York Times pedindo para a OMS considerar que o novo coronavírus também é transmitido em larga escala por aerossóis, ou seja, por partículas menores que 5 micrômetros. A diferença é que essas partículas, por serem pequenas, podem ficar paradas no ar por horas. A OMS, no entanto, sustenta que esses estudos são inconclusivos e que, independentemente do tamanho das partículas expelidas pelos infectados que carregam os vírus, as máscaras ajudam a frear sua transmissão.

Tamanho dos poros das máscaras

Na sequência do vídeo, Polesso afirma que as partículas dos aerossóis têm um tamanho médio de 2,5 micrômetros e que as máscaras cirúrgicas comuns têm poros que variam de 19 a 51 micrômetros. “As partículas são muito menores que os poros das máscaras cirúrgicas”, conclui ele.

Para falar do tamanho dos poros das máscaras, Polesso utilizou um artigo chamado “The Relationship of Fabric Properties and Bacterial Filtration Efficiency for Selected Surgical Face Mask”, publicado no Journal of Textile and Apparel, Technology and Management em 2003. O artigo testou seis modelos diferentes de máscaras e mediu o tamanho, peso, resistências e os poros das máscaras.

Os números que Polesso utiliza estão corretos: os poros dos modelos de máscaras analisados variam de 16 a 51 micrômetros, segundo o artigo. Porém, ele deixou de fora uma medida muito importante: a eficácia da filtragem. Os pesquisadores testaram a filtragem com duas bactérias (S. aureus e E. coli), que tem tamanhos variando de 0,5 a 6 micrômetros, e descobriram que as máscaras filtravam, em média, 93% das amostras. Ou seja, mesmo com poros maiores que as bactérias, as máscaras ainda filtravam a grande maioria das amostras.

Isso acontece porque a filtragem das máscaras ocorre em diferentes etapas e não depende apenas do tamanho dos poros. “As máscaras não funcionam unicamente através dos poros, mas funcionam de várias formas. É um fenômeno multifatorial que tem a ver com o tamanho das partículas, velocidade das partículas, tipos de tecidos usados, a características desses tecidos e também as cargas [elétricas] das partículas e dos materiais das máscaras”, explica o pesquisador Carlos Zárate-Bladés, do Laboratório de Imunorregulação da Universidade Federal de Santa Catarina.

O artigo “Aerosol Filtration Efficiency of Common Fabrics Used in Respiratory Cloth Masks”, publicado na revista da Sociedade Americana de Química em abril, mostra que existem cinco mecanismos básicos que atuam na filtragem. Partículas grandes, com pelo menos um micrômetro, ficam presas nas fibras das máscaras. Isso acontece porque cada camada de máscara é formada por várias camadas de fibras. Ou seja, mesmo que a partícula passe pelo poro da primeira camada, ela ainda pode atingir as fibras da segunda, e assim por diante.

As partículas menores, que variam no tamanho de 100 nanômetros até 1 micrômetros, são afetadas por um princípio físico chamado movimento browniano. Resumidamente, por serem muito pequenas, as partículas se chocam com moléculas presentes no ar e têm um movimento aleatório. Por conta disso, elas não se deslocam em linha direta e acabam atingindo as fibras das máscaras e ficando grudadas nelas.

Partículas ainda menores que 100 nanômetros são atraídas por uma força eletrostática gerada pelas fibras dos tecidos e também ficam presas nas máscaras. “Os vírus têm proteínas em sua superfície e também tem lipídios na parte externa, e estas substâncias têm cargas elétricas. Então, esses elementos também são atraídos pelos tecidos que compõem as máscaras”, complementa Zárate-Bladés.

Estudo publicado por Denis Rancourt

Durante o vídeo, Polesso cita um artigo escrito por Denis Rancourt, um cientista e ex-professor de física conhecido por ter sido demitido da Universidade de Ottawa, no Canadá, após ter violado uma série de acordos coletivos de política da universidade. O artigo foi publicado inicialmente no site ResearchGate, mas foi posteriormente removido pelos administradores do site. Rancourt acusa a instituição de censura.

A partir do artigo de Rancourt, Polesso extraiu diversos outros que são citados ao longo do vídeo. O Comprova leu todos e concluiu que nenhum afirma que as máscaras não funcionam (análise abaixo). A maioria dos artigos tem diversas limitações, como o não acompanhamento de quem utiliza a máscara para certificar do uso correto, que os próprios autores mostram nos trabalhos. Ou seja, Rancourt tira de contexto vários artigos para tentar provar a ineficácia das máscaras

Estudos citados

Para sustentar suas afirmações, Rodrigo cita no vídeo uma série de artigos sobre o uso de máscara para proteção de doenças respiratórias publicados entre 2009 e 2020. O primeiro é um teste randomizado feito no Japão sobre a capacidade das máscaras em reduzir a incidência de resfriados entre profissionais de saúde, publicado em 2009. Em um teste randomizado, os integrantes do grupo a ser testado e do grupo de controle são escolhidos aleatoriamente para evitar que outras características, como idade ou condição de saúde, distorçam os resultados. Segundo Rodrigo, o estudo mostra que “o uso de máscara não demonstrou nenhum potencial benefício nos sintomas do resfriado ou no potencial de ser infectado por um resfriado”. Esse trecho foi retirado da conclusão do artigo. Mas a frase seguinte ressalta que “é necessário um estudo maior para estabelecer definitivamente se não há menos risco em não usar máscara”.

Outro artigo é uma revisão sistemática, quando o autor analisa estudos já publicados, sobre o uso de máscaras para prevenir a transmissão do vírus influenza, e foi publicado em 2010. Sobre ele, Rodrigo afirma que “nenhum dos estudos revisados mostrou o benefício de usar uma máscara, sendo dentro de hospitais, ambientes de saúde, ou mesmo com membros da comunidade usando”. A conclusão original do texto, porém, cita um vazio na literatura científica sobre esse assunto. “Enquanto há alguma evidência experimental de que as máscaras podem ser capazes de reduzir o potencial de infecção sob condições controladas, há menos evidência se isso pode se traduzir em efetividade das máscaras em um ambiente natural”, afirma. O texto sugere a necessidade de estudos maiores e mais detalhados para avaliar se as máscaras podem reduzir a transmissão dos vírus em um cenário de pandemia, o que descreve como uma prioridade urgente.

O terceiro artigo, datado de 2011, é também uma revisão sistemática sobre o uso de máscaras para prevenir a transmissão do vírus influenza. No vídeo, Rodrigo afirma que “nenhum dos estudos estabeleceu uma relação conclusiva entre usar máscara ou respirador em qualquer proteção contra influenza”. De fato, a conclusão do texto afirma que as evidências para sustentar a efetividade do uso de máscaras nos serviços de saúde ou na comunidade são limitadas. Mas registra também que o uso precoce, correto e consistente das máscaras pode melhorar a sua eficiência. Para coletar informações capazes de definir a efetividade das máscaras, o artigo sugere que se financie a adoção de um mesmo protocolo em diferentes locais por vários anos, a fim de verificar a sua eficácia.

Após mencionar o quarto artigo rapidamente, Rodrigo argumenta que “não teve diferença entre as duas coisas” ao comparar máscaras N95 e máscaras cirúrgicas para proteger trabalhadores da saúde de infecções agudas respiratórias, objeto do estudo. No entanto, omite que nas conclusões o paper menciona que “mais estudos clínicos randomizados controlados são necessários para detectar uma diferença clínica importante” e “que esses estudos em condições clínicas são as melhores evidências para avaliar a efetividade de informar a formulação de políticas públicas”. Além disso, não há menção ao controle de bactérias pelas máscaras cirúrgicas, assunto sugerido pela abordagem que Rodrigo faz do tema enquanto o estudo é visível na tela.

O quinto artigo compara o efeito de proteção contra infecções respiratórias no uso de máscaras e respiradores, a partir de análise de diversos outros papers. O trecho lido por Rodrigo afirma que não houve evidência significativa de proteção de ambos contra infecções respiratórias virais, mas não cita a parte que aponta este tipo de infecção como rara entre as amostras dos estudos. Ele também omite que há uma ressalva no artigo que diz: “É mais provável que essa falta de evidência indique insuficiência no poder estatístico desses estudos do que uma falta de efeito de proteção.”

O sexto e o sétimo artigos chegam à conclusão que não há diferença significativa na capacidade de proteção entre os trabalhadores de hospitais que usaram máscaras N95 e máscaras cirúrgicas. Ambos são mencionados por ele muito rapidamente, sem citar todas as limitações constatadas em cada um. Em seguida, Rodrigo diz genericamente ao se referir aos sete estudos que “as melhores evidências publicadas, antes dessa pandemia, estão mostrando claramente que [a máscara comum] não tem eficácia contra vírus respiratórios”, o que é falso, pois nenhum dos estudos permite esta afirmação.

O que dizem especialistas e autoridades?

A OMS recomenda o uso de máscaras como parte da estratégia para parar a transmissão do vírus. A entidade afirma que o uso de máscara por si só não é suficiente para fornecer um nível adequado de proteção contra a covid-19. Por isso, recomenda também que se mantenha uma distância mínima de um metro de outras pessoas, se lave constantemente as mãos e que se evite tocar o rosto ou a própria máscara. Segundo a OMS, máscaras médicas podem proteger as pessoas que as usam de serem infectadas. A organização recomenda, porém, que esse tipo de equipamento seja destinado a profissionais de saúde, pacientes com sintomas de covid-19, familiares que cuidam desses pacientes e grupos de alto risco, como idosos e portadores de comorbidades.

Em relação às máscaras de pano, a OMS afirma que as evidências quanto a sua efetividade são limitadas e não recomenda o seu uso entre o público para o controle da covid-19. A entidade ressalta, por outro lado, que nas regiões com transmissão comunitária do vírus que tenham capacidade limitada para implementar medidas de controle, o seu uso pelo público em geral deve ser incentivado pelos governos. A regra vale especialmente para locais onde não é possível manter o distanciamento físico de um metro, como transporte público, lojas e ambientes fechados.

Desde abril, o Ministério da Saúde recomenda o uso de máscaras caseiras para que as pessoas se protejam do novo coronavírus. Segundo a pasta, para que as máscaras caseiras sejam eficientes como uma barreira física, elas precisam ter duas camadas de pano e cobrir totalmente a boca e o nariz, além de ser justas ao rosto, sem deixar espaço nas laterais. Outra recomendação é para que sejam de uso individual, não podendo ser compartilhadas com outras pessoas. O ministério cita tecidos como algodão, tricoline e TNT como opções para confecção dos equipamentos.

Em nota, o Inmetro afirmou que desenvolveu, em 2014, um programa para avaliar a qualidade de máscaras, com base em critérios estabelecidos pela Anvisa. A certificação indica que o produto passou por auditorias no processo produtivo e ensaios de inspeção visual, resistência à respiração, penetrações através do filtro, inflamabilidade, resistência da válvula de exalação à tração e vazamento da válvula de exalação. O processo de certificação é feito por organismos acreditados pelo Inmetro e segue os parâmetros de avaliação da Anvisa.

Segundo o Inmetro, em 19 de março a Anvisa publicou uma resolução que define procedimentos temporários para equipamentos de proteção individual, incluindo máscaras, em virtude da emergência de saúde pública internacional causada pelo novo coronavírus. O texto diz que esses produtos ficam temporariamente “dispensados de certificação no âmbito do Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade (SBAC)”. Por isso, o Inmetro suspendeu por 12 meses a compulsoriedade da certificação das máscaras, já que o suprimento delas é considerado essencial para combater a pandemia.

Em entrevista ao Comprova, realizada por meio de áudios no Whatsapp, o médico e diretor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) Antônio Carlos Bandeira explicou que as máscaras funcionam como um anteparo para o vírus. “O uso da máscara previne a aerossolização dessas gotículas que quando o indivíduo fala, tosse ou espirra ele gera e contamina muito as outras pessoas”, afirmou o médico.

A afirmação de Bandeira está em consonância com as recomendações do Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, que produziu a ilustração abaixo para conscientizar as pessoas sobre a importância do uso de máscaras para diminuição do número de infectados pela doença

O médico destacou que o uso das máscaras se torna essencial na medida em que pessoas assintomáticas, ou com sintomas leves da doença, também transmitem o vírus. Segundo ele, “o uso de máscara previne a possibilidade de o indivíduo contaminado, mesmo que ele não saiba [que está infectado], de aerossolizar partículas, porque essas partículas vão ficar presas na porção interna das máscaras”. Bandeira afirmou que a máscara também pode proteger o indivíduo que é exposto ao vírus em um ambiente compartilhado com uma pessoa infectada que não usa máscara.

O infectologista alertou, ainda, que existem alguns cuidados com as máscaras caseiras para que elas possam fornecer a maior e melhor proteção possível a quem as usa. As máscaras devem ter preferencialmente três camadas de tecido, precisam ser trocadas a cada três horas, e devem cobrir completamente o nariz, a boca e a porção lateral da face, se ajustando bem e incluindo o queixo.

Confecção e uso das máscaras

A Anvisa possui uma página que reúne as informações sobre máscaras e as indicações para o seu uso. A agência afirma que existem diversos tipos de máscaras para diferentes finalidades, de modo que para cada situação há um tipo apropriado de máscara. No contexto da pandemia do novo coronavírus, a Anvisa destaca três tipos: máscaras de proteção de uso não profissional, máscaras cirúrgicas e equipamentos de proteção respiratória.

O primeiro tipo é o daquelas que “são confeccionadas artesanalmente com tecidos como algodão, tricoline, entre outros, e utilizadas para cobrir o nariz e a boca em espaços públicos durante a pandemia”. De acordo com a agência, essas máscaras atuam como barreiras físicas e reduzem a propagação do vírus.

O médico e pesquisador Carlos Zárate-Bladés, da UFSC, reforça que é importante que as máscaras tenham, pelo menos, três camadas de tecidos diferentes, como recomenda a Organização Mundial da Saúde.“Que os tecidos sejam diferentes para que consigamos ter uma trama fechada, mas que permita respiração e que consigamos ter uma máscara que atue não unicamente por um só mecanismo”, afirma.

“O algodão é um excelente tecido, que tem uma alta compactação, bastante fios e gera uma estrutura de rede que vai impedir a passagem de grandes partículas. Os poros podem ser permissivos para partículas menores, mas aí entram em jogo as outras camadas de tecido que vão estar por trás dessa capa de algodão. Um exemplo é a seda, que é um tecido que se considera que atua basicamente por carga, então a filtragem das partículas virais é melhorada”, complementa. Pesquisadores e professores do Centro de Ciências Biológicas (CCB) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), entre eles Zárate-Bladés, desenvolveram um passo a passo para a produção de máscaras caseiras visando o melhor aproveitamento das propriedades dos tecidos.

Sobre as máscaras caseiras, a Anvisa publicou, em 3 de abril, um documento com orientações gerais para seu uso. A agência afirma que “as máscaras faciais não-hospitalares não fornecem total proteção contra infecções, mas reduzem sua incidência”, e destaca que o “o efeito protetor por máscaras é criado por meio da combinação do potencial de bloqueio da transmissão das gotículas, do ajuste e do vazamento de ar relacionado à máscara, e do grau de aderência ao uso e descarte adequados”. A agência ainda define outros tipos de proteções, como as máscaras cirúrgicas que precisam ser testadas e seguir normas específicas, e máscaras PFF2 e N95 que tem um poder de filtragem superior às outras.

Além dos materiais usadas na confecção, a utilização correta das máscaras é muito importante para a efetividade de seu uso. Elas precisam estar bem acomodadas no rosto das pessoas. “Ela precisa vedar os espaços da boca e sobretudo os espaços do nariz de tal forma que a respiração seja feita sempre através da máscara, tanto na inalação quanto na exalação. É muito ruim se ela deixar passar ar pelas laterais, por baixo ou por cima da máscara”, afirma Zárate-Bladés. A parte da costura nos tecidos das máscaras também deve ser feita apenas nas bordas das máscaras e não na região central, para não danificar a continuidade das fibras.

As máscaras também devem ser feitas de tecidos que sejam facilmente laváveis e que tenham uma duração mais longa. A recomendação da Anvisa é para que as máscaras sejam utilizadas por, no máximo, três horas e depois sejam lavadas com água e sabão, álcool 70 ou em uma solução com água sanitária.

“Você pode ter a máscara mais perfeita do mundo, projetada de diversas formas e testada, mas o mais importante é o uso que a pessoa faz com ela: o bom uso implica em não tocar na máscara, lavar corretamente, saber retirar ela, saber colocar”, reforça Zárate-Bladés.

A descoberta do SARS-CoV-2 e o comportamento do vírus influenza

Na tentativa de minimizar a gravidade da pandemia, Polesso afirma, sem apresentar evidências, que o agente causador da covid-19, o SARS-Cov-2, é conhecido pelos pesquisadores desde, pelo menos, o ano de 2015. Não é o que apontam as evidências científicas, os especialistas e os órgãos de saúde.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que o SARS-CoV-2 era desconhecido antes do surto ocorrido em Wuhan, em dezembro de 2019. Entendimento análogo ao do Ministério da Saúde, do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos e do médico, professor e diretor da Sociedade Brasileira de Infectologia Antônio Carlos Bandeira, entrevistado pelo Comprova. O médico explicou que não existe nenhuma documentação que prove que o SARS-CoV-2 circulasse em populações humanas antes de dezembro de 2019 e esclareceu que “nós não sabemos ainda dizer se esse vírus circulava em animais [antes de dezembro de 2019]”.

O Ministério da Saúde esclarece que o SARS-CoV-2 pertence à família dos chamados coronavírus, que causam infecções respiratórias. Segundo a pasta, “os primeiros coronavírus humanos foram isolados pela primeira vez em 1937. No entanto, foi em 1965 que o vírus foi descrito como coronavírus, em decorrência do perfil na microscopia, parecendo uma coroa. A maioria das pessoas se infecta com os coronavírus comuns ao longo da vida, sendo as crianças pequenas mais propensas a se infectarem com o tipo mais comum do vírus. Os coronavírus mais comuns que infectam humanos são o alpha coronavírus 229E e NL63 e beta coronavírus OC43, HKU1”.

O Comprova verificou, em junho, outro boato que afirmava que o SARS-CoV-2 existia desde 2003.

Em outra tentativa de minimizar a gravidade da emergência sanitária causada pelo novo coronavírus, Polesso afirma que todo ano há uma pandemia do vírus influenza, causador da gripe, ou de outros coronavírus — o que, segundo ele, não justificaria as medidas tomadas para o controle da atual pandemia como, por exemplo, o uso de máscaras. Essa informação, no entanto, engana.

Segundo os critérios da OMS uma pandemia ocorre quando há disseminação mundial de uma nova doença. Para que a OMS classifique uma situação como pandêmica, portanto, não são levados em conta critérios como o tipo de doença ou sua gravidade — a definição de pandemia diz respeito essencialmente à disseminação de uma doença.

O médico e professor de infectologia Antonio Carlos Bandeira esclareceu que não é correto afirmar que todos os anos ocorrem pandemias do vírus influenza. Segundo o especialista “todo ano ocorre a circulação usual do vírus da influenza em níveis não epidêmicos nem pandêmicos. Excepcionalmente em alguns anos, como foi o caso de 2009, houve uma pandemia [causada] pelo vírus H1N1. Mas essa é uma situação que podemos chamar de atípica — o usual são níveis de circulação do vírus em níveis que chamamos de endêmicos.”

Quem é Rodrigo Polesso?

Rodrigo Polesso se apresenta no Instagram como “especialista em ciência nutricional” e “autor bestseller”. Ele tem 245 mil seguidores no Instagram e 1,37 milhões de inscritos em seu canal no YouTube. Em seu Facebook, diz que estudou Ciências da Computação na Universidade Federal do Paraná (UFPR) — o que foi confirmado pela instituição, por e-mail — e também afirma, na biografia, que estudou nutrition (nutrição, em português) na Universidade Estadual de San Diego, nos Estados Unidos.

Porém, na mesma rede social, exibe um certificado do curso “Nutrition for Optimal Health and Wellness” (Nutrição para Saúde Ideal e Bem-estar, em português). O curso é online, tem duração de cinco meses e não exige formação prévia na área de nutrição ou saúde. O Conselho Federal de Nutricionistas (CFN) afirmou, por e-mail, que não existe nenhum registro de Polesso no órgão. Ainda disseram que “a formação em Nutrição é ampla e tem duração de cinco anos” e que “para se tornar nutricionista é preciso ter um registro profissional no respectivo conselho regional”, caso contrário “o indivíduo estará exercendo a profissão de forma irregular, passível de sanções no âmbito civil e até criminal”.

Em seu perfil no Facebook, Polesso ainda exibe o endereço de quatro sites distintos, que oferecem cursos variados: como gerar renda na internet, como fotografar e como emagrecer. Ao acessar as plataformas, é possível ver o nome de Polesso como fundador de todos eles. Todos são cursos online e pagos.

Em um dos sites relacionados à nutrição e dieta, o Tribo da Forte, Polesso adicionou uma nota evitando o termo “nutricionista” e afirmando que ele “enquanto especialista certificado em nutrição otimizada para saúde e bem-estar pela San Diego State University [Universidade Estadual de San Diego], na Califórnia, é um expert por mérito próprio, tendo construído seu conhecimento na área de nutrição através de suas próprias pesquisas ao redor do mundo, não sendo formado em nutrição nem em qualquer outra área da saúde. Todos os conhecimentos, dicas e métodos compartilhados são de propósito meramente educacional. Nenhuma informação desta página ou do portal Tribo Forte substitui uma consulta com seu médico ou nutricionista. Jamais faça nenhuma mudança na sua alimentação ou estilo de vida alimentar sem antes consultar seu médico ou profissional de saúde. É só ele quem poderá avaliar de perto a sua situação atual e decidir se você está apto ou não á essas alterações”.

Procurada por e-mail para comentar sobre o curso, a Universidade Estadual de San Diego não retornou os contatos do Comprova. Polesso também afirma ter estudado administração na Fundação Getulio Vargas. Por e-mail, a instituição afirmou que os funcionários “estão trabalhando remotamente, por isso, não será possível a checagem solicitada”.

Procurado por e-mail, Polesso afirmou que por possui formação na área de ciências e exatas teria “grande poder analítico e crítico livre de ideologia para análise de evidência científicos e falácias lógicas em argumento”. Também disse que hoje em dia as pessoas têm acesso às “mesmas evidências que órgãos oficiais têm acesso” e que se estes “têm uma mensagem avessa as evidências, eles são passíveis de serem questionados”.

Questionado sobre não ter uma formação na área da saúde, disse que o trabalho se resume “em informar e educar as pessoas sempre baseado em evidências e nunca em minhas opiniões” e afirmou que não prescreve e não consulta e que, por isso, “a questão de formação acadêmica é totalmente irrelevante neste cenário”. Ele voltou a reforçar que possui um certificado em nutrição otimizada para saúde e bem-estar na Universidade Estadual de San Diego, mas disse que o curso o decepcionou. Afirmou, ainda, que tem duas graduações em universidade federais, uma pós-graduação na Fundação Getulio Vargas e outra pós-graduação na Universidade da Califórnia Berkeley. “Nenhuma delas na área de nutrição ou da saúde. Meu conhecimento na área de emagrecimento e ciência nutricional vem das minhas próprias pesquisas baseadas em evidências ao longo dos últimos dez anos ao redor do mundo, coisa que toda e qualquer pessoa pode fazer independente de formação acadêmica na área”, afirmou por e-mail.

Por que investigamos?

O Projeto Comprova verifica conteúdos suspeitos que tenham viralizado na Internet. Quando esses conteúdos tratam da pandemia do novo coronavírus, a checagem é ainda mais relevante, já que pode colocar a saúde das pessoas em risco. É o caso do vídeo em questão, que pode induzir as pessoas a não utilizarem máscara, recurso recomendado por médicos e pelas autoridades de saúde para funcionar como uma barreira física contra a transmissão da covid-19.

Desde o início da pandemia, o Comprova já desmentiu diversos boatos sobre o uso de máscaras, mostrando ser falso que elas reduzam a imunidade e potencializem a proliferação de bactérias. Também mostrou não serem verdadeiros um vídeo e um áudio que acusavam máscaras importadas da Ásia de estarem contaminadas. Na última delas, o Comprova desmentiu que máscaras contaminadas fossem ser distribuídas para a população de São Paulo.

Até a data de fechamento deste texto, o vídeo somava mais de 31 mil visualizações no Instagram. O Comprova também encontrou a publicação no Facebook, mas com um baixo números de visualizações.

Falso, para o Comprova, é um conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira

Saúde

Investigado por: 2020-07-17

Texto engana ao dizer que cloroquina cura 98,7% dos pacientes com covid-19

  • Enganoso
Enganoso
O estudo citado em um texto que circula pelas redes sociais não é conclusivo e foi feito com uma metodologia contestada
  • Conteúdo verificado: Post do site Sappno afirma que estudo provou que o uso de cloroquina e azitromicina é responsável pela cura de 98,7% dos pacientes com covid-19 em um hospital francês

Um texto publicado em maio no site Sappno e compartilhado recentemente por páginas do Facebook como “Aliança pelo Brasil” e “Lava Jato Notícias” traz informações equivocadas sobre o uso de medicamentos como hidroxicloroquina e azitromicina. A publicação engana ao sugerir que esses medicamentos têm eficácia comprovada no tratamento da covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, usando como fonte um estudo que não segue métodos capazes de chegar a essa conclusão.

Com o título “Estudo diz que a cloroquina ‘é segura’ e aponta cura de 98,7% dos pacientes”, o texto faz referência a um artigo publicado na plataforma ScienceDirect e vinculado à revista Travel Medicine and Infectious Disease em maio de 2020. Porém, o estudo tem qualidade científica questionada, uma vez que a metodologia utilizada não permite conclusões de causa e efeito em relação ao uso do medicamento e o tratamento da covid-19.

Entre os autores do estudo está Didier Raoult, infectologista francês criticado na comunidade científica por utilizar métodos duvidosos em suas pesquisas. Raoult ganhou projeção durante a pandemia por propor, na mídia, o uso da hidroxicloroquina para tratar a covid-19 antes mesmo de ter publicado pesquisa a respeito – o que chegou ao conhecimento de líderes como o presidente dos Estados Unidos Donald Trump, que chamou a proposta de “cura milagrosa”.

Como verificamos?

Para verificar o conteúdo, o Comprova acessou a publicação original do estudo mencionado pelo texto que viralizou, no site ScienceDirect. Depois, comparou o conteúdo do post do site Sappno com o que estava de fato no artigo científico. Para entender sobre a razoabilidade da metodologia científica aplicada, além de pesquisar sobre o assunto em veículos jornalísticos, entrevistamos Natalia Pasternak, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência – organização dedicada à promoção do pensamento científico e do uso de evidências científicas nas políticas públicas.

Além disso, pesquisamos sobre a posição de órgãos de saúde como a OMS (Organização Mundial da Saúde) a respeito do uso da cloroquina. Sobre o medicamento, também entrevistamos o médico Antônio Carlos Bandeira, professor de Infectologia da UniFTC e membro da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).

Ao analisar os nomes dos pesquisadores envolvidos na produção do artigo, encontramos Didier Raoult. A partir disso, buscamos em publicações na imprensa e nas redes sociais sobre a atuação do pesquisador tanto antes quanto durante a pandemia. Também entrevistamos Pasternak sobre o assunto.

Para compreender sobre o processo de aprovação de artigos científicos pela Travel Medicine and Infectious Disease, também tentamos entrar em contato via e-mail com a pesquisadora Patricia Schlagenhauf-Lawlor, editora-chefe. No entanto, não tivemos retorno até o fechamento desta verificação.

A credibilidade da revista no meio acadêmico também foi analisada, comparando-a com as revistas mais respeitadas da área, como Lancet e New England Journal of Medicine. É possível medir a credibilidade de revistas científicas a partir do fator de impacto – número calculado a partir de quantas vezes artigos daquela determinada publicação foram citados em outros estudos. Quanto maior o número, maior tende a ser a credibilidade. Enquanto a Travel Medicine and Infectious Disease tem fator de impacto 4.589, a Lancet tem 60.392 e a New England Journal of Medicine tem 74.699.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 17 de julho de 2020.

Verificação

O texto viral e o estudo

O texto que viralizou começa dizendo que “boa parte da mídia parece fazer uma verdadeira campanha contra o uso da cloroquina” para tratar pacientes com covid-19 e que “pesquisadores sérios em várias partes do mundo reconhecem a eficácia do medicamento”. Essa afirmação não é verdadeira. As informações que têm sido veiculadas pela imprensa sobre o uso da cloroquina, e de seu derivado hidroxicloroquina, são baseadas em estudos reconhecidos com credibilidade pela comunidade científica e por órgãos de saúde.

A cloroquina é um medicamento antigo usado contra a malária. A hidroxicloroquina é utilizada no tratamento de doenças autoimunes, como artrite reumatoide e lúpus. De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), embora a cloroquina possa ter algum impacto sobre alguns pacientes com covid-19, não há, até o momento, tratamento efetivo ou drogas comprovadas contra o novo coronavírus. Sabe-se, ainda, que a cloroquina pode causar efeitos colaterais como arritmias, hepatite, pancreatite e choque anafilático.

O estudo citado pelo texto viral é intitulado “Tratamento precoce de pacientes com covid-19 com hidroxicloroquina e azitromicina: uma análise retrospectiva de 1.061 casos em Marselha, França”. O post afirma que “a administração combinada” dos dois medicamentos “antes da ocorrência de complicações com covid-19 é segura e associada a uma taxa de mortalidade muito baixa nos pacientes” – o que, de fato, consta da conclusão da pesquisa.

Porém, em entrevista ao Comprova, Natalia Pasternak, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência, afirmou que esses medicamentos “não funcionam nem separados nem em combinação” no tratamento da covid-19. Sobre o uso em combinação, ainda segundo ela, sabe-se também que há um aumento significativo de risco cardíaco.

De acordo com o médico Antônio Carlos Bandeira, professor de Infectologia da UniFTC e membro da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), “não existe comprovação (da eficácia da cloroquina ou da hidroxicloroquina) até o momento, considerando os estudos que já foram feitos”. “A verdade é que a gente não tem segurança para tratar em massa as pessoas com cloroquina”, diz, em entrevista ao Comprova.

O médico lembra ainda que a maior parte dos pacientes com covid-19 se cura sem maiores problemas. “Então, não é porque a pessoa se curou que a cloroquina funciona. É para isso que existem os estudos randomizados e com grupos de controle – para mostrar se, com esse medicamento, as pessoas se curariam mais ou não”, lembra. A SBI afirma que não há evidência para o uso da cloroquina e não apoia o uso do medicamento no tratamento do novo coronavírus.

O método utilizado pelo estudo

Como o título antecipa, o estudo realizou uma análise retrospectiva. Isso significa que a pesquisa toma como base dados já disponíveis – nesse caso, fichas hospitalares – e não pressupõe uma intervenção direta dos pesquisadores no tratamento. Trata-se de um estudo observacional.

O método científico considerado mais confiável é o ensaio clínico randomizado controlado. Para realizá-lo, os pesquisadores recrutam um grupo de participantes voluntários, realizam uma intervenção e acompanham os efeitos por meses. Há algumas características importantes que um estudo desse tipo deve cumprir para seja considerado bom. Uma delas é a existência de um grupo de controle – ou seja, os participantes devem ser separados em no mínimo dois grupos (um recebendo o tratamento e outro não, por exemplo) para que seja possível fazer uma comparação entre eles. A randomização também é importante, isto é, uma alocação aleatória de participantes entre os grupos de controle. Outras características são controle de placebo e duplo-cego (quando, para evitar vieses, nem os pesquisadores nem os participantes sabem quem recebeu placebo).

Em entrevista ao Comprova, Pasternak afirmou que o estudo observacional “já não é uma qualidade de metodologia científica que possibilita que a gente tire conclusões sobre qualquer tipo de relação de causa e efeito”. Segundo a pesquisadora, esse tipo de estudo serve para direcionar se vale a pena fazer um estudo “desenhado, direitinho, prospectivo – daí que você olha pra frente –, randomizado, duplo-cego, com grupo placebo, tudo certinho”.

Além dessa questão metodológica, o artigo mencionado pelo texto viral é de qualidade questionável. “Nem grupo de controle de comparação eles usaram. Todo mundo no estudo deles tomou [os medicamentos]. Não tem comparação. Numa doença em que você tem 90% de taxa de cura. Então, o que eles estão dizendo? ‘Olha, todo mundo que tomou hidroxicloroquina melhorou. Mas a gente não sabe se quem não tomou também melhorou porque a gente nem olhou isso’. Não faz sentido nenhum”, afirmou Pasternak.

Isso também se confirma em relação à faixa etária mais afetada pela covid-19. “Se você for olhar nas tabelas, você vai ver que os pacientes que tiveram um bom desfecho têm a idade média em torno de 40 anos. Os que tiveram um desfecho pior têm a idade média em torno de 60”, disse a pesquisadora. Ou seja, os resultados repetem um padrão da pandemia de covid-19, impossibilitando a associação com o consumo específico de hidroxicloroquina e azitromicina.

Quem é Didier Raoult

Um dos autores do artigo é o infectologista francês Didier Raoult, que já havia aparecido em verificação do Comprova do 10 de julho. Raoult foi criticado diversas vezes pelos métodos duvidosos (como erros, omissões, mecanismo deficiente de controle, distribuição não randomizada de pacientes para os grupos de controle) de pesquisas e por posicionamentos em relação à cloroquina. É um negacionista do aquecimento global e é contra a vacinação obrigatória.

A cloroquina já havia sido considerada para tratamento de infecções de outros tipos de coronavírus após as epidemias de SARS e MERS. Mas, na época, não foram feitos testes clínicos em humanos para confirmar a eficácia da droga. Em março, antes mesmo de publicar seu primeiro artigo sobre o tema, Didier Raoult deu uma entrevista para a rede de TV americana Fox News sobre o uso do medicamento para tratar pacientes com covid-19.

Pouco depois, um artigo publicado por ele ainda em março sugeria que a cloroquina poderia ser usada como tratamento para o SARS-CoV-2, o novo coronavírus. Esse estudo, porém, foi muito criticado. Outros pesquisadores questionaram os resultados e os considerados anedóticos, sem comprovação científica. A International Society of Antimicrobial Chemotherapy e a Elsevier, responsáveis pela revista que publicou o artigo, anunciaram um novo processo de revisão independente.

Na entrevista que concedeu à New York Times Magazine em maio, Raoult contou que estava concluindo um novo estudo com 1.061 pacientes usando uma combinação de hidroxicloroquina e e azitromicina e cujos resultados preliminares foram publicados em abril. Trata-se do estudo presente no post que viralizou, analisado acima. A versão preliminar havia sido tuitada pelo deputado federal Marco Feliciano. O tuíte, até o fechamento dessa verificação, tinha mais de 1,5 mil compartilhamentos e 3,6 mil curtidas. Na versão anterior do estudo, as drogas foram caracterizadas como “seguras e eficazes”. A versão atual as define apenas como “seguras”.

Na época, o Aos Fatos explicou que a pesquisa não tinha um grupo de controle que pudesse ser usado para comparar os resultados. “Papers como este último do francês são chamados de descrições de caso, um tipo de estudo que pode surgir de observações dos médicos em seu dia a dia. Normalmente, essas pesquisas têm um número pequeno de casos, não têm grupo de controle e não permitem tirar conclusões sobre a eficácia de um medicamento”, explicou o site.

Segundo a New York Times Magazine, a virologista Christine Rouzioux afirmou que a taxa de cura apontada no estudo é “quase idêntica” à que foi descrita se você deixar a doença seguir o seu curso natural. A virologista Karine Lacombe discordou que o artigo demonstre que a combinação das duas drogas seja eficaz para tratar a covid-19. Raoult também não havia obtido autorização das autoridades competentes para testar a combinação das duas drogas.

Em entrevista ao Comprova, Natalia Pasternak afirmou que Raoult é conhecido na comunidade científica como um “publicador em série”. “Ele publica muito mais do que seria humanamente possível, levando a comunidade científica a acreditar que ele simplesmente coloca o nome dele em todos os papers que saem do centro de pesquisa dele, do hospital dele e de trabalhos dos quais ele nunca participou. Então, se fizer a conta da periodicidade com que ele publica, é como se ele publicasse um paper a cada três dias. É uma coisa que é humanamente impossível”, explicou a pesquisadora da USP. Verificação anterior do Comprova mostrou que Raoult já teve 157.174 citações ao seu nome em artigos científicos publicadas desde 1995; ressaltando que ele assina seu nome em quase todos os artigos produzidos em seu instituto.

Pasternak também classifica de “antiética” a postura de Raoult sobre a hidroxicloroquina durante a pandemia. “Mesmo antes da publicação daquele primeiro paper infame dele, que deu origem a todo esse hype, ele foi na mídia falar que ele tinha achado a cura. E foi isso, inclusive, que deu origem ao hype, foi isso que chegou aos ouvidos do Trump e depois aqui nos do Bolsonaro. Então é um pesquisador que tem aí sérios problemas éticos passados, de conduta científica mesmo, e que tem publicado na pandemia insistentemente sobre a hidroxicloroquina com papers de baixíssima qualidade”, disse.

Bolsonaro e a cloroquina

Apenas dois dias após o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, defender pela primeira vez o uso da cloroquina, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro anunciou, em 21 de março, que o Exército ampliaria a produção do medicamento no país para pacientes com o novo coronavírus. Já no dia 25, o Ministério da Saúde emitiu uma nota técnica autorizando o uso da medicação em pacientes graves de covid-19.

Nos meses seguintes, Bolsonaro demitiu dois ministros da saúde, Luiz Henrique Mandetta, em 16 de abril, e Nelson Teich, em 15 de maio. Ambos são médicos e se opunham à prescrição de cloroquina para tratar pacientes com quadros leves da doença.

Em 20 de maio, o Ministério da Saúde, já tendo como ministro interino o general Eduardo Pazuello, passou a orientar o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no “tratamento medicamentoso precoce” de pacientes com o novo coronavírus. O documento, porém, ressalta que “ainda não há meta-análises de ensaios clínicos multicêntricos, controlados, cegos e randomizados que comprovem o benefício inequívoco dessas medicações para o tratamento da covid-19”.

O tema voltou ao debate depois do dia 7 de julho, quando Jair Bolsonaro anunciou que testou positivo para o Sars-CoV-2. No mesmo dia, o presidente postou um vídeo nas redes sociais mostrando que estava tomando doses de hidroxicloroquina. No dia 9, em outra transmissão ao vivo, o presidente segurou uma caixa do medicamento e disse que ela estava sendo “eficaz” para curá-lo.

No dia 14, o deputado de oposição Rogério Correia (PT-MG) entrou com uma representação por improbidade administrativa contra Bolsonaro por “incentivar e determinar o aumento da produção de uma substância cuja eficácia é rejeitada por cientistas”. A instauração de um procedimento depende de análise da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Por que investigamos?

O Projeto Comprova verifica conteúdos sobre a covid-19 que tenham grande alcance em redes sociais e grupos de mensagem. A checagem de fatos durante a pandemia adquiriu uma importância ainda maior, uma vez que a desinformação afeta diretamente a saúde das pessoas. Nesse caso, a verificação é importante porque envolve o uso de medicamentos cuja eficácia não foi cientificamente comprovada – como a hidroxicloroquina e a azitromicina – e que podem gerar efeitos colaterais.

O conteúdo, sugerido por leitores do Comprova, chegou a ter 1,8 mil compartilhamentos na página “Lava Jato Notícias”, no Facebook. Uma versão preliminar do estudo “Tratamento precoce de pacientes com covid-19 com hidroxicloroquina e azitromicina: uma análise retrospectiva de 1.061 casos em Marselha, França” já havia sido compartilhada pelo deputado federal Marco Feliciano (PSC) em sua conta do Twitter em abril e teve mais de 3,6 mil curtidas e 1,5 mil compartilhamentos. A agência de fact-checking Aos Fatos chegou a citar essa postagem do deputado em um texto, ao falar da problemática dos métodos utilizados por Didier em suas pesquisas.

Além disso, verificar o conteúdo passa por uma importância política, uma vez que a defesa do uso da hidroxicloroquina para pacientes com covid-19 faz parte da agenda do presidente Jair Bolsonaro. O post que viralizou faz essa relação e afirma que “a proposta do governo Bolsonaro para a ampliação do uso da cloroquina é justificável, e não uma fantasia”. O Comprova também verifica conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal. Por isso, torna-se necessário contextualizar e contrastar a visão das autoridades de saúde sobre o medicamento e o histórico de defesa desse medicamento não só por Bolsonaro, mas por outras lideranças políticas.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Política

Investigado por: 2020-07-16

“Decreto-lei” para criar Tribunal Constitucional Militar é enganoso e inconstitucional

  • Enganoso
Enganoso
É enganoso texto apresentado em vídeo no Facebook que trata da criação de um "Tribunal Constitucional Militar". A Constituição de 1988 não prevê, no processo Legislativo, a figura de decreto-lei
  • Conteúdo verificado: Vídeo publicado no Facebook apresenta proposta de texto de um advogado para um decreto-lei que cria um Tribunal Constitucional Militar.

É enganoso o vídeo publicado no Facebook sobre um texto que propõe a criação de um Tribunal Constitucional Militar. O autor da gravação, André Basílio, divulga uma proposta de decreto-lei que permitiria que o presidente da República criasse “um tribunal acima do STF”, para “poder julgar e condenar ou absolver, se for o caso, os ministros do STF que têm praticado crimes aqui no Brasil”. No vídeo, André dá a entender que o presidente Jair Bolsonaro poderia assinar o texto e colocá-lo em prática. No entanto, a Constituição de 1988 não prevê a criação de decretos-lei.

O autor da gravação, André Basílio, faz referência ao texto proposto pelo advogado Marcos David Figueiredo de Oliveira, que afirma em seu site que o tribunal seria “a única opção constitucional diante da falência comprovada do poder judiciário e do poder legislativo”.

O Comprova conversou sobre o conteúdo proposto por Oliveira com o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), Caio Augusto Silva dos Santos. De acordo com ele, o decreto escrito pelo advogado é inconstitucional. O decreto-lei é uma norma expedida em caráter de urgência e de forma excepcional pelo poder Executivo. No entanto, a Constituição Federal de 1988 não prevê mais esse tipo de processo, deixando ao Executivo a possibilidade de elaborar uma Medida Provisória, que pode ser apresentada de forma emergencial com força de lei — mas que, para ser transformada em lei de forma definitiva, precisa ser aprovada pelo Congresso Nacional.

Como verificamos?

Pesquisamos sobre André Basílio em suas redes sociais e encontrou publicações já desmentidas pelo Comprova e outras agências de fact-checking. No dia 9 de julho, escrevemos uma mensagem direta via Facebook para Basílio pedindo uma entrevista. Foram enviadas outras solicitações, em 13 e 15 de julho – nenhuma foi respondida. Também em 9 de julho, a equipe entrou em contato com Oliveira pelo e-mail informado em seu site. Sem resposta, o Comprova voltou a enviar um e-mail no dia 14, quando o advogado ligou para a equipe. A entrevista foi feita por mensagens de textos no WhatsApp.

Também levantamos informações sobre Oliveira em veículos de informação, no LinkedIn e nos sites do Tribunal de Justiça de São Paulo e Diário de Justiça do Estado de São Paulo.

Para ter mais informações sobre a constitucionalidade do texto proposto por Oliveira, o Comprova conversou por telefone com o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), Caio Augusto Silva dos Santos. Após a primeira conversa, houve uma segunda entrevista com Santos para esclarecer outros pontos jurídicos fornecidos por Oliveira.

A equipe também contatou a Secretaria de Governo, que encaminhou o pedido para a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom). Esta, por sua vez, informou que as informações seriam dadas pelo Ministério da Defesa, que respondeu que “este tema não é de competência” do órgão e que o Comprova deveria falar com a Secretaria de Governo, primeira instituição contatada. Novamente, a equipe enviou e-mail e telefonou para a Secretaria de Governo, que mais uma vez informou que a secretaria de imprensa da Secretaria de Comunicação responderia. Procurado no contato informado, o órgão não retornou aos pedidos do Comprova.

Verificação

O que diz o decreto-lei?

O texto propõe a criação de um tribunal constituído por um procurador-geral constitucional — nomeado pelo presidente — e 33 ministros, sendo cinco militares. O objetivo seria permitir ao tribunal processar e julgar membros dos três poderes.

A proposta indica o uso das Forças Armadas no cumprimento de decisões monocráticas — ou seja, aquelas proferidas por um único magistrado. Para isso, o decreto-lei alega “estado de calamidade pública e a desordem institucional dos poderes executivo, legislativo e judiciário” e diz que não há fiscalização ou punição pelos conselhos e órgãos competentes.

O decreto-lei prevê a prisão de autoridades judiciárias que admitirem ações apontando a inconstitucionalidade do tribunal. Também apresenta ao presidente da República a opção de “convocar a população por meio de mídias sociais, rádio e televisão para apoio ao referido decreto-lei”.

Ficariam sob fiscalização do tribunal:

  • Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior Eleitoral, Tribunal Superior do Trabalho e Tribunal de Contas da União;
  • Ministério Público Federal, Ministério Público dos Estados e Conselho Nacional de Justiça;
  • Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais Eleitorais e Tribunais Regionais do Trabalho;
  • Senadores e deputados federais e estaduais;
  • Governadores, secretários estaduais e prefeitos;
  • Delegados de polícia e juízes de direito;
  • Membros do Conselho dos Tribunais de Contas dos Estados e dos Municípios.

OAB: Decreto não é constitucional

O artigo 2º da Constituição afirma que os três poderes que constituem o Estado são o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. As leis são criadas pelo Legislativo, que têm seus membros eleitos pela população. Ao Executivo, cabe estabelecer ações para que as leis sejam cumpridas. O Judiciário, por sua vez, deve decidir quem tem razão nos conflitos que surgirem na sociedade.

Pela lei, os poderes devem ser “independentes e harmônicos entre si”. Ou seja: um não pode se sobrepor ao outro. A separação de poderes e a independência deles é prevista em cláusula pétrea — o que significa que não pode ser modificada.

O presidente da OAB-SP, Caio Augusto Silva dos Santos, vê como “absolutamente inconstitucional” a proposta de criação do Tribunal Constitucional Militar, ainda mais com poder de determinar a prisão de autoridades que o contestarem.

“Nos parece muito claro que a tentativa desta sugestão é uma tentativa de usurpação dos poderes constituídos, porque cada qual tem a sua competência. Decretar prisão é competência do Judiciário. Nenhum outro órgão pode se sobrepor a essas circunstâncias”, afirmou em entrevista ao Comprova.

O decreto-lei, quando aplicável, foi uma exceção que permitiu ao Executivo apresentar normas em regime de urgência ou emergência. “Os decretos-leis e regulamentos são normas para complementar leis que já existem”, explicou. No entanto, normas do Executivo, como o caso de Medidas Provisórias, não podem “ir além do que a lei autoriza” — neste caso específico, criar um órgão com atuação superior ao Judiciário. Até porque, a aprovação seria a violação de uma cláusula pétrea, algo que não poderia ser modificado na Constituição.

“Não tem a possibilidade de isso ser impulsionado por um decreto legislativo, porque o poder do presidente da República não chega a essa possibilidade”, observou. As assinaturas coletadas pelo site só representariam “pressão popular”, de acordo com Santos, embora não façam diferença por esbarrar em uma cláusula imutável.

A alegação de que não há fiscalização do Judiciário também não procede. Santos citou a criação do Conselho Nacional de Justiça, outro órgão previsto pela Constituição, “criado para controlar e apresentar ações importantes no âmbito do poder Judiciário”.

Quem é o autor da postagem?

Autor da postagem, André Basílio mantém um perfil no LinkedIn no qual se apresenta como consultor em gestão empresarial na Tr3de International Business.

No Facebook, onde circula o post sobre o decreto-lei, Basílio fez publicações de conteúdos comprovadamente falsos. Em uma delas, diz que uma unidade de saúde de BH “recebe R$ 1.500 por dia por cada leito ocupado com paciente que chega com dengue ou com gripe, e que colocam esta pessoa como sendo suspeita de COVID-19”. Conteúdo semelhante já foi desmentido pelo Comprova.

Outro post foi marcado pelo Facebook como conteúdo falso.

Outra postagem indica que ele se candidatou a deputado federal por Minas Gerais nas eleições de 2018. Em uma busca no DivulgaCand, site do TSE com informações sobre candidaturas, conferimos que ele concorreu pelo Patriota naquele ano. Não conseguiu a quantidade de votos para se eleger, mas ficou como suplente — o que significa que pode substituir um deputado titular do mandato de forma temporária ou definitiva.

O Comprova enviou uma mensagem a Basílio no Facebook, mas não obteve retorno até a publicação desta verificação.

Quem é o responsável por formular o decreto?

Marcos David Figueiredo de Oliveira é advogado. O Comprova acessou seu cadastro na OAB Nacional e conferiu que ele possui registro no Mato Grosso e também um cadastro suplementar em São Paulo. Em ambos os estados, ele apresenta situação regular. No seu perfil do LinkedIn, consta que é diretor jurídico na Marcos David Figueiredo Advogados Associados.

Ele é o criador do site Moraliza, que traz, majoritariamente, posts e vídeos atacando a Justiça brasileira, como a publicação intitulada “Falência do Judiciário comprovada!”. A página apresenta um perfil em que Oliveira é apontado como sobrinho do general de divisão Nicanor Presídio de Figueiredo, que seria parente do último presidente do Brasil durante o período da ditadura militar, João Batista Figueiredo (1979-1985). O Comprova conferiu na Biblioteca Nacional, acervo digital de jornais do país, e encontrou o nome de Nicanor Presídio de Figueiredo na de 23 de junho de 1934 do Jornal do Brasil, em que ele é anunciado como futuro oficial de saúde do corpo do Exército. Em outra notícia do mesmo jornal, datada de 11 de agosto de 1988, o general é envolvido em uma confusão com uma operação do Detran. No entanto, não foi possível localizar nada que mencionasse o parentesco dele com o ex-presidente Figueiredo.

Oliveira ficou conhecido por expor, na década de 1990, um caso de fraudes de títulos da dívida externa brasileira, convertidos em investimentos no país de forma ilegal. Em 1993, ele havia sido contratado para conseguir a liberação de títulos da dívida externa para o banco Paribas (posteriormente BNP Paribas), mas acabou entrando com processo judicial contra a instituição por não receber os honorários. Por meio das disputas na Justiça, foi descoberto que o valor adquirido com os títulos havia retornado para o exterior ficando com uma empresa de paraíso fiscal. Em 1996, a Polícia Federal abriu um inquérito para investigar o caso, levantando informações a respeito de operações supostamente ilegais no Banco Central. O caso é citado por Oliveira como justificativa para a criação do Moraliza, afirmando ter o objetivo de denunciar sentenças ilícitas do Judiciário.

O advogado também coleciona polêmicas. Em novembro de 2015, ele entrou com o pedido de suspeição de uma juíza, após a audiência de um caso em que ele se desentendeu com a magistrada e a promotora, alegando que magistradas mulheres “cometem mais erros” e declarou que mulheres têm “agressividade excessiva, em razão da disfunção hormonal causada pela TPM gerando a autodestruição”. O caso tramita em sigilo, mas houve ampla repercussão em coletivos ligados a questões de gênero.

Acusado de desacato e injúria pela história mencionada acima, é alvo de um processo que tramita no Tribunal de Justiça de São Paulo desde 2016. O processo, que também corre em sigilo, foi encontrado pelo Comprova ao pesquisar o nome de Oliveira na busca processual do site do TJ-SP, disponível para o público. Com base no número do processo e nas informações a respeito da Vara onde tramita, conseguimos encontrar no Diário de Justiça do estado uma publicação, de 21 de fevereiro de 2020, afirmando que o advogado não havia sido localizado para responder às acusações. Segundo a movimentação processual do TJ-SP, em 10 de março de 2020, o desembargador do caso determinou a suspensão do processo até que Oliveira seja judicialmente encontrado. “Diante do exposto, suspendo o processo e o prazo prescricional (…) Façam-se as devidas anotações e comunicações, aguardando-se o comparecimento espontâneo do réu ou dados que possibilitem localizá-lo em arquivo”, diz. Com isso, o prazo de prescrição também é suspenso.

Já em 28 de março de 2018, o site do TJ-SP publicou um texto afirmando que Oliveira agrediu verbal e fisicamente dois magistrados do Fórum da Comarca de Itatiba. Ele teria acusado uma juíza de fraude, dizendo-se “fiscal de todos os juízes do Brasil” e afirmou que daria voz de prisão a ela. Segundo a nota, o juiz diretor do fórum teria sido chamado para interceder e, ao confrontar Oliveira, teria sido empurrado. Um boletim de ocorrência foi registrado pelos dois magistrados contra o advogado.

O que diz o autor do texto?

No primeiro contato, por telefone, antes que fosse possível fazer qualquer pergunta, Marcos David Figueiredo de Oliveira sugeriu ao Comprova que lesse antes um texto que ele publicou em seu site, intitulado “Breves considerações sobre a constitucionalidade do decreto-lei que cria o Tribunal Constitucional da Ordem Institucional (TCOI)”.

Neste texto, ele defende que o presidente da República pode “promulgar as leis“. E continua: “Ora, quem faz leis é o Poder Legislativo. Entretanto, em estado de anormalidade esse direito está implícito nas atribuições do Presidente da República atuando como chefe de estado e comandante supremo das Forças Armadas, em razão do regime presidencialista”. Sem explicar, ele finaliza a resposta com “Regra de hermenêutica jurídica”.

Questionado se o seu texto não fere a Constituição, já que promulgar e fazer leis não são a mesma coisa, ele, basicamente, repetiu o texto: “promulgar as leis significa ordenar oficialmente a publicação de uma lei. Só quem ordena a publicação de uma lei tem competência para legislar”.

Informado sobre a posição da OAB, que afirmou que decretar prisão é competência do Judiciário e nenhum outro órgão pode se sobrepor a essas circunstâncias, Oliveira disse ser “muita infantilidade da OAB, porque as prisões serão decretadas através de um Tribunal Constitucional legalmente constituído”.

Ao Comprova, Oliveira disse ter criado o decreto-lei “em face da desordem institucional, da insegurança jurídica e do estado de calamidade pública”. Em seu site, afirma ainda que “o tribunal é criado para acabar com desvios e corrupção de autoridades que são protegidas pela lei para terem autonomia e segurança em suas funções, mas, quando autoridades abusam dessa proteção, a ordem democrática é destruída e a governabilidade é perdida e quem sofre é a população”.

Procurado novamente, o presidente da OAB-SP, Caio Augusto Silva dos Santos, reiterou que a proposta de Oliveira é inconstitucional. “Isso existia lá atrás, em outros momentos, mas não no atual ordenamento constitucional. Ele quase que propõe o presidente com o poder de decretar o que quiser, baixar o Ato Institucional, AI-5, de novo. Aí não existe no ambiente constitucional de hoje”, afirmou.

“O que ele propõe é uma quebra do sistema democrático. Ele propõe que o presidente da República assuma o comando de tudo e desrespeite os demais poderes. Isso é ruptura constitucional, isso é revolução”, acrescentou Santos.

Santos explicou novamente que o papel do Executivo não é o de criar leis: “O veículo para o presidente da República legislar, baseado em duas expressões, urgência e emergência, é a medida provisória (…) quem legisla é o Legislativo, e o Legislativo pode rejeitar a medida provisória. E aí ela perde a eficácia”.

Por fim, acrescentou que as Forças Armadas “devem estar à disposição dos três poderes para controlar a ordem”, sem restrição específica ao comando do presidente da República.

Convocação e “libertação”

No dia 15 de julho, Oliveira enviou ao Comprova, via WhatsApp, uma mensagem convocando as pessoas a assinarem o texto a partir do dia 16 de julho. É o mesmo texto que está em seu site. “Participe desse momento histórico onde pela primeira vez um Presidente da República fará o desejo do povo! Você guardará uma cópia do requerimento que assinou para conhecimento de suas futuras gerações, como prova de que participou do movimento que restabeleceu a ordem no País”, escreveu.

Segundo Oliveira disse ao Comprova, ele vai colher assinaturas (ou “votos”, como ele escreveu) até 6 de setembro. Questionado sobre a validade das assinaturas, o advogado afirmou que “o presidente Jair não estará pedindo a validação do decreto-lei porque não necessita disso, como exposto. Apenas pediu apoio à população para destacar e realçar sua autoridade como comandante supremo das Forças Armadas. Não se trata de referendo ou plebiscito, que é da iniciativa do Congresso Nacional”.

O texto do “decreto-lei” é datado de 7 de setembro. Questionado sobre o porquê da data, ele afirmou ser “o dia da nossa liberdade, de fato”.

Por que investigamos?

Nesta terceira fase do Comprova, o projeto retoma o monitoramento e a verificação de conteúdos suspeitos que obtenham grande alcance sobre políticas públicas no âmbito do governo federal. É o caso do vídeo em que André Basílio apresenta o texto de Marcos David Figueiredo de Oliveira, que teve 448 mil visualizações e 46 mil compartilhamentos só no Facebook até o dia 16 de julho.

O conteúdo, encaminhado por leitores do Comprova, circula no momento em que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) está envolvido em manchetes por ter participado de atos pró-golpe militar, sugerido o uso da Força Nacional em protestos contra seu governo e se desentendido com o STF.

O Boatos.org desmentiu, no ínicio de julho, que o decreto-lei tivesse sido implementado por Bolsonaro.

Usando cinco vezes o nome “Constituição Federal” e 55 a palavra “constitucional” em seu texto, Oliveira fere a Carta Magna brasileira ao defender a criação de um tribunal “com plenos poderes para julgar todas as autoridades do país”. Com o conteúdo em questão, Oliveira e Basílio tentam colocar as conquistas obtidas pelos brasileiros com a Constituição de 1988 em risco.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Política

Investigado por: 2020-07-16

Site usa texto sobre boa aprovação de Lula para tratar de apoio a Bolsonaro

  • Falso
Falso
Site publicou texto descrevendo uma suposta pesquisa na qual o presidente da República teria 64% de aprovação, mas era um plágio de reportagem de 2008 sobre a popularidade do ex-presidente Lula
  • Conteúdo verificado: Texto publicado no site Notícias de Direita afirmando que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) teria 64% de aprovação

É falso que pesquisa recente do Datafolha tenha apontado 64% de aprovação do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). O texto publicado pelo site Notícias de Direita, em 13 de julho deste ano e depois retirado do ar, afirmava que houve “recorde de aprovação” do governo atual, mas se trata, na verdade, de cópia de uma matéria do portal G1 de setembro de 2008. A reportagem original mostra os números de aprovação do segundo governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e não de Bolsonaro.

Na realidade, a última pesquisa publicada pelo Datafolha, realizada nos dias 23 e 24 de junho, mostra que apenas 32% dos brasileiros aprovam a gestão de Bolsonaro – ou seja, consideram ela “ótima” ou “boa” –, enquanto 44% acreditam que ela é “ruim” ou “péssima”.

Como verificamos?

O Comprova buscou trechos da matéria publicada no site Notícias da Direita no Google. Um dos primeiros links que surgiram foi da reportagem do portal G1, do Grupo Globo, com um texto quase idêntico, mas com o nome do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Depois disso, procuramos as últimas pesquisas publicadas pelo Datafolha no site do instituto.

Verificação

O texto publicado pelo site Notícias de Direita é plágio de uma matéria publicada pelo portal G1 em setembro de 2008. A reportagem original mostra, na verdade, os números de aprovação do segundo governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). As informações foram copiadas quase palavra por palavra.

Há poucas diferenças, como o nome dos presidentes e a data da publicação (originalmente a pesquisa de 2008 foi feita no mês de setembro). No texto do site Notícias de Direita, a “popularidade” de Jair Bolsonaro é justificada pelo “bom desempenho na pandemia”. No original, do G1, a avaliação positiva do ex-presidente petista é atribuída ao bom desempenho da economia.

Veja comparação abaixo:

Na época em que o texto original do G1 foi publicado, em setembro de 2008, 64% dos entrevistados consideravam o governo petista “ótimo” ou “bom”, 28% consideravam “regular” e 8% consideravam “ruim” ou “péssimo”. Além disso, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é o presidente que teve a melhor avaliação de toda a série histórica do Datafolha atingindo 83% de aprovação no final do segundo mandato, em dezembro de 2010.

Pesquisas recentes do governo Bolsonaro

A última pesquisa publicada pelo Datafolha, realizada nos dias 23 e 24 de junho, mostra que 32% dos brasileiros consideram que Jair Bolsonaro (sem partido) estava fazendo um governo ótimo ou bom, enquanto 44% acreditam que gestão do presidente era ruim ou péssima. Outros 23% consideram a gestão regular.

Desde o começo do mandato, o número de pessoas que desaprovam o governo Bolsonaro cresceu, enquanto os que aprovam o governo continua na mesma faixa. A primeira pesquisa Datafolha realizada no começo de abril mostrava Bolsonaro com 33% de ótimo/bom, 33% de regular e 30% de ruim/péssimo.

Gráfico:

No dia 15 de junho, o cientista político e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Cesar Zucco publicou um artigo na revista piauí em que analisou 127 pesquisas de opinião de diferentes institutos de pesquisa publicadas entre 10 de janeiro de 2019 e 9 de julho deste ano. De acordo com a análise, o número de pessoas que acreditam que Bolsonaro está fazendo um governo “ótimo” ou “bom” está caindo desde a posse — como mostram também os números do Datafolha. Além disso, utilizando um algoritmo capaz de comparar o resultado de pesquisas de opinião diferentes, Zucco mostra que Bolsonaro estaria com uma aprovação na faixa dos 25%, ainda menor do que a mostrado pelo Datafolha.

Por que investigamos?

O Projeto Comprova verifica conteúdos suspeitos que viralizam na internet e nas redes sociais. Políticas públicas do governo federal são parte do escopo do projeto e, portanto, o mesmo ocorre com a percepção pública sobre a Presidência.

De acordo com o CrowdTangle, ferramenta de monitoramento de redes sociais, o link com a informação falsa investigada aqui teve mais de 12,5 mil interações apenas no Facebook, rede pela qual mais circulou.

Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.

A Agência Lupa, o Aos Fatos e o Boatos.org também desmentiram a existência de tais resultados em pesquisa Datafolha sobre a popularidade de Bolsonaro.

Saúde

Investigado por: 2020-07-14

Receita de “medicina natural” não combate a covid-19

  • Falso
Falso
Não há comprovação científica da eficiência de uma receita natural associada a medicamentos para a covid-19 publicada nas redes sociais. O post investigado pelo Comprova usa indevidamente foto de um infectologista que não reconhece o texto como seu
  • Conteúdo verificado: Texto publicado pela página “Alertando a Cidade” no Facebook explica a ação do coronavírus em três fases e recomenda o uso de uma receita natural combinada com medicamentos para o combate da covid-19, nos primeiros quatro dias da contaminação do vírus.

Uma publicação que circula nas redes sociais, desde 10 de junho, engana ao aconselhar uma receita de “medicina natural” para combater os sintomas da covid-19. O texto ressalta que o vírus passaria por “fases de ataque”, antes de ocorrer o risco de morte. Ainda no mesmo texto, há uma recomendação de medicamentos naturais, que seriam eficientes para combater o vírus “nos primeiros quatro dias de contaminação”.

O texto não está assinado e o nome do responsável pela receita não é revelado. A publicação usa a foto de um homem com máscara, que seria um profissional de saúde. A foto utilizada é de um infectologista da Paraíba, no nordeste brasileiro. O especialista não tem relação alguma com o texto e a receita não tem provas científicas de cura. Os responsáveis pela página foram procurados pelo Comprova, mas até agora, não responderam às tentativas de contato.

Como verificamos?

Para fazer a verificação da imagem utilizada no post, foi utilizado o Google Imagens, uma ferramenta de busca reversa que faz a localização de imagens por comparação, semelhança ou igualdade na internet. A única foto que aparecia disponível era a imagem da publicação falsa.

Como o primeiro levantamento não foi bem sucedido, foi utilizado o Bing Image Match, que identificou a imagem como sendo compatível com o frame (imagem) do vídeo usado no Twitter do Jornal Nacional, telejornal noturno da TV Globo.

Localizada a publicação no microblog do telejornal, foi detectado que a imagem era a mesma do depoimento de Fernando Chagas, que foi ao ar na edição do dia 13 de maio do JN.

Após a busca inicial no Bing Image Match, a ferramenta passou a direcionar para o site Globoplay, onde está hospedado o depoimento em vídeo do infectologista.

Após a identificação, um nova rodada de buscas foi realizada por meio de ferramentas como Google, para acessar páginas como a do Conselho Regional de Medicina, Currículo Lattes, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e de notícias locais, no Estado da Paraíba, para levantar informações biográficas, profissionais e autorais sobre o médico foi realizada e, logo depois, foi agendada uma entrevista por vídeo com o especialista.

Já para o levantamento de informações a respeito das medicações hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina, foi feita uma pesquisa básica no Google diretamente nas páginas da Organização Mundial da Saúde, Organização Pan-Americana da Saúde e Ministério da Saúde do Brasil. Nessas páginas foram levantados documentos, protocolos e estudos oficiais sobre os medicamentos citados e pesquisados como possibilidades terapêuticas para a covid-19. O Comprova também entrou em contato com a Sociedade Brasileira de Infectologia, e realizou uma entrevista com um médico indicado pela entidade para confirmar a veracidade das informações que constavam no “receituário”.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 14 de julho de 2020.

Verificação

Homem da foto é médico infectologista

O homem mostrado na publicação é o médico-infectologista e farmacêutico Fernando Martins Selva Chagas. Ele é diretor-geral do Complexo Hospitalar de Doenças Infecto-contagiosas Dr. Clementino Fraga, localizado em João Pessoa, capital da Paraíba. Chagas foi nomeado em abril deste ano, na unidade que é considerada uma referência para casos de covid-19 naquela região.

A imagem do médico surgiu a partir de um depoimento que ele fez na edição do Jornal Nacional, da TV Globo, no dia 13 de maio. A foto foi copiada de uma captura de tela do depoimento e utilizada na publicação enganosa na rede social.

Procurado pelo Comprova, Fernando Chagas confirma que a imagem é dele. Na entrevista, Chagas explica que no período da pandemia ele tem dado várias entrevistas para vários órgãos de imprensa para prestar serviço à sociedade sobre o coronavírus.

Além disso, o especialista ressalta que nunca prescreveria online algo “absurdo” como foi colocado na publicação. “Sempre penso as prescrições, elas são feitas individualmente, para cada pessoa. A gente considera a idade, peso, uma série de características. É importante ver o paciente; é importante retornar ao paciente. Você imagina a quantidade de pessoas expostas às ações dos medicamentos e substâncias porque estão lendo isso daí?!”, respondeu indignado.

Sobre as fases do vírus, o infectologista afirma que existem etapas do avanço da doença, porém não é como foi colocado na publicação enganosa. A ideia, segundo o especialista, é entender os sintomas para que seja possível atuar com mais eficiência no uso dos medicamentos.

“É uma forma conceitual a respeito da doença, na verdade, para gente entender alguns momentos que se pode primeiro entender os sintomas, sinais e sintomas da doença; segundo, que em alguns momentos que se pode atuar com algumas fases específicas de medicamentos. É basicamente isso”, conclui.

Sobre a receita natural

A receita verificada pelo Comprova menciona uma série de medicamentos e métodos “naturais” que devem ser usados em cada uma das “fases da infecção”. Além de drogas como a hidroxicloroquina e a ivermectina, são mencionadas dicas de medicina natural, que segundo o próprio texto, devem ser usadas de forma complementar.

Entre as sugestões estão o chá de cascas de alho, suplementos de vitamina D, uma mistura de mel, açafrão e outras ervas. Cada elemento seria usado para combater um dos sintomas da covid-19. Para abaixar a febre, por exemplo, a publicação recomenda “banho e/ou toalha molhada no corpo”.

Segundo o médico infectologista e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia, Alexandre Naime, a combinação de medicamentos e compostos de “medicina natural” apresentada no texto que verificamos não tem qualquer eficácia cientificamente comprovada no tratamento de pacientes da covid-19.

“Não existe, como já comprovado inclusive para outras patologias, benefício de “shot” de vitamina D; nada de coquetel de imunidade funciona”, afirma Naime. Um dos trechos do “receituário” indica a ingestão de suplemento de vitamina D como forma de “aumentar a imunidade”.

A suposta ligação entre a infecção pelo novo coronavírus e a deficiência de vitamina D no organismo é um tema constante de boatos que circulam pelas redes pelo menos desde fevereiro. O Ministério da Saúde também já desmentiu informações a respeito.

O açafrão e o alho, outros dos supostos ingredientes do tratamento “natural” sugerido pelo “receituário”, já foram objeto de uma checagem publicada pelo Estadão, em Abril; outra mensagem, de março, que associava a mistura de limão com bicarbonato à cura da covid-19 foi verificada e classificada como falsa pelo Comprova.

O fitoterápico Ginkgo Biloba, indicado na prescrição como anticoagulante, tem, na bula padrão divulgada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, contraindicações relacionadas ao uso por pacientes “com coagulopatias ou em uso de anticoagulantes”. O próprio medicamento indicado para “afinar e oxigenar o sangue”, a Aspirina, poderia ter efeitos indesejados na mistura com o fitoterápico.

Além da ausência de comprovação de qualquer eficácia no tratamento do novo coronavírus, a Anvisa ainda alerta que, ao contrário da crença popular, as plantas medicinais e os medicamentos fitoterápicos podem provocar “diversas reações como intoxicações, enjoos, irritações, edemas (inchaços) e até a morte, como qualquer outro medicamento.”

Sobre a hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina

No caso da hidroxicloroquina, a Organização Mundial de Saúde (OMS) informou no dia 4 de julho deste ano que aceitou a recomendação do Comitê Diretor Internacional do Estudo de Solidariedade – grupo de estudos clínicos, que participam 5.500 pacientes, em 21 países – para interromper os estudos sobre hidroxicloroquina devido aos baixos resultados ou avanços na redução da mortalidade de pacientes com covid-19 hospitalizados. “Esses resultados provisórios mostram que a hidroxicloroquina e o lopinavir/ritonavir produzem pouca ou nenhuma redução na mortalidade de pacientes com covid-19 hospitalizados quando comparados ao padrão de atendimento. Os investigadores do estudo de solidariedade interromperam os estudos com efeito imediato”, explica a declaração, no site da OMS.

Sobre o uso do antiparasitário ivermectina, a Organização Mundial da Saúde, por meio da Organização Pan-Americana da Saúde (OMS/OPAS) publicou uma recomendação em 22 de junho, apontando que apesar de alguns resultados positivos em testes laboratoriais, com células infectadas, ainda não há resultados suficientes e seguros para indicar o medicamento antiparasitário para o tratamento da covid-19 em humanos. “A ivermectina está sendo usada incorretamente para tratar a covid-19, sem nenhuma evidência científica de sua eficácia e segurança no tratamento desta doença”, conclui o estudo da OPAS. No dia 10 de julho, a Anvisa se manifestou oficialmente contra o uso da ivermectina no tratamento da covid-19.

Em relação à azitromicina, apesar da Organização Mundial da Saúde (OMS) não apontar um único remédio ou tratamento eficaz contra a covid-19, o Ministério da Saúde brasileiro elaborou uma cartilha sobre orientações para uso de medicamentos, lançada pela pasta em junho, orienta o uso da azitromicina nos primeiros cinco dias de tratamento da doença, combinado com a hidroxicloroquina.

O Comprova publicou em 8 de julho uma investigação que aponta ser falso um texto publicado em uma página de rede social em que o uso dos medicamentos como azitromicina e ivermectina seriam úteis sem consulta médica.

Por que investigamos?

O Projeto Comprova verifica conteúdos suspeitos que viralizam na internet e nas redes sociais. Quando o assunto está relacionado à pandemia do novo coronavírus, a checagem é ainda mais relevante, já que a saúde das pessoas pode estar em risco.

No caso do receituário, a publicação na página “Alertando a Cidade” já ultrapassava os 100 mil compartilhamentos, além de dezenas de milhares de curtidas e comentários. Além de não citar os possíveis efeitos colaterais relacionados ao uso sem prescrição dos medicamentos listados, supostos métodos de combate à covid-19 podem dar aos leitores uma falsa sensação de segurança, que faz com que abandonem práticas realmente recomendadas pelas autoridades de saúde, como o distanciamento social, o uso de máscaras e a higiene das mãos.

Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.

Saúde

Investigado por: 2020-07-10

Vídeo compara, erroneamente, pesquisadores que estudam covid-19

  • Enganoso
Enganoso
Autora de vídeo usa índice de forma equivocada, cita positivamente pesquisador criticado por estudo polêmico, distorce comentário de outro e erra ao dizer que pesquisadores da Organização Mundial da Saúde (OMS) não têm citações acadêmicas
  • Conteúdo verificado: Vídeo afirma que mídia dá destaque a cientistas irrelevantes só pelo fato de serem pesquisadores e deixa de lado outros com influência no meio científico

Um vídeo que circula em redes sociais, publicado em 28 de junho, engana ao comparar o índice-H — métrica que avalia a quantidade de citações de artigos científicos de um determinado pesquisador — de cientistas que estudam o novo coronavírus. Na gravação, a atriz e apresentadora Karina Michelin diz que “tem um monte de gente publicando estudos de cientistas que não são relevantes, somente pelo fato de eles serem cientistas” e critica a escolha de alguns deles para entrevistas a veículos de imprensa.

Embora o índice citado na publicação seja verdadeiro, a comparação entre pesquisadores de áreas distintas e idades diferentes é equivocada. O Comprova também apurou com acadêmicos que se trata de uma métrica que quantifica qualquer menção ao pesquisador — inclusive críticas ao seu trabalho.

“O que a gente está vendo aí nessa pandemia é cientistas de pouca relevância terem tanto peso aí na internet e conseguirem que a mídia descredite aqueles que tem um H-index [índice-H] altíssimo e uma influência enorme no mundo científico”, diz Karina no vídeo.

Os três pesquisadores citados positivamente pela autora do vídeo são estrangeiros. Um deles, o francês Didier Raoult, é alvo de severas críticas por um estudo sobre a eficácia da cloroquina. Michael Levitt, britânico e ganhador do prêmio Nobel de Química, previu que o Reino Unido teria 50 mil mortes e fez críticas à política de lockdown – mesmo aplicando tal medida, o país já ultrapassou 44 mil mortes. Karl Friston, também britânico, foi citado de forma distorcida por Karina. Ela fala ainda de pesquisadores da Organização Mundial da Saúde (OMS) e afirma que eles não têm índice-H, o que não é verdade.

Como verificamos?

Dois dos conteúdos viralizaram pelos perfis de Karina Michelin, autora do vídeo, no Instagram e no Facebook. Pesquisamos o nome dela no LinkedIn para descobrir qual a sua profissão e, por meio do chat do Facebook, entramos em contato para pedir mais informações sobre o vídeo. Ela nos respondeu na rede social.

A pesquisa sobre o índice-H começou em um dos comentários feitos no vídeo de Karina. Entre as mensagens, uma leitora sugere que o embate entre ciência e mídia é algo que “quem inventa só quer aparecer” e indica o link de uma notícia da revista Fapesp questionando a importância dada ao índice. O Comprova procurou a assessoria de imprensa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pediu o contato de pesquisadores que pudessem explicar como o índice-H funciona. Conversamos com o professor Abel Packer, coordenador de projetos da Fapesp e um dos fundadores da Biblioteca Eletrônica Científica Online (SciELO), e com o professor Edgar Dutra Zanotto, da Universidade Federal de São Carlos, por mensagens de WhatsApp e por e-mail. Zanotto nos enviou artigos sobre o tema.

Ainda sobre o tema de publicação de artigos científicos, recuperamos uma entrevista com o médico Reinaldo Guimarães, vice-presidente Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), feita para uma verificação sobre a Organização Mundial da Saúde (OMS).

A equipe do Comprova buscou por referências acadêmicas e dos pesquisadores citados no vídeo, e por menções em veículos conhecidos para entender quem são. Também levantou os índices-H de cada um deles nas plataformas Google Scholar e Semantic Scholar, que compilam pesquisas e estudos e apresentam a quantidade de citações que cada cientista recebeu.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 10 de julho de 2020.

Verificação

Quem é a autora do vídeo?

Autora do vídeo que viralizou, Karina Michelin diz ser atriz, jornalista e apresentadora. No perfil do LinkedIn, apresenta cargo de produtora e apresentadora de um programa sobre Miami. No Facebook, onde mantém um perfil aberto, já publicou vídeos e textos questionando atitudes adotadas em meio à pandemia e recomendações feitas pela Organização Mundial da Saúde. Um dos compartilhamentos é de um texto sobre a OMS ter declarado que a transmissão de covid-19 a partir de assintomáticos é “muito rara”. A fala, investigada pelo Estadão, foi distorcida e diz respeito a alguns estudos em andamento.

No vídeo, Karina afirma que “tem um monte de gente publicando estudos de cientistas que não são relevantes, somente pelo fato de eles serem cientistas” e introduz ao espectador o “índice-H”, que mede a produção de pesquisadores com base na quantidade de citações que recebem em estudos.

Questionada pelo Comprova sobre qual o critério utilizado na escolha dos cientistas comparados, Karina afirmou ter sido clara no vídeo ao “expor os valores, mostrando que nem tudo funciona na base da moral e da ética, principalmente no mundo científico. MUITOS cientistas têm interesses escusos e a mídia sem saber ou sabendo, acaba defendendo esses interesses sem que isso seja ciência.”

Na troca de mensagens, pelo chat do Facebook, Karina disse ter citado cientistas que a mídia divulgou e apresentam “índices irrelevantes”, comparados a pesquisadores “que não tiveram espaço no Brasil, mas sim no resto do mundo”.

O que é o índice-H?

O índice-H é um indicador de desempenho de pesquisadores de acordo com a quantidade de artigos científicos publicados por cada um. Também conhecido como H-index, foi proposto pelo físico argentino Jorge Hirsch, professor da Universidade da Califórnia, San Diego. O índice é calculado contabilizando quantos papers um pesquisador publicou e quantas quantas vezes cada um desses artigos foi citado por outras publicações. “Hirsch propôs o índice-H, que é o número H de publicações que foram citadas pelo menos H vezes, como um critério para avaliar o impacto de um cientista em sua comunidade”, explicou o professor Edgar Dutra Zanotto, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), autor de um artigo que trata das limitações do índice para a comparação entre cientistas.

O professor Abel Packer, um dos fundadores da biblioteca científica SciELO, acredita que a o índice-H é importante, “desde que se considere que o valor comparativo do índice-H aplica-se a pesquisadores da mesma área temática e com suficiente número de documentos publicados para alcançar o mesmo desempenho. No limite, serve para comparar cientistas gêmeos”, exemplifica. Zanotto segue na mesma linha: “Hoje é aceito que o índice-H é fortemente dependente do campo [de atuação de cada um], criando uma barreira para uma avaliação e comparação justa da performance científica de indivíduos ou instituições de áreas diferentes”, completou.

É o que Karina Michelin faz no vídeo, ao comparar ganhador do prêmio Nobel de Química Michael Levitt, de 73 anos, com o biólogo brasileiro Átila Iamarino, de 36. Neste exemplo, há ainda uma amostra da limitação do índice índice-H: a diferença de idade. “O uso de indicadores bibliométricos baseados na prolificidade e na visibilidade (…) enfrenta múltiplos desafios, como diferenças entre a quantidade de publicações de cada um, por exemplo, por causa de diferenças de idade e de estágios na carreira; diferenças no tamanho da área de atuação de cada um, culturas de publicação e citação em diferentes comunidades; e o questionamento, em aberto, sobre se grande visibilidade significasse também grande qualidade e relevância”, informa o professor Zanotto.

Outro problema é que, mesmo quando um artigo é mencionado de forma crítica e questionado, as citações ainda contam para aumentar o índice-H do pesquisador. Foi o que aconteceu com o francês Didier Raoult, autor de um estudo polêmico sobre o uso da cloroquina e da azitromicina para o tratamento da covid-19 (leia mais abaixo). As auto-citações também entram na conta, então quanto mais um cientista remete a artigos que ele próprio escreveu, maior seu índice.

Desde que foi criado, em 2005, o índice-H passou a ser supervalorizado na academia e é visto quase como um cartão de visita entre cientistas. Mas pesquisadores como o professor Zanotto propõem formas mais amplas de avaliação. “Nós defendemos o retorno a uma avaliação mais completa, baseada em critérios como o número de convites para publicar em periódicos de reputação, convites e palestras em congressos de prestígio (…) e o impacto social e econômico do trabalho de pesquisa”, enumera.

Quantidade x Qualidade

Em entrevista ao Comprova, o médico Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), explicou que os pesquisadores que mais apresentam publicações são os que conseguem mais investimentos para realizar novas pesquisas. Ou seja: a quantidade de estudos apresentados não necessariamente implica em melhor qualidade. Ele também relatou que há diversas retratações de pesquisas ocorrendo ao longo dos anos em diversas áreas.

“A gente tem tido, nos últimos dez, quinze anos, uma epidemia de retratações de pesquisas em vários campos. Não só medicina. Engenharia, física, enfim, estudos que passam por revisão por pares, revistas publicam, alguém tenta repetir o experimento que levou à publicação e não consegue repetir aquilo. Se muitos pesquisadores não conseguem reproduzir, retiram o artigo, porque outros pesquisadores não conseguiram chegar à conclusão. Isso não tem nada a ver com covid, existe até um portal, uma base de dados importante [que mostra isso] que chama Retraction Watch.”

Quem são os pesquisadores?

Michael Levitt

Michael Levitt recebeu o prêmio Nobel de Química em 2013 pelo “Desenvolvimento de Modelos Multi-escala para Sistemas Químicos Complexos” — sem ligação com epidemiologia. Nascido na África do sul, trabalhou na Inglaterra e hoje faz parte do quadro da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Seu índice-H é de 92, com 40.370 citações desde 1981.

Logo nos primeiros meses da pandemia, Levitt ganhou destaque na imprensa ao calcular o impacto que a covid-19 teria no Reino Unido, baseado em dados de contágio na China. Estimou que seriam 50 mil mortes no país, se nenhuma medida de isolamento fosse adotada. “Acredito que o verdadeiro vírus é o vírus do pânico”, disse ao jornal britânico Telegraph. Levitt defende o uso de máscaras e o distanciamento social, embora seja contra políticas mais severas como o lockdown, e também afirma ser possível alcançar uma “imunidade de rebanho” — quando um grande número de pessoas infectadas acabaria imunizando toda a população.

“O problema com epidemiologistas é que eles sentem que seus empregos servem para aterrorizar a população a fazer lockdown e isolamento social. Então você diz que vai acontecer um milhão de mortes e quando só ocorrem 25 mil você diz ‘que bom que ouviram o meu conselho’. Isso aconteceu com o ebola e com a gripe aviária, é parte da loucura”, acredita.

De acordo com a Universidade Johns Hopkins, até o dia 10 de julho o Reino Unido é o sétimo país em casos confirmados de covid-19, 289.677, e o terceiro em número de mortes: 44.735. O número é próximo ao calculado por Levitt. Mas, ao contrário do que ele prega, o país passou três meses em lockdown.

Átila Iamarino

Átila Iamarino é uma das principais vozes de alerta para o perigo da pandemia de covid-19 no Brasil. Biólogo, fez doutorado em microbiologia e pós-doutorado em virologia na Universidade de São Paulo. Também fez pós-doutorado na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Seu índice-H é de 10, somando 1.394 citações desde 2011.

Fundador da maior rede de blogs de ciência em língua portuguesa, o ScienceBlogs Brasil, dedica-se à divulgação científica no YouTube e em uma coluna no jornal Folha de S.Paulo. Iamarino defende medidas de isolamento social para conter o avanço da covid-19 e critica o uso de medicamentos sem eficácia científica comprovada, como a cloroquina. Sua participação no programa de entrevistas Roda Viva, em março, bateu recorde de audiência.

Karl Friston

Karl Friston não é “especialista em covid”, como descrito no vídeo. Ele é neurocientista, membro da Royal Society (tradicional instituição britânica voltada para o estudo científico) e usa modelos matemáticos para explicar processos biológicos. Foi o criador do “mapeamento paramétrico estatístico” (conhecido pela sigla SPM), uma estatística usada na análise de atividades cerebrais monitoradas por imagens — como ressonâncias e tomografias.

O que ele vem fazendo é aplicar fórmulas estatísticas em dados da covid-19 para tentar prever cenários sobre pessoas que podem vir a ser infectadas. Friston foi descrito como “especialista em covid” no título de uma entrevista concedida ao jornal britânico The Guardian, na qual ele mesmo diz não ter expertise na área: “É uma questão a se fazer aos epidemiologistas. Eles são os especialistas”, disse à publicação. Ele é consultor do Independent Sage, órgão de estudos do novo coronavírus que atua de forma alternativa ao oficial do governo, o Grupo de Conselho Científico para Emergências (conhecido pela sigla Sage).

No vídeo, Karina afirma que Friston “afirma que a maioria das pessoas são imunes ao coronavírus. Diz que 80% das pessoas não são suscetíveis ao vírus”. No entanto, a fala do neurocientista foi distorcida. Em entrevista à UnHeard, Friston projeta que há entre 50% e 80% de pessoas não-suscetíveis ao vírus no Reino Unido — e não em todo o mundo. Durante a entrevista, deixa claro que a taxa de suscetibilidade, na sua visão, é diferente em cada país e não necessariamente significa imunidade ao novo coronavírus. Ele também ressalta, mais de uma vez, que trabalha com probabilidades e que depende de dados como quantidade de testes feitos e quantidade de óbitos pela covid-19.

O índice-H de Friston é de 234. Ele já teve 250.415 citações registradas desde 1994 e tem 60 anos.

Eurico Arruda

Eurico Arruda, descrito apenas como pesquisador no vídeo, é médico e professor de virologia do Departamento de Biologia Celular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Ele foi presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) entre 2014 e 2015 e é membro da Academia Americana de Microbiologia. Atualmente, coordena estudos sobre o novo coronavírus no Centro de Pesquisa em Virologia (CPV).

No vídeo, Karina afirma: “Eurico Arruda, pesquisador, diz que os coronavírus não induzem a imunidade duradoura e protetora, mas ele reza para estar enganado”.

Em entrevista ao Estadão, em 3 de maio, ele afirmou que para alguns tipos de vírus a imunidade adquirida é permanente, como no caso do sarampo. Mas isso não se aplica aos vírus respiratórios, que são diversos e não guardam “imunidade cruzada” entre eles. “Por isso você passa a vida inteira, vive 80 anos, tendo resfriados. Você não se imuniza contra eles”, explicou. Uma imagem da entrevista é mostrada no vídeo de Karina ao se referir ao médico.

Estudioso da família dos coronavírus desde antes da pandemia do Sars-CoV-2, Arruda declarou mais de uma vez que a presença de anticorpos no organismo não significa imunidade da doença. No caso do novo coronavírus, ele explicou que ainda não se sabe se ele possui capacidade de persistência, ou seja, de permanecer latente no organismo mesmo após o paciente se recuperar.

Arruda declarou à National Geographic, em abril, que outros coronavírus persistem no corpo. “Significa que, mesmo depois que a infecção aguda passou e que o paciente está curado, o vírus não se acabou. Fica ali por um tempo bastante longo até, que pode ser de alguns anos. Se esse novo coronavírus persistir, pode ser que o paciente se cure, não tenha mais sintoma, mas siga eliminando o vírus e sendo fonte de contágio para outras pessoas.”

Um estudo coordenado por ele analisa um medicamento usado no tratamento de pessoas com Aids no combate à covid-19.

Arruda tem um índice-H de 33 e soma 4.041 citações desde 1994.

Didier Raoult

O microbiologista francês Didier Raoult é descrito no vídeo como “um dos pesquisadores franceses mais citados e virou o mais polêmico”. Raoult dirige o Instituto Hospitalar Universitário Méditerranée Infection (IHU), fundado por ele, e já foi premiado com o Grand Prix Inserm, prêmio científico de destaque na França, por pesquisas sobre vírus constituírem um reino à parte. Conhecido por frases polêmicas, já disse que Charles Darwin, autor da teoria da evolução, “só escreveu bobagem”.

Em março deste ano, Raoult publicou um estudo afirmando que o uso da cloroquina teria curado 75% dos pacientes com covid-19 em seis dias. No entanto, seis dos 26 pacientes testados foram excluídos da pesquisa porque não completaram o tratamento. Desses, um morreu, três foram parar na UTI, outro desistiu por sentir náuseas e o último decidiu deixar o hospital.

O estudo foi alvo de críticas da revista Science, referência em pesquisas científicas, e seus resultados foram questionados e considerados incompletos. Muitas críticas apontaram que o estudo de Raoult não apresentava grupo de controle e que, por isso, os casos estudados eram isolados e que o tratamento com hidroxicloroquina não apresentava comprovação científica.

Em abril, a International Society of Antimicrobial Chemotherapy e a Elsevier, responsáveis pela revista que publicou o artigo, reconheceram a existência de questionamentos sobre o conteúdo e anunciaram um novo processo de revisão independente.

As polêmicas em torno da pesquisa de Raoult sobre a hidroxicloroquina já repercutiram em jornais brasileiros como Folha de S. Paulo e Estadão. A discussão também já esteve presente em checagens do Comprova sobre pesquisas que alegavam ataques à cloroquina e que alardeavam eficácia do uso da medicação em estudo.

O índice-H de Raoult é de 180. Aos 68 anos, ele já teve 157.174 citações registradas desde 1995. O perfil da Piauí diz que o cientista “se vangloria de um prodigioso número de publicações e citações, algo que, como dado estatístico objetivo, ele considera a melhor medida de seu próprio valor como pesquisador”. No entanto, o texto aponta que Raoult apresenta alta quantidade de publicações “porque assina seu nome em quase todos os artigos produzidos por seu instituto.”

João Viola

Descrito como pesquisador no vídeo, João Viola é médico, presidente do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) e pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (Inca). No vídeo, Karina afirma que ele disse que o “uso da cloroquina contra o covid-19 é perigoso, carece de evidência e tomou aspecto político e inesperado”. Ela se refere a um parecer assinado por Viola e outros integrantes da SBI em 18 de maio.

O texto menciona pesquisas realizadas com a hidroxicloroquina e afirma que “ainda é precoce a recomendação de uso deste medicamento na covid-19” pela falta de comprovação da eficácia da droga em casos de covid-19. O parecer também cita as controvérsias em torno da pesquisa coordenada por Didier Raoult, conforme apresentado anteriormente neste texto, e pede que se priorize investimentos em outras possibilidades de medicamentos para obter “maior número de terapias com potencial efetivo no tratamento da covid-19”.

A nota foi publicada três dias após o Ministério da Saúde anunciar que estava prestes a divulgar o protocolo para o uso da cloroquina em casos leves do novo coronavírus – desde março, a pasta previa o uso do medicamento para casos graves e críticos. O protocolo foi lançado em 20 de maio, dois dias depois da nota da SBI.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) já divulgou que ainda não existe vacina ou medicamento específico para prevenir ou tratar a covid-19, e que os tratamentos aplicados até o momento são para “aliviar os sintomas” dos infectados. No mesmo protocolo em que recomenda o uso da cloroquina para casos leves, o Ministério da Saúde ressaltou “que não existem evidências científicas robustas que possibilitem a indicação de terapia farmacológica específica para a covid-19”.

Viola possui um índice-H de 31, com 3.962 citações desde 1996.

Tedros Adhanom

Descrito no vídeo como “político, biólogo e pesquisador que não possui H-index”, Tedros Adhanom Ghebreyesus é etíope e formado em biologia, com mestrado em imunologia de doenças infecciosas e doutorado em saúde pública. Já atuou como ministro da Saúde da Etiópia (2005-2012) e também ministro das Relações Exteriores (2012-2016). Ele é alvo de diversas críticas em seu país, acusado de ter minimizado vários surtos de cólera entre 2006 e 2011, atrasando a adoção de medidas para tentar conter a crise.

Enquanto ministro, voltou a atenção à ampliação dos serviços públicos de saúde na Etiópia. Em 2009, foi eleito presidente do Conselho Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária.

Eleito para o cargo de diretor-geral da OMS em 2017, Adhanom contou com voto do governo brasileiro e tornou-se o primeiro africano eleito para chefiar o órgão. Também é o primeiro a ocupar o cargo sem formação médica.

No vídeo, Karina diz que o diretor da OMS não tem índice-H. Embora ele não tenha perfil acadêmico registrado no Google Scholar, apresenta um no portal Semantic Scholar. Aos 55 anos, Adhanom tem índice-H de 17, com 1.349 citações desde 1996.

Michael Joseph Ryan

Michael Ryan é diretor-executivo do Programa de Emergências da OMS e gerência emergências globais há quase 25 anos. Desde 1996 ele integra a unidade de resposta para ameaças de novas doenças e epidemias. Médico formado pela Universidade Nacional da Irlanda, em Galway, possui formação voltada para a área de epidemiologia.

Ryan foi coordenador operacional da resposta da OMS à epidemia de Sars (2003) e conselheiro sênior da iniciativa global para a erradicação da pólio (2013 a 2017).

Diferentemente do que afirma Karina no vídeo, ele nunca foi funcionário da Fundação Bill e Melinda Gates; ele trabalhou em parceria com a fundação durante ações para erradicação da pólio em países do Oriente Médio. A iniciativa também contou com a participação de outras organizações.

No vídeo, Karina afirma que Ryan “não possui h-index, mas é o diretor-executivo do programa de emergências da OMS e lidera a equipe responsável pela contenção e tratamento internacional da covid”. A informação não procede.

Assim como Adhanom, Ryan não tem perfil no Google Scholar, mas sim no Semantic Scholar. Diversos homônimos de Ryan também estão na plataforma. Para encontrá-lo, o Comprova buscou pesquisas feitas pela OMS com o nome de Michael Ryan e procurou por elas no site. Por meio da busca, foi possível localizar o perfil de Ryan.

Aos 55 anos, ele tem índice-H de 22, somando 1.645 citações desde 1974. Em mais de um ano, ele não apresentou nenhuma publicação.

Maria Kerkhove

A americana Maria Van Kerkhove é descrita no site da OMS como estudiosa de zoonoses e vírus respiratórios. Consultora técnica do órgão, atuou em análises durante o surto de Mers (outra doença provocada pela família dos coronavírus) e de H1N1.

No vídeo, a citação a Kerkhove se refere a uma fala sobre uma nova onda de infecções pelo novo coronavírus. “Já a doutora Maria Kerkhove é uma epidemiologista de doenças infecciosas e, sendo a principal pesquisadora da covid-19 da OMS, disse que virá uma segunda onda porque uma proporção menor de pessoas foi infectada do que se pensava inicialmente”, diz o vídeo.

Kerkhove já trabalhou no Imperial College de Londres, universidade referência na área científica, em um conselho que analisava, junto à OMS, casos de influenza, febre amarela, meningite, Mers-CoV e ebola. Ela ainda detém o título de professora honorária na instituição.

No currículo consta que também chefiou a força-tarefa de investigação de surtos no Centro de Saúde Global do Instituto Pasteur, na França, de onde saiu para integrar o quadro de consultores da OMS.

Em perfil da The Hill, ela relata que conversa diariamente com diversos acadêmicos que estudam o novo coronavírus e busca se inteirar de novas pesquisas sobre o tema. Ela também é integrante do Consise (Consórcio para Padronização da soroepidemiologia de Influenza), composto por um comitê que reúne membros de organizações em todo o mundo, tais como o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), agência sanitária dos Estados Unidos, e o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC).

Embora o Comprova não tenha encontrado seu perfil acadêmico no Google Scholar, assim como Adhanom e Ryan, outros dois ligados à OMS, ela consta no Semantic Scholar. O índice-H de Kerkhove, com 43 anos, é de 33, somando 5.366 citações desde 2004.

Por que investigamos?

O Comprova verifica boatos, textos e vídeos sobre a covid-19, por entender que a desinformação pode custar vidas em meio a uma situação de emergência sanitária com a que enfrentamos neste momento. A pandemia já custou a vida de 69.184 brasileiros, segundo dados da Universidade John Hopkins do dia 10 de julho, e é o maior problema de saúde pública já enfrentado pelo país. Ainda assim o combate ao novo coronavírus virou tema de debates políticos entre os que defendem medidas rigorosas de isolamento social para evitar a disseminação da doença e aqueles que defendem a retomada da economia. Mesmo infectado pela covid-19, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é um defensor da volta à normalidade e do uso da cloroquina — medicamento sem eficácia comprovada para o tratamento da doença.

O Comprova já verificou outros conteúdos que questionavam a necessidade de isolamento social e criticavam as políticas de lockdown. Outra constante são as críticas à OMS, como em um vídeo que mostrava praças de Genebra lotadas, ou o texto que afirmava que a organização tinha se arrependido de parar as pesquisas com a cloroquina.

O vídeo verificado, em que a autora usa um índice de desempenho acadêmico para diminuir a importância daqueles que defendem políticas rigorosas contra a disseminação do SARS-CoV-19, viralizou rapidamente. Desde que foi publicado, no dia 28 de junho, foi visto 30,7 mil vezes no Instagram, 998 vezes no Youtube e teve 611 compartilhamentos e 373 interações no Facebook.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que apresenta uma informação fora de contexto e induz a uma interpretação equivocada.

Saúde

Investigado por: 2020-07-10

É falso que a África tenha controlado pandemia com ivermectina

  • Falso
Falso
Ao contrário do que afirmam vídeos publicados nas redes sociais, a pandemia de covid-19 não está sob controle no continente africano. Países da região aplicaram diversas medidas para tentar segurar o contágio
  • Conteúdo verificado: Vídeos dos médicos Álvaro Galvão (RO) e Rafael Freitas (PR) no YouTube defendem o uso profilático da ivermectina como tratamento para a covid-19, sob o argumento de que a medicação reduziu o número de casos graves da doença na África

É falso que a pandemia de covid-19 esteja sob controle na África por causa do uso preventivo da ivermectina, um medicamento contra vermes. Em vídeos publicados em seus canais do YouTube, os médicos Álvaro Galvão, de Rondônia, e Rafael Freitas, do Paraná, afirmam que o consumo profilático de ivermectina pode evitar sintomas e o agravamento da covid-19.

Até aqui, não há nenhuma comprovação científica de que a ivermectina seja um medicamento eficiente para tratar pacientes com covid-19. É o que afirmam o Ministério da Saúde, a Food and Drug Administration (FDA), autoridade sanitária dos Estados Unidos, e os próprios pesquisadores que estudam o uso da droga contra o vírus SARS-CoV-2 em laboratório.

A pandemia também não está sob controle na África. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a doença tem avançado numa velocidade acelerada no continente. A Etiópia, citada em um dos vídeos como um país que teria adotado pouquíssimas ações por causa do uso profilático da ivermectina, tomou diversas medidas para tentar controlar o contágio. As autoridades locais fecharam escolas e restaurantes, proibiram aglomerações, decretaram quarentena obrigatória para todos que chegassem ao país e decretaram estado de emergência por causa da pandemia.

A Marinha do Brasil também não aprovou um protocolo para o uso de ivermectina para tratar pacientes com covid-19, outra informação difundida em um dos vídeos.

Como verificamos?

A verificação foi dividida em três partes. Inicialmente, o Comprova buscou informações sobre a situação da pandemia no continente africano e, especialmente, na Etiópia – onde, segundo o médico Álvaro Galvão, os números da doença seriam bastante inferiores em comparação aos demais países. Para checar o número de casos, óbitos e testes realizados para identificar a doença na África foram utilizadas as bases de dados do Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e do Our World in Data, plataforma ligada à Universidade de Oxford, no Reino Unido.

A segunda etapa concentrou-se na investigação do uso da ivermectina no tratamento de pacientes com a covid-19. Foram consultados estudos científicos, notícias e outras verificações realizadas pelo Comprova sobre as relações do medicamento com a doença causada pelo novo coronavírus.

Por último, o Comprova entrou em contato com os autores dos vídeos. Tentou localizar Álvaro Galvão por meio do celular da clínica que aparece em seus vídeos no YouTube. E enviou mensagem para Rafael Freitas pelo e-mail cadastrado na conta dele no YouTube e via Twitter.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 10 de julho de 2020.

Verificação

Situação da África

Até a data de fechamento deste texto, 10 de julho, o continente africano contabilizava 543.136 casos e 12.474 óbitos causados pela covid-19, segundo os dados do Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças (Africa Centres for Disease Control and Prevention).

Em 8 de julho, quando a África superou a marca de 500 mil casos da doença, a OMS alertou que a pandemia estava se espraiando em uma velocidade acelerada, apesar de esse crescimento não ser uniforme em todo o continente. O informe da organização afirma que os casos mais que dobraram no último mês em 22 países africanos e que em dois terços do continente há transmissão comunitária do vírus, aquela em que não é mais possível localizar a origem da infecção. Segundo os dados da OMS, em menos de cinco meses, as mortes causadas pelo novo coronavírus superaram as causadas pela epidemia de ebola na África Ocidental, que ocorreu entre 2014 e 2016.

No mesmo informe, a OMS afirmou que 71% dos casos de covid-19 no continente africano estão concentrados em cinco países: Argélia, Egito, Gana, Nigéria e África do Sul. E que 80% dos infectados possuem 60 anos ou menos.

Em uma entrevista coletiva realizada em 9 de julho, John Nkengasong, diretor do CDC africano, endossou o alerta da OMS pedindo atenção ao crescimento do número de casos e óbitos no continente. De acordo com Nkengasong, os dados sobre a doença em muitos países africanos são insuficientes ou não são confiáveis – o que, segundo ele, dificulta o controle da pandemia.

O diretor destacou, também, a necessidade de aumentar a capacidade de testagem da população no continente. De acordo com os dados da plataforma Our World in Data, a maior parte dos países africanos não possui capacidade para testar todos que apresentam sintomas da doença.

A covid-19 na Etiópia

Ao comentar no vídeo enganoso os números da covid-19 na Etiópia, o médico Álvaro Galvão destaca que o aparente sucesso do país no controle da doença estaria exclusivamente relacionado ao uso profilático da ivermectina para o tratamento de outras doenças por grande parte da população. O médico afirma que as únicas medidas tomadas pelas autoridades etíopes para frear a covid-19teriam sido “a lavagem de mãos, o distanciamento social e o controle de temperatura que nos aeroportos”.

Essa informação é falsa. Após a confirmação, em 13 de março, do primeiro caso de covid-19, as autoridades da Etiópia rapidamente anunciaram uma série de medidas para tentar controlar o avançoda doença no país. Três dias depois do registro do primeiro paciente infectado pelo novo coronavírus, o governo instituiu o fechamento de escolas, a proibição de aglomerações e o apelo à população para a prática do isolamento social.

Em 20 de março, novas medidas foram anunciadas, como a obrigatoriedade do cumprimento de quarentena para todos aqueles que desembarcassem no país, a interrupção dos voos da maior companhia aérea etíope, a Ethiopian Airlines, para 30 países e o fechamento de bares e restaurantes. No dia 8 de abril, o governo decretou estado de emergência em todo o país.

As autoridades sanitárias da Etiópia não indicam a ivermectina para a prevenção ou tratamento da covid-19. O portal do governo que reúne as informações sobre a doença no país afirma que, apesar de várias drogas estarem em estudo, até o momento não existe um medicamento eficaz para os pacientes com o novo coronavírus e destaca que, para aqueles que desenvolvem sintomas graves, são administrados os chamados tratamentos suporte.

O portal alerta que a prevenção é o método mais eficaz para controlar o contágio da covid-19 e endossa as recomendações da OMS, como lavar as mãos com frequência, evitar tocar o nariz e a boca, usar máscaras e manter distância das demais pessoas.

Outro dado falso que o médico Álvaro Galvão apresenta no vídeo diz respeito ao número de casos e óbitos causados pela covid-19 na Etiópia até o dia 31 de maio. Segundo ele, até essa data o país contabilizava 731 casos e 6 mortes. O boletim oficial do Ministério da Saúde etíope revelou números maiores: 1.172 caos e 11 mortes.

Para compreender se a população etíope utiliza a ivermectina de modo profilático para o tratamento de outras doenças, conforme apontado no vídeo, a reportagem procurou a Embaixada da República Democrática Federal da Etiópia no Brasil, o Ministério da Saúde da Etiópia e o Instituto Etíope de Saúde Pública. Até o fechamento deste texto os contatos não houve retorno.

Até a publicação desta verificação, a Etiópia registrou 7.120 casos e 124 óbitos causados pela covid-19. Os dados são da Universidade Johns Hopkins.

Os médicos

Segundo o site do Conselho Federal de Medicina, Álvaro Luis Galvão Ignácio é especialista em cirurgia vascular. Atualmente, tem registro médico em Rondônia, mas já atuou em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Em seu site pessoal, ele conta que se formou em medicina em Porto Alegre e foi militar, com a patente de tenente médico, quando serviu no Hospital de Guarnição de Porto Velho. Atualmente, trabalha no Day Hospital Center Clínica, do qual é sócio, na cidade de Ji-Paraná, no interior de Rondônia. Em 2019, Álvaro recebeu o título de cidadão do estado da Assembleia Legislativa. No YouTube, ele já fez outros vídeos sobre a pandemia, como os intitulados “O uso da hidroxicloroquina” e “Diferenças do isolamento vertical e horizontal”.

Rafael Sousa de Freitas tem registro ativo no Conselho Regional de Medicina do Paraná desde 2014. Na descrição do seu canal do YouTube, ele se apresenta como cristão, formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), escritor, palestrante motivacional e treinador de alta performance nos estudos. No Twitter, se descreve como de direita e “pró-vida”. No Instagram, declara apoio ao presidente Jair Bolsonaro e ao presidente americano Donald Trump. Seus vídeos sobre a experiência como médico trazem títulos como “Homem engasga por esconder os dentes” e “Chamei mulher obesa de elefante”.

Nenhum deles respondeu às tentativas de contato do Comprova por WhatsApp, e-mail ou Twitter.

A ivermectina e a covid-19

A ivermectina está registrada na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como “medicamento contra infecções causadas por parasitas”. Segundo a Food and Drug Administration, órgão de vigilância sanitária dos Estados Unidos, a ivermectina é liberada para humanos no tratamento de vermes intestinais e de parasitas tópicos, como piolho e rosácea. Além disso, o remédio é usado para o tratamento de vermes em diversas espécies de animais. Possíveis efeitos colaterais incluem vômito, diarreia, dor estomacal, erupções cutâneas, eventos neurológicos ( como convulsões, tontura e confusão), queda repentina da pressão arterial e danos ao fígado.

O Ministério da Saúde afirma que “ainda não existem evidências clínicas suficientes que permitam tecer qualquer recomendação quanto ao uso de ivermectina em pacientes com covid-19”. A FDA adota o mesmo posicionamento.

Em abril, um estudo da Universidade de Monash, na Austrália, apontou pela primeira vez a possibilidade de a ivermectina atuar como inibidor in vitro do SARS-CoV-2. No início de junho, em e-mail enviado ao Comprova, o Departamento de Medicina, Enfermagem e Ciências da Saúde da instituição explicou que o estudo demonstra apenas a eficiência em laboratório e que “a ivermectina não pode ser usada em pacientes com covid-19 até que outros testes e ensaios clínicos tenham sido conclusivos em estabelecer a eficácia do medicamento em níveis seguros para dosagem em humanos”.

Em verificação do Comprova publicada no dia 8 de julho, o infectologista Marcelo Carneiro, professor da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e integrante da Associação Brasileira dos Profissionais em Controle de Infecções e Epidemiologia Hospitalar (Abih), reforçou que não está comprovada a eficácia da ivermectina em humanos. “Já está provado que as doses de ivermectina precisam ser extremamente altas para funcionar. Então, em laboratório ela funciona como antiviral. Mas não existem doses para humanos e, se existir, será extremamente tóxica”, explicou.

A Marinha

Álvaro Galvão diz que a Marinha brasileira desenvolveu um protocolo para uso da ivermectina e tratou pacientes com covid-19 com o medicamento. Em uma nota enviada por e-mail ao Comprova, o departamento de imprensa disse que produziu uma “minuta de proposta de protocolo”, mas que não está em uso. A Marinha disse ainda que adota em suas unidades “todos os protocolos clínicos e terapêuticos” divulgados pela OMS, pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa “a fim de orientar seus profissionais de saúde quanto às medidas de condução e de tratamento dos pacientes infectados pelo novo coronavírus no âmbito do Sistema de Saúde da Marinha”.

Por que investigamos?

O Comprova tem investigado conteúdos suspeitos sobre a pandemia que viralizam nas redes sociais. Como ainda não existem vacina ou cura, muitas das verificações têm sido sobre medicamentos que supostamente combatem a covid-19. O tema é de extrema importância porque a automedicação sem orientação médica, além de não curar o novo coronavírus, pode ser prejudicial para as pessoas e colocar a saúde delas em risco.

Nesse contexto, a ivermectina tem sido muito citada em conteúdos que sugerem o seu uso preventivo, ainda que não exista nenhuma comprovação científica da sua eficácia. No último mês, o Comprova já mostrou que não havia provas de que o medicamento funcionasse, que entrevistas sobre o remédio estavam sendo retiradas de contexto, e que as autoridades médicas não recomendam a automedicação.

Até o fechamento dessa verificação, os vídeos dos médicos Álvaro Galvão e Rafael Freitas tinham, juntos, 336.175 visualizações no YouTube. Eles também atingiram 4.639 e 3.162 interações no Facebook e Twiter, segundo a plataforma de monitoramento Crowdtangle.

Falso para o Comprova é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para modificar o seu significado original e divulgado de maneira deliberada para espalhar uma mentira.