Artistas não receberam dinheiro público para participar de ato político; valores de repasses à Cultura são públicos
- Política
- Recursos obtidos por Daniela Mercury e Wagner Moura são públicos, regulares e resultam de mecanismos legais de fomento à cultura.
Diferentemente do que alega vídeo publicado no TikTok, o governo federal não colocou sob sigilo repasses feitos por meio de editais e leis de incentivo à cultura a artistas que participaram dos atos contra a PEC da Blindagem e o projeto que anistia condenados pelos ataques de 8 de janeiro, realizados em 21 de setembro.
Na publicação, um homem exibe imagens da cantora Daniela Mercury e do ator Wagner Moura durante as manifestações ocorridas em Salvador (BA) e sugere que eles só teriam comparecido por terem recebido apoio do governo federal, uma vez que ela teria conseguido patrocínio da Caixa Econômica Federal, para o espetáculo “Uma Chica”, e ele, angariado R$ 17,5 milhões do Ministério da Cultura para a produção dos filmes “Agente Secreto” e “Marighella”, entre 2023 e 2025.
A verificação mostrou que os projetos dos dois artistas de fato foram contemplados com recursos públicos, mas não houve sigilo nem repasses feitos em desacordo com a lei. No caso de Daniela Mercury, o apoio não veio da Lei Rouanet (Lei nº 8.313/1991), mas de edital público do Programa de Ocupação dos Espaços da Caixa Cultural. Em resposta ao Comprova, a Caixa confirmou que a artista recebeu R$ 800 mil para o projeto “Daniela Mercury canta Chico Buarque”, valor referente a oito apresentações em Brasília e Salvador.
Essas informações não estão em sigilo. Elas constam tanto na plataforma de transparência da instituição como nos registros oficiais do programa, que listam o número de Pronac do projeto, a empresa proponente e as cidades de realização. Portanto, é incorreto afirmar que houve ocultação dos valores, uma vez que o patrocínio é público e o resultado do edital, assim como outros dados, podem ser consultados no site da própria instituição.
Quanto a Wagner Moura, não houve repasse via Lei Rouanet, uma vez que a legislação não permite financiamento de longas-metragens, apenas curtas e médias, conforme explicou o Ministério da Cultura ao Comprova.
As produções mencionadas tiveram autorização de captação pela Lei do Audiovisual (Lei nº 8.685/1993), mecanismo específico para o cinema, e a soma de autorizações nesse período de aproximadamente R$ 17,5 milhões, conforme consta no portal de consulta de projetos audiovisuais da Ancine, que permite ver os valores captados por cada obra beneficiada.
Esses recursos não são transferidos automaticamente: dependem de captação junto a patrocinadores, aplicação conforme o projeto e posterior prestação de contas. Portanto, é enganoso afirmar que houve ocultação de valores ou direcionamento irregular. O Ministério da Cultura também ressaltou que, além das leis de incentivo fiscal, existem outros instrumentos de fomento geridos pela Funarte, como programas de memória, difusão, formação e chamadas públicas.
Desde o início da atual gestão, mais de 80 editais foram lançados para contemplar projetos em todas as regiões do país, incluindo iniciativas como o Prêmio Mestras e Mestres das Artes.
Vale ressaltar que a Lei Rouanet funciona por meio de renúncia fiscal, permitindo que empresas e pessoas físicas destinem parte do Imposto de Renda devido a projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura, sem repasse automático a artistas.
A Lei do Audiovisual, também baseada em renúncia fiscal, é restrita ao cinema e às séries e permite aportes como patrocínio, com retorno de imagem, ou investimento, que dá ao incentivador participação nos lucros da obra.
Já a Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022) foi criada em caráter emergencial após a pandemia e destinou R$ 3,86 bilhões do orçamento federal ao setor cultural, repassados a estados e municípios, que lançaram editais para selecionar projetos locais, sendo que as iniciativas tinham que ser executadas até o fim de 2024.
Por fim, a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (Lei nº 14.399/2022) tem caráter permanente e prevê até R$ 3 bilhões por ano repassados pela União a estados, municípios e Distrito Federal, para aplicação em editais ou em ações culturais diretas, como festas populares, manutenção de espaços e apoio a agentes culturais.
Em todos os casos, os recursos dependem de apresentação de projetos, seleção em editais, monitoramento e prestação de contas. Não existe repasse automático de “milhões” a artistas individuais, como sugere o vídeo.
Quem criou o conteúdo investigado pelo Comprova
O conteúdo investigado foi publicado em 21 de setembro por um perfil no TikTok com mais de 48 mil seguidores, dedicado a críticas ao governo federal e alinhado a pautas da direita. Até o dia 22, o vídeo acumulava mais de 178 mil visualizações.
O Comprova entrou em contato com o criador para questionar quais seriam suas fontes. Nas respostas, ele afirmou que as informações poderiam ser encontradas em registros públicos, como o Diário Oficial e a página de patrocínios da Caixa, mas não apresentou links nem documentos que comprovassem os valores mencionados.
Em outro momento, diante de nova solicitação de comprovação, respondeu de forma evasiva, dizendo apenas “se vira cara, você não é jornalista”.
O perfil solicita doações via Pix para custear sua ida a manifestações políticas, o que reforça o vínculo com mobilização partidária e ajuda a explicar o interesse em disseminar esse tipo de conteúdo.
Por que as pessoas podem ter acreditado
O vídeo utiliza conteúdo enganoso e descontextualização para sustentar a acusação de que artistas estariam recebendo milhões em recursos públicos em troca de apoio político ao governo federal.
A narrativa é construída com base em meias-verdades: os artistas de fato acessaram mecanismos públicos de incentivo à cultura — o que é legal e regulamentado —, mas o vídeo distorce esse fato ao omitir que tais recursos não são repassados automaticamente, exigem aprovação de projeto, captação junto a patrocinadores e prestação de contas.
A peça ainda recorre a apelos emocionais e ao uso da falsa equivalência, ao comparar os incentivos culturais (que têm natureza e função distintas) com benefícios sociais como o Bolsa Família e o auxílio-gás. Essa comparação tem o claro objetivo de instigar ressentimento social e reforçar uma visão de “privilégios para artistas e migalhas para o povo”.
O autor do vídeo, alinhado a pautas da direita e ativo em mobilizações políticas, demonstra interesse em polarizar o debate e minar a credibilidade de opositores ao governo anterior, promovendo uma visão distorcida do funcionamento das políticas públicas de fomento à cultura.
O uso de linguagem sarcástica (“uma bagatelazinha”, “pão e circo”) reforça o caráter persuasivo e manipulador da mensagem. Trata-se, portanto, de uma peça típica de desinformação com viés ideológico, que ignora deliberadamente os fatos para inflamar a opinião pública.
Fontes que consultamos: Caixa Econômica Federal, Ministério da Cultura, plataforma Salic, Portal da Transparência da Caixa, plataforma da Ancine e as leis nº 8.313/1991 (Lei Rouanet), nº 8.685/1993 (Lei do Audiovisual), nº 195/2022 (Lei Paulo Gustavo) e nº 14.399/2022 (Política Nacional Aldir Blanc).
Por que o Comprova investigou essa publicação: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas, eleições e golpes virtuais e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: É comum que postagens nas redes sociais usem as leis de incentivo à cultura como alvo de desinformação. O Comprova já verificou em outras ocasiões conteúdos que distorciam o funcionamento da Lei Rouanet e de outros mecanismos de fomento. Em março de 2023, mostramos que Ludmilla não receberia R$ 5 milhões da Rouanet, como afirmava um tuíte. Em novembro do mesmo ano, verificamos que um produtor cultural não viajou a Portugal com dinheiro da lei, diferentemente do que alegava um vídeo. Em abril de 2024, checamos uma sátira que dizia que um ator importava alimentos da Europa com verba da Rouanet. Já em julho de 2024, desmentimos que Malu Mader e a TV Globo tivessem recebido recursos para uma novela. Também esclarecemos, em setembro de 2024, a diferença entre valores aprovados e os efetivamente captados por projetos, e em agosto do mesmo ano mostramos que Anitta, Diogo Nogueira e outros artistas não receberam “milhões” da Rouanet para apoiar Lula.