Entenda por que Lei da Anistia de 1979 não se aplica aos condenados pelos atos de 8 de janeiro
- Comprova Explica
- Posts desinformam ao comparar anistiados de 1979 a presos por envolvimento nos atos antidemocráticos de 2023.
Conteúdo analisado: Publicações que comparam os anistiados durante a ditadura militar com os condenados pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023.
Comprova Explica: A Lei da Anistia de 1979, que concedeu liberdade a presos políticos e pessoas exiladas que se opunham ao regime militar, tem sido alvo de discussões nas redes sociais. Isso porque bolsonaristas têm se baseado nela para pedir que sejam anuladas as condenações dos envolvidos nos ataques golpistas às sedes dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, bem como de Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados na trama golpista.
Inclusive, o Projeto de Lei 2162/23, que concede o perdão aos participantes de manifestações reivindicatórias de motivação política desde o dia 30 de outubro de 2022, foi aprovado em regime de urgência pela Câmara dos Deputados no último dia 17.
Apesar da corrida para isentar os condenados pelos atos, a cientista política e coordenadora do Curso de Graduação em Sociologia e Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), Tathiana Chicarino, aponta que as comparações são equivocadas.
Em 1979, o país passava por uma ditadura, que cassou direitos políticos dos cidadãos e promoveu repressão contra aqueles que se mostravam contra o regime.
“Você não tinha um amplo exercício de cidadania. Portanto, direitos, cidadanias gerais, direitos civis, direitos políticos, direitos sociais também, mas nesse caso, mais especificamente, direitos civis e direitos políticos, eles não são tratados em sua completude. Em alguns momentos, eles são completamente eliminados, como por exemplo, a nossa possibilidade de votar”, opinou.
O que não é o caso atual. Em 2022, o pleito ocorreu normalmente, com a eleição de presidente, governadores, senadores e deputados estaduais e federais.
“Embora tenha havido eleições durante a ditadura, ela não tinha eleição para a presidência da República, então o Figueiredo não tinha legitimidade como presidente nesse caso, porque a gente está falando em contexto de ditadura. Isso precisa ficar muito claro para a gente não ter comparações equivocadas do contexto que a gente tem hoje, que estamos em democracia”, pondera a especialista.
Ainda de acordo com o advogado civilista Vitor Moya, é um equívoco comparar a Anistia de 1979 com a do projeto de lei de agora, já que a da época da ditadura foi criada num contexto de redemocratização do Brasil e serviu para reparar, mesmo que de forma limitada, as injustiças sofridas pelos perseguidos políticos.
“Sendo assim, o Estado brasileiro reconheceu [naquela época] que essas pessoas sofreram uma injustiça histórica. A anistia, para as pessoas que sofreram essa repressão abusiva, foi um ato de reparação: devolver direitos, reintegrar servidores, pagar indenizações, dar pensão às famílias de quem foi morto ou ficou inválido”, reforça.
Os Anos de Chumbo
Os anos de 1970 foram marcados pela fase mais repressiva da ditadura militar, que começou em 1964. Entre 1968 e 1974, período apelidado de “Anos de Chumbo”, houve um endurecimento radical do regime após a edição do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, que autorizava o presidente da República, na época, o general Emílio Médici, a fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos políticos, suspender direitos políticos de cidadãos, entre outras medidas.
Com a intensificação das perseguições e o aumento de presos e exilados políticos, setores da sociedade civil se mobilizaram para promover uma lei de anistia. Em 1975, foi criado o Movimento Feminino pela Anistia, sob liderança de Therezinha Zerbini, e em 1978, o Comitê Brasileiro pela Anistia, com representação em diversos estados e em outros países, reivindicando uma anistia “ampla, geral e irrestrita”, de acordo com o relatório final do Comitê da Verdade.
“Quando a gente fala da movimentação da sociedade civil, temos uma série de opositores do regime militar que são exilados e há uma campanha para a volta desses exilados. Essa campanha vai ser muito forte. Então, a anistia inicialmente é pensada para que esses exilados, essas pessoas que tiveram que sair do seu país por conta de um regime autoritário, possam retornar”, explica Tathiana.
Composição do Congresso na época
O contexto político da época era baseado em uma forte intervenção dos militares no processo político. O Ato Institucional nº 2 (AI-2), aprovado em 1965, causou a dissolução dos partidos políticos existentes. Restaram apenas dois: a Aliança Renovadora Nacional (Arena), agremiação do governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), chamado de “oposição consentida”.
O segundo, no entanto, era alvo de forte vigilância do regime. “Quando aconteceu esse processo de transição, os militares tentaram controlar o tempo todo a formação dos governos e da oposição”, diz Tathiana.
Tathiana ainda destaca o papel do MDB na aprovação da Anistia, embora a proposta tenha vindo originalmente da sociedade civil. “O MDB é o único partido existente em 1979 que traz essa discussão também. No entanto, a configuração de forças no Congresso não é a mesma de hoje. [Na época,] você tinha um controle e, dependendo do contexto, o fechamento dele. Então, fecha Congresso, caça parlamentar”, pondera.
Aprovação da lei
Com as discussões, a Lei da Anistia foi sancionada em 28 de agosto de 1979 pelo então presidente João Baptista Figueiredo. Ela determinou o perdão:
- A pessoas que cometeram crimes políticos ou conexo com estes;
- A pessoas que cometeram crimes eleitorais;
- Aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta;
- De fundações vinculadas ao poder público;
- Aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares;
O decreto também excluiu aqueles que haviam sido condenados pelos crimes de terrorismo, assalto, sequestro, homicídio e atentado pessoal. No entanto, ao promover a denominada “abertura lenta, gradual e segura”, o regime militar também vinculou a anistia aos crimes cometidos pelos agentes da ditadura. “Não podendo conter a luta pela anistia que vinha da sociedade civil, os militares arquitetaram uma anistia que sobretudo os beneficiava. Assim, construíram uma narrativa histórica que quem fosse rever essa anistia estaria comentando revisionismo histórico e, ao mexer no passado, traria conflitos à tona”, explicou Tathiana.
Contextos diferentes
Vitor aponta ainda que o que ocorreu no dia 8 de janeiro de 2023 não foi um ato de resistência democrática, mas foi uma tentativa de golpe de Estado. A lógica, neste caso, é oposta: os presos nos atos antidemocráticos não são vítimas do Estado por pensarem diferente, são pessoas que atacaram o próprio Estado de Direito e tentaram interromper a democracia que garante os direitos de todos, segundo Moya.
“Foi uma ação coordenada por lideranças políticas derrotadas na eleição, para derrubar um governo eleito democraticamente e impedir o funcionamento das instituições (Congresso, STF, Presidência). Pessoas e lideranças participaram de invasões, depredações e incitação contra a ordem democrática. E agora, algumas delas pedem ‘anistia’ para não responderem criminalmente”, destaca.
Para ele, confundir esses dois contextos é desrespeitar a memória das vítimas da ditadura e enfraquecer a democracia.
Fontes consultadas: Senado, o advogado civilista Vitor Moya e a cientista política Tathiana Chicarino.
Por que o Comprova explicou este assunto: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas e eleições. Quando detecta nesse monitoramento um tema que está gerando muitas dúvidas e desinformação, o Comprova Explica. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Para se aprofundar mais: O debate sobre as condenações dos envolvidos nos atentados do dia 8 de janeiro de 2023 se tornou alvo de desinformação nas redes sociais. O Comprova já explicou que a cabeleireira que pichou estátua da Justiça é acusada de cinco crimes, não só de vandalismo, e que pipoqueiro e sorveteiro não estavam trabalhando quando foram presos em frente ao QG do Exército.
Outras checagens sobre o tema: O Estadão também fez matérias explicando a Lei da Anistia de 1979 e detalhando quais foram os crimes perdoados pelo decreto.