Política

Investigado por: 2025-02-19

Documentos apresentados por senador não são sigilosos e nem provam que ‘modelo de censura’ americano foi aplicado no Brasil

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Enganoso
Documentos da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não provam que “o modelo de censura americano foi aplicado no Brasil” para manipular as eleições de 2022. A afirmação foi feita nas redes sociais pelo senador Marcos do Val (Podemos-ES). Ele sugere, sem provas, que os documentos são sigilosos – quando na realidade são públicos – e faz sua afirmação sem apresentar provas. O senador ainda acusa o Projeto Comprova de “filtrar informações” como parte do suposto modelo. A USAID e o TSE não estão envolvidos na criação do Comprova, no seu financiamento ou na orientação do seu trabalho, que segue metodologia descrita em seu site e evidenciada em cada verificação.

Conteúdo investigado: Vídeo em que o senador Marcos do Val afirma ter provas claras da intervenção da USAID nas eleições presidenciais brasileiras de 2022. Segundo ele, a interferência se deu com a aplicação no Brasil, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do “modelo de censura” preconizado pela USAID. Uma das diretrizes, afirma Do Val, era a atuação de uma coalizão para checagem de fatos, “filtrando informações que deveriam chegar ao público”. Por trás da iniciativa, segundo o senador, estaria a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).

Onde foi publicado: Facebook e Instagram.

Conclusão do Comprova: Em um vídeo compartilhado nas redes sociais, o senador Marcos do Val (Podemos-ES) sugere estar revelando documentos secretos que contêm “provas claras” de que “o modelo de censura americano foi aplicado no Brasil” para interferir nas eleições presidenciais de 2022. “Me deram a autorização para falar”, diz ele, acrescentando que guardava o material, em silêncio, desde 2023.

Os documentos, porém, são públicos e podem ser lidos por qualquer pessoa com acesso à internet. O documento produzido pela USAID é de 2021 e traça um panorama da desinformação a nível global, como forma de ajudar seus funcionários e parceiros a compreender seus princípios básicos e a como lidar com o fenômeno, reduzindo os danos de seus impactos. Já o documento do TSE delineia esforços para reduzir os efeitos da desinformação no processo eleitoral brasileiro.

Ambos os documentos citam a checagem de fatos como um dos aspectos para combater a desinformação. Do Val equipara a verificação à “censura”, mas não apresenta provas a respeito de suas afirmações. Como mostra o histórico da atividade do Comprova, o que pode ser verificado em links disponíveis na internet, o projeto não censura ou filtra conteúdos na internet.

O Comprova procurou Marcos Do Val. Não houve retorno até o fechamento desta verificação.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. A publicação teve mais de 3,4 mil visualizações e 3,7 mil curtidas até o dia 19 de  fevereiro.

Fontes que consultamos: O Comprova fez buscas na internet para localizar e ler os documentos mostrados no vídeo. Ao encontrar o link de publicação do documento da USAID no site da agência, mencionado em um arquivo em pdf, recuperou-o no site Web Archive, plataforma que grava e arquiva páginas da internet para consulta posterior, mesmo quando o site original não estiver acessível online. Esse é o caso do site da USAID, que não está ativo. Foram consultados dados sobre os programas de financiamento da agência norte-americana e publicações dos sites do Projeto Comprova e da Abraji. O senador Marcos do Val foi procurado.

Documentos são públicos

No vídeo, Marcos do Val mostra dois documentos que, segundo ele, trazem “provas claras” de que as eleições foram manipuladas. Ele dá a entender que os documentos são sigilosos. Ao se referir a um deles, diz que “a USAID nem imaginava que a gente ia chegar até isso”. O documento, porém, não é sigiloso. Ele foi disponibilizado no site da entidade, como mostra gravação de página no Web Archive. Também é possível consultá-lo em pelo menos dois outros sites (aqui e aqui). A página da USAID está fora do ar, após o início de uma investigação do governo de Donald Trump a respeito das atividades da agência.

O documento, chamado Disinformation Primer, algo como “Guia de Desinformação” em tradução livre, foi produzido pela agência. Ele não apresenta um “modelo de censura”. Como consta na página 1, trata-se de uma cartilha com o objetivo de ajudar funcionários e parceiros da USAID a compreender os princípios básicos da desinformação – como ela é difundida, por que é difundida e como reduzir os danos de seu impacto nas sociedades em todo o mundo.

O outro documento citado por Marcos do Val é intitulado “Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação no Âmbito da Justiça Eleitoral – Plano Estratégico Eleições 2022”. Ele também é público e está disponível no site do TSE. O programa foi instituído na Portaria nº 510, de 4 de agosto de 2021, com a “finalidade de enfrentar a desinformação relacionada à Justiça Eleitoral e aos seus integrantes, ao sistema eletrônico de votação, ao processo eleitoral em suas diferentes fases e aos atores nele envolvidos” (Art. 1).

Guia da USAID não contém ‘modelo de censura’

No vídeo, Marcos do Val diz que a comparação entre os documentos provaria que “o modelo de censura americano foi de fato aplicado no Brasil” para manipular as eleições. Ele menciona “coalizão para checagem de fatos, filtrando informações que deveriam chegar ao público”, como uma dessas “provas”. Neste momento, ele cita a página 52 do guia da USAID e a página 11 do documento do TSE. Segundo ele, a Abraji “estaria por trás dessa checagem de fatos”.

Como consta no site do Comprova, a Abraji é a entidade que mantém e lidera a iniciativa, uma coalizão atualmente composta por 42 veículos.

A partir da página 52, o guia da USAID lista, no tópico “Esforços de Programação Focados em Eleições”, um compilado de ações para reduzir a desinformação adotadas ao redor do mundo para defender a integridade de eleições democráticas. Dentre elas, “construir a capacidade dos corpos de gestão eleitoral para combater a desinformação durante os períodos eleitorais”.

É isso o que propõe o documento do TSE, que descreve, na página 11, o histórico das ações do órgão, desde 2017, para o enfrentamento dos efeitos da desinformação sobre o processo eleitoral.

O documento do TSE cita o guia da USAID dentre uma série de outras referências teóricas, produzidas por “organismos internacionais e por entidades internacionais e nacionais dedicadas ao estudo e ao enfrentamento da desinformação” (Pág. 16).

O fato de o TSE ter tomado medidas contra a desinformação e de a USAID ter feito um guia sobre desinformação não fornecem qualquer prova de que as ações descritas sejam ilegítimas ou tenham influenciado as eleições. Não indicam, também, a existência de alguma relação entre elas ou de “provas claras” de que “o modelo de censura americano foi de fato aplicado no Brasil”.

Programa do TSE não orienta checagem de fatos

O “Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação no Âmbito da Justiça Eleitoral” foi lançado inicialmente nas eleições de 2020. No documento, há previsão para organização de um fluxo de informações entre membros da Justiça Eleitoral e agências de checagem de fatos com o objetivo de verificar “possíveis conteúdos falsos relacionados ao Processo Eleitoral” (Pág. 26). Ainda na mesma página, o TSE destaca que “cada instituição de checagem terá absoluta independência em suas apurações e será responsável pelas checagens que realizar”.

A iniciativa, chamada “Coalizão para Checagem”, também integrou a versão do programa para as eleições de 2022. O material – que é o citado por Do Val no vídeo – descreve, na página 34, que “o ingresso de novas instituições de checagem na coalizão deve levar em consideração seu comprometimento e esforço com o enfrentamento à desinformação, além de aspectos como transparência, apartidarismo, ética jornalística, consistência no trabalho de checagem ao longo dos últimos dois anos, além da aplicação de uma política de correção clara e comunicada ao público”.

Em 2022, a parceria entre o TSE e as agências de checagem envolveu o Comprova. O projeto se chamou Confirma 2022 e sua existência era pública. Em 2023, a iniciativa foi premiada no evento GlobalFact10, realizado na Coreia do Sul. Por meio da parceria, eleitores podiam solicitar informações à corte via WhatsApp e, se houvesse uma verificação publicada a respeito daquele tema, poderiam receber esclarecimentos feitos com base nas verificações já publicadas.

Comprova não ‘filtra’ informações

No vídeo, Marcos do Val afirma a existência de uma “coalizão para checagem de fatos, filtrando informações que deveriam chegar ao público”, tendo por trás a Abraji. Apesar de não citar nominalmente o Comprova, é ao projeto de checagem de fatos liderado pela Abraji que ele se refere.

O Projeto Comprova, porém, não “filtra”, censura ou tira de circulação conteúdos que estão disponíveis na internet. Como descrito no site da iniciativa, o Comprova monitora as redes sociais e recebe de seus leitores sugestões de conteúdos suspeitos ou duvidosos. Aqueles que têm mais viralização são investigados e uma verificação é publicada, com uma de quatro etiquetas possíveis: Enganoso, Falso, Comprovado ou Sátira.

Esse conteúdo com os esclarecimentos é publicado no site do Comprova e pode ser republicado por qualquer veículo de imprensa.

Verbas da USAID

Como consta no site do Comprova, o projeto foi idealizado e desenvolvido pelo First Draft com a colaboração da Abraji, do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), do Google News Initiative e do Meta Journalism Project, e teve início em 2018. Não há, portanto, participação da USAID ou do TSE na fundação do Comprova.

Também não há qualquer envolvimento da USAID ou do TSE no financiamento do Comprova. Até 2024, o Google foi o patrocinador master do projeto, que ainda recebeu recursos da Meta e do WhatsApp.

Ao longo dos anos, o projeto recebeu outros aportes financeiros, dentre eles o da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil – e não da USAID, que é um outro órgão do governo norte-americano. Eles serviram para financiar os projetos +Comunidades, em 2020, no governo de Donald Trump, e +Redações, em 2022, no mandato de Joe Biden. A existência das duas iniciativas, bem como a origem de seu financiamento, é pública.

Os dados sobre os programas de financiamento da USAID estão disponíveis para consulta na internet no portal ForeignAssistance.gov, do governo norte-americano. Conforme o portal, não há qualquer financiamento para o Comprova, a Abraji, agências de checagens ou veículos jornalísticos nos anos de 2022, 2023 e 2024.

Por que o Comprova investigou essa publicação: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas e eleições e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: O Comprova já desmentiu outras alegações de Marcos do Val, quando mostrou que Trump não pode prender Alexandre de Moraes e que falas antigas de Drauzio Varella foram usadas para minimizar a gravidade da pandemia de covid-19. Sobre a USAID, o Comprova mostrou recentemente que é falso que a Agência Lupa foi financiada pela USAID para interferir nas eleições de 2022, que imagem de Alexandre de Moraes com boné da USAID foi gerada por IA, que post alega sem apresentar provas que a covid-19 foi criada em laboratório por ordem de Obama e que vídeo é tirado de contexto para dizer que trechos da Bíblia serão banidos das redes sociais.