Comprova Explica

Investigado por: 31/10/2025

Decreto de educação inclusiva não prevê fim das APAEs; entenda

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Medida prevê integrar estudantes com deficiência ao sistema regular de ensino, mas eles não serão obrigados a deixar escolas especializadas, diferentemente do que sugerem posts nas redes sociais.

Conteúdo analisado: Vídeos que circulam nas redes sociais afirmam que o governo federal “decretou o fim das APAEs” e que todas as crianças com deficiência seriam obrigadas a deixar as escolas especializadas para estudar apenas na rede pública comum. As postagens fazem referência ao Decreto nº 12.686/2025, que institui a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva, publicado em 21 de outubro.

Comprova Explica: Vídeos publicados nas redes sociais afirmam que o governo federal decretou o fim das APAEs (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) e determinou que todas as crianças com deficiência seriam obrigadas a estudar apenas em escolas comuns da rede pública. As postagens fazem referência ao Decreto nº 12.686/2025, que institui a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva.

Para entender o que o texto oficial realmente diz e esclarecer se a norma prevê o fechamento dessas instituições, o Comprova analisou o decreto e ouviu as partes envolvidas.

O que diz o decreto?

O Decreto nº 12.686, de 20 de outubro de 2025, institui a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva (PNEEI) e cria a Rede Nacional de Educação Especial Inclusiva. O objetivo, segundo o texto, é garantir o direito à educação de pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista (TEA) e altas habilidades ou superdotação, com base na igualdade de oportunidades e sem discriminação.

A nova política estabelece que a educação especial deve ser oferecida de forma transversal em todos os níveis e modalidades de ensino. Isso significa que o atendimento a estudantes com deficiência não será separado da estrutura geral da educação, mas integrado ao sistema regular, com apoio pedagógico e recursos específicos. O decreto determina que os estudantes públicos da educação especial devem estar incluídos em classes e escolas comuns, com as condições e adaptações necessárias para garantir a participação, a permanência e o aprendizado.

Entre os princípios definidos estão a promoção da equidade, o combate ao capacitismo, o reconhecimento da diversidade humana como valor educacional e a colaboração entre a União, os estados e os municípios na execução das políticas públicas. O texto também prevê a universalização da matrícula na educação básica para crianças e adolescentes com deficiência, dos 4 aos 17 anos, em classes comuns da rede regular.

Apesar de enfatizar a inclusão, o decreto mantém o Atendimento Educacional Especializado (AEE) — serviço pedagógico destinado a complementar ou suplementar o ensino de estudantes com deficiência. O texto reforça que o AEE não substitui a matrícula na classe comum e que pode ser oferecido, de forma excepcional, em centros da rede pública ou em instituições sem fins lucrativos conveniadas, como as APAEs e outras entidades filantrópicas.

O decreto também regulamenta o profissional de apoio escolar, que passa a ter atribuições e formação mínima definidas. Esse profissional deve ter nível médio e, no mínimo, 80 horas de formação específica em educação especial, enquanto o professor do AEE precisa ter formação docente e, preferencialmente, carga horária mínima de 80 horas na área. A União deve colaborar com os estados e municípios para oferecer formação continuada a esses profissionais.

Outra mudança é a criação da Rede Nacional de Educação Especial Inclusiva, que será responsável por coordenar a implementação da política, promovendo formação continuada, articulação intersetorial, produção de materiais acessíveis, monitoramento de indicadores e apoio técnico às redes de ensino. Além disso, também prevê apoio financeiro da União, por meio de programas como o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) e o Plano de Ações Articuladas (PAR). Por fim, o decreto revoga o Decreto nº 7.611, de 2011, que tratava da política anterior de educação especial, e entrou em vigor na data da publicação, 21 de outubro de 2025.

Embora o debate atual concentre-se principalmente no papel das APAEs na educação especial, essas instituições não se limitam à oferta de ensino. De acordo com informações disponíveis no site da APAE Curitiba, por exemplo, as unidades da rede também oferecem atendimentos nas áreas da saúde, assistência social, psicologia, fisioterapia e fonoaudiologia, além de programas voltados à inclusão profissional e à autonomia das pessoas com deficiência.

Essas atividades seguem em funcionamento e não são afetadas pelo decreto, que trata exclusivamente da organização da política nacional de educação especial no sistema de ensino. Ou seja, mesmo que a política pública de educação se concentre em garantir a matrícula na rede comum, as APAEs continuam existindo e prestando outros tipos de serviços fundamentais às pessoas com deficiência e às suas famílias.

O governo quer acabar com as APAEs?

O Comprova entrou em contato, por e-mail, com o Ministério da Educação (MEC) para verificar se o Decreto nº 12.686/2025 prevê o fechamento ou a substituição das APAEs e de outras instituições que atendem pessoas com deficiência.

Em resposta, o MEC encaminhou o link para uma matéria publicada em seu site oficial, com o título “Entenda a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva”, divulgada em 23 de outubro de 2025. No texto, o ministério afirma que o decreto “não interfere nas atribuições e no financiamento das entidades filantrópicas e comunitárias atuantes na educação especial, como as APAEs, Pestalozzis e congêneres, que seguem garantidos”.

Segundo a pasta, o objetivo da nova política é “complementar e fortalecer as políticas públicas existentes, em consonância com os princípios da educação inclusiva e da colaboração federativa”. A secretária de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão do MEC, Zara Figueiredo, também declarou que “todas as garantias relativas à educação especial inclusiva que foram alcançadas ao longo do tempo estão mantidas neste decreto”.

Ela destacou ainda que o texto não altera a existência do Atendimento Educacional Especializado, que poderá continuar sendo oferecido pelos sistemas públicos de ensino ou por instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos, desde que tenham atuação exclusiva na educação especial e sejam conveniadas com o poder público.

O documento publicado no portal do MEC reforça que a política reafirma o compromisso do país com a Constituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) e a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, buscando garantir educação sem discriminação e com igualdade de oportunidades.

Além disso, o ministério destaca novas medidas previstas no decreto, como a regulamentação da carreira de profissional de apoio escolar, com formação mínima de 80 horas, e o reforço dos investimentos federais em salas de recursos multifuncionais, tecnologias assistivas e capacitação de professores. Ou seja, de acordo com a resposta encaminhada pelo MEC e com o conteúdo oficial do decreto, não há determinação de extinção das APAEs, nem de substituição dessas instituições por escolas públicas. O texto prevê a manutenção dos convênios existentes e a integração das políticas de educação especial ao sistema regular de ensino, com foco em ampliar o atendimento inclusivo.

O que dizem as APAEs?

A Federação Nacional das APAEs (Fenapaes) manifestou-se sobre o decreto de 23 de outubro, por meio de um vídeo no Instagram e da Nota Técnica nº 03/2025. Nas duas comunicações, a entidade demonstra preocupação com a forma como o decreto foi redigido, mas nega que o “movimento apaeano” seja contrário à inclusão escolar.

No vídeo, o presidente da Fenapaes, Jarbas Feldner de Barros, aparece ao lado do coordenador nacional de Educação, professor Luiz Fernando, e afirma que o decreto “pegou a todos de surpresa”. Ele declara que o movimento apoia o direito à inclusão na rede comum de ensino, mas defende a permanência das escolas especializadas, por considerar que parte do público atendido pelas APAEs “não tem condições de estar dentro da rede comum”.

“Todos vocês sabem que o movimento das APAEs e que a nossa gestão frente à Federação Nacional das APAEs é favorável à inclusão escolar. É um direito do aluno, é um direito da família, a inclusão na rede comum. Porém, nós não abrimos mão e defendemos ardentemente a existência da escola especializada, porque nós temos um público, que é o verdadeiro público das APAEs, que não tem condições de estar dentro da rede comum”, afirmou o presidente.

Na gravação, o professor Luiz Fernando acrescenta que o texto do decreto, “na forma como está estabelecido, não representa o movimento apaeano” e defende a suspensão temporária da norma para permitir o diálogo com o MEC e o Congresso Nacional. Segundo ele, a previsão de “universalização da matrícula em classes comuns” pode “colaborar para o esvaziamento das escolas especializadas”, caso seja interpretada como uma obrigatoriedade de migração para a rede regular.

A Nota Técnica nº 03/2025, assinada pela Fenapaes, reforça esse posicionamento. No documento, a federação declara repúdio ao decreto e apoia o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 845/2025, apresentado pelo senador Flávio Arns (PSB-PR), que propõe a suspensão dos efeitos da norma até nova discussão com o setor. O texto argumenta que o decreto “ultrapassa a moldura da Constituição e da LDB ao transformar uma preferência em exclusividade”, ao estabelecer como meta a “universalização da matrícula em classes comuns”.

Além disso, a nota técnica destaca que a diretriz de “universalização” pode acarretar “riscos de exclusão sistêmica” e “retrocesso social”, caso leve ao enfraquecimento da rede de atendimento especializado. O texto conclui que o movimento apaeano “permanece ao lado das famílias”, buscando “garantir direitos, evitar retrocessos e assegurar o acesso, a permanência e a aprendizagem de estudantes com deficiência intelectual, múltipla e TEA em um sistema verdadeiramente inclusivo”.

O Comprova entrou em contato com a APAE Brasil para solicitar novos esclarecimentos sobre a posição da federação, mas não obteve retorno até a publicação deste Explica.

O que diz a especialista?

Ao Comprova, a professora associada da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Mariangela Lima de Almeida destacou que desde a década de 1990 diversos países têm tentado estabelecer políticas em prol de processos de inclusão nas escolas e nas classes comuns para alunos públicos da educação especial, a partir de normativas internacionais.

Mariangela, que atua na linha de Educação Especial e Processos Inclusivos e é líder do Grupo de Pesquisa “Formação, Pesquisa-ação e Gestão de Educação Especial” na Ufes, ressalta que o documento de 2025 reitera o compromisso do poder público de constituir dispositivos para a inclusão da pessoa com deficiência na escola comum.

“Esse é um movimento que vem se reafirmando ao longo principalmente dos anos 2000 com a Resolução nº 02/2001 que institui as diretrizes nacionais de educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Então o documento agora de 2025 vem nesse movimento de reafirmar esse compromisso com a permanência, aprendizagem e o atendimento necessário para esse grupo de estudantes.”

Sobre os vídeos que sugerem que o decreto colocaria fim às APAEs, a professora manifesta que é importante ler com atenção o texto proposto pelo governo federal, uma vez que não está prevista a alteração das legislações vigentes que tratam dessa oferta de instituições de atuação exclusiva na educação especial, como as instituições conveniadas filantrópicas.

“A partir do movimento mundial em prol da inclusão do direito à educação de todos, a educação pública, a educação com qualidade, a sua permanência e o seu processo de aprendizado, o Brasil, conforme também o movimento internacional, vem estabelecendo uma rede, que agora o decreto traz a perspectiva dessa criação de uma rede articulada para a inclusão desse alunado. Então é importante que não existe o fim dessas escolas. É um movimento que já vem se situando em várias outras legislações e que essas instituições podem sim atuar, como diz aqui no artigo 9 do decreto, no atendimento educacional especial. E é importante que essa criança, esse jovem, esse adolescente, esse adulto esteja também matriculado nas escolas comuns.”

A professora entende, por fim, que o Atendimento Educacional Especializado não pode ser tratado como um “substitutivo”, ou seja, deve ser complementar ou suplementar à escolarização e deverá ocorrer de modo articulado com o ensino comum, premissa que não é de agora e vem desde a década de 90.

Fontes consultadas: Decreto nº 12.686/2025, Ministério da Educação, Federação Nacional das APAEs, Nota Técnica nº 03/2025 e professora Mariangela Lima de Almeida.

Por que o Comprova explicou este assunto: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas e eleições. Quando detecta nesse monitoramento um tema que está gerando muitas dúvidas e desinformação, o Comprova Explica. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Para se aprofundar mais: Políticas de educação são alvos frequentes de discussão nas redes sociais. O Comprova já explicou, por exemplo, que a proposta do Programa Pé-de-Meia de pagar R$ 9,2 mil a aluno de baixa renda que fizer o ensino médio e concluir o Enem e mostrou ainda que o Fies foi criado no governo de Fernando Henrique Cardoso e não de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).