Áudio de médico é verdadeiro, mas opinião sobre origem do coronavírus não tem respaldo científico
- Comprovado
- Enganoso
- Comprovado
- O áudio foi realmente gravado por Roberto Zeballos
- Enganoso
- Ao comentar sobre tratamento para a covid-19, o médico afirma a outro profissional que o coronavírus “veio de um laboratório de Wuhan”, mas não há evidências disso e um estudo publicado pela Nature Medicine descarta a hipótese.
Áudio em circulação no WhatsApp traz afirmações duvidosas ditas pelo imunologista Roberto Zeballos e endereçadas a outro médico, Lucas Barbieri, sobre a origem do novo coronavírus. A conversa sobre as possibilidades de tratamento da covid-19 — doença causada pelo vírus — foi registrada na quarta-feira, 29 de abril, e viralizou pelo aplicativo. O Comprova confirmou a autenticidade do material com as duas fontes.
No início da gravação, Zeballos afirma que o novo coronavírus “veio de um laboratório ao lado de Wuhan” e que o governo da China estaria escondendo a informação. Segundo ele, uma pesquisadora chinesa estaria utilizando o vírus para estudos sobre inflamação pulmonar quando um “acidente” teria dado início à pandemia. As afirmações, no entanto, não apresentam respaldo científico.
Estudo publicado pelo periódico médico Nature Medicine, em 17 de março, concluiu que “claramente” o vírus SARS-CoV-2, que provoca a covid-19, “não é uma construção de laboratório ou um vírus propositalmente manipulado”. Segundo os pesquisadores, as características genéticas do novo coronavírus indicam que ele é fruto da seleção natural, ocorrida em um animal ou uma pessoa.
Em entrevista ao Comprova, Roberto Zeballos disse que o áudio é “opinião pessoal” e que a colocação é “irrelevante” porque não pode provar. Ele justifica o conteúdo pelas declarações recentes do virologista francês Luc Montaigner, vencedor do Prêmio Nobel de Medicina em 2008, e entende que é “muita coincidência” a localização do laboratório de Wuhan próxima ao epicentro da pandemia.
Por que checamos isto?
O Comprova recebeu diversos pedidos de leitores para verificação do áudio nos últimos dias, o que indica forte circulação do material no WhatsApp.
Chamou a atenção que o suposto autor do áudio era o médico Roberto Zeballos, cuja entrevista à Rede Record sobre tratamento de covid-19 com corticoides e antibióticos foi distorcida em boato que afirmava ter sido encontrada a “cura oficial” da doença ao longo do mês de abril.
Além disso, postagens falsas sobre a origem do novo coronavírus são comuns nas redes sociais, acompanhando embates entre líderes políticos mundiais e teorias infundadas de que a China teria “fabricado” o vírus por razões econômicas. Tais afirmações fragilizam a relação entre o Brasil e a China — principal parceiro comercial brasileiro. O Comprova já fez outras verificações sobre o mesmo assunto.
Comprovado, para o Projeto Comprova, faz referência a fatos verdadeiros, eventos confirmados, localização comprovada ou conteúdo original publicado sem edição. A etiqueta foi escolhida com base no último critério.
Enganoso, para o Comprova, é um conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Como verificamos?
O autor do áudio se apresenta como “doutor Zeballos”. A reportagem entrou em contato por telefone com o médico Roberto Zeballos, que havia sido fonte em verificação recente e confirmou a autoria. Ele também explicou o contexto da gravação, respondeu perguntas sobre o conteúdo e confirmou o nome do destinatário.
Com base no conteúdo do áudio, o Comprova pesquisou o nome do destinatário, Lucas Barbieri, no LinkedIn, e encontrou o perfil de um cirurgião cardiovascular com atuação em São Paulo. Ele foi contatado por e-mail e mensagens, bem como telefone da clínica, e confirmou o recebimento da mesma gravação na semana passada.
Por fim, o Comprova realizou a transcrição do áudio e verificou as afirmações com base em notícias, pesquisas e verificações feitas anteriormente acerca de boatos sobre a origem do novo coronavírus.
Do que se trata o áudio?
O autor do áudio que circula no WhatsApp é o médico Roberto Zeballos, que atua em consultório próprio, em São Paulo, e nos hospitais Vila Nova Star, Sírio-Libanês e Albert Einstein. Recentemente, Zeballos concedeu entrevista à Rede Record afirmando ter obtido resultados clínicos animadores com o tratamento de pacientes com covid-19. Uma cópia desse vídeo viralizou nas redes sociais e a ela foi agregada por um perfil no Facebook uma descrição falsa de que teria sido encontrada a “cura oficial” para a doença, boato que o Comprova desmentiu em abril.
De acordo com relato de Zeballos, confirmado pelo Comprova com o interlocutor da conversa, o áudio em circulação foi encaminhado ao cirurgião cardiologista Lucas Barbieri por intermédio de um paciente em comum, no dia 29 de abril. Barbieri atua nas instituições Beneficência Portuguesa de São Paulo, HCOR, Hospital Alemão Oswaldo Cruz e Hospital Santa Catarina (ACSC).
Zeballos afirma que a intenção era compartilhar com o colega experiências que estariam dando certo no tratamento de seus pacientes, enquanto aguarda a finalização de estudo, o que deve ocorrer apenas em junho. Segundo ele, a ideia era “ver se eles incluem o protocolo que a gente está fazendo”. Barbieri disse que contatos do tipo entre profissionais da saúde são comuns nessa pandemia, principalmente pelo fato de que a covid-19 é um desafio novo e os casos aumentam a cada dia. Ele não atua, porém, diretamente no atendimento a pacientes com a doença.
Conteúdo enganoso
Antes da descrição do tratamento que defende, Zeballos faz afirmações duvidosas no áudio sobre a origem do novo coronavírus. “Esse vírus veio lá da China, de um laboratório ao lado de Wuhan, onde tem uma chinesinha que pesquisava inflamação pulmonar com o vírus. O coronavírus era um vírus bom, porque ele infectava os animais, e ela estudava”, diz o médico. “Esse laboratório está a 200 metros de Wuhan, então houve um acidente […] Houve um acidente, saiu e espalhou.”
No entanto, não há respaldo científico de que o novo coronavírus seja artificial ou tenha sido fabricado. Pelo contrário: estudo publicado pelo conceituado periódico médico Nature Medicine, em 17 de março, analisou o genoma do vírus que provoca a covid-19 (SARS-CoV-2) e concluiu que “claramente não é uma construção de laboratório ou um vírus propositadamente manipulado”. Segundo os pesquisadores, as características genéticas do vírus, o sétimo coronavírus a infectar seres humanos, indicam que ele é fruto de seleção natural, ocorrida em um animal ou em uma pessoa.
Em 19 de fevereiro, 27 cientistas publicaram uma declaração de apoio aos profissionais da China contra a covid-19 no periódico The Lancet. O texto afirma, entre outros tópicos, que o trabalho estava sendo “ameaçado por rumores e desinformação” sobre a origem da pandemia e que o grupo “condena fortemente teorias da conspiração sugerindo que a covid-19 não tem origem natural”. Além do estudo do Nature Medicine, foram citadas outras oito pesquisas com conclusões semelhantes.
A hipótese de “acidente” no Instituto de Virologia de Wuhan também foi negada pela virologista Shi Zhengli, que lidera pesquisas sobre diferentes tipos de coronavírus a partir de amostras coletadas de morcegos desde 2003, quando a Ásia foi afetada pela epidemia de SARS. Em entrevista à revista Scientific American, ela disse que o laboratório verificou as sequências genéticas dos vírus circulando na China e nenhuma delas coincidiu com a dos vírus com que sua equipe trabalhava.
Pesquisadores ouvidos pela Vox ainda rejeitam a teoria de acidente em laboratório ao afirmar que as probabilidades de contaminação no meio selvagem são muito maiores. O ecologista de doenças Peter Daszak cita estudo de 2018 na província de Yunnan, na China, em que descobriu que 2,7% da população próxima a cavernas havia desenvolvido anticorpos. “Se você extrapolar para a população presente em todo o Sudeste Asiático, são 1 milhão a 7 milhões de pessoas por ano sendo infectadas por vírus de morcegos.”
Outro argumento é que não existe evidência de que os cientistas de Wuhan estariam trabalhando com o novo coronavírus — o mais próximo que estes descobriram, segundo estudos publicados, foi o vírus RaTG13, que compartilha 96% do genoma com o SARS-CoV-2. Porém, os pesquisadores entrevistados pela Vox afirmam que uma diferença de 4% é “enorme em termos evolutivos”.
Zeballos também cita no áudio uma declaração recente do virologista francês Luc Montaigner de que o vírus teria sido criado em meio ao desenvolvimento de vacina contra o HIV no local, versão contestada por outros especialistas e pelo diretor da unidade de virologia e imunologia do Instituto Pasteur, da França, Olivier Schwartz. Argumenta ainda que o fato de o novo coronavírus ser transmitido “em qualquer clima” seria um indício de artificialidade — o Comprova não encontrou referências ou estudos que embasem essa teoria.
No áudio, o médico também afirma que teria recomendado tratamento ao cardiologista Roberto Kalil Filho, do Hospital Sírio-Libanês. “Conversei com o Kalil ontem, ele me autorizou a falar que fui que falei para ele tomar o metilprednisolona que salvou ele”. Procurado pela reportagem, Zeballos negou a prescrição, disse que apenas conversou com o médico por mensagens, e que o tratamento foi decidido pelos médicos que o atendiam. Sobre a eficácia do medicamento, diz que é sua “impressão” e que “aguarda estudos”. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, publicada em 10 de abril, Kalil Filho declarou ter sido tratado com cloroquina, antibióticos, corticoides e anticoagulantes e que “não dá para saber o que fez mais efeito ou se foi o conjunto”.
Outro ponto confuso do áudio é o trecho em que o Hospital Israelita Albert Einstein é citado. Zeballos diz o seguinte: “[…] quem tiver menos resistência não aguenta ficar muito tempo no tubo. As pessoas jovens aguentam. Tanto que, no Einstein, a gente entubou mais de 40 pessoas. No Vila Nova, os meus casos não precisaram ser entubados”. A instituição questionou o número de pacientes atendidos e o médico justificou que, ao falar “a gente”, fazia referência à classe médica.
A nota do Hospital Israelita Albert Einstein, divulgada em 4 de maio, afirma que o protocolo mencionado no áudio para tratamento de pacientes com covid-19 “não é o utilizado pela organização, pois todas as diretrizes adotadas pelo Einstein baseiam-se em evidências científicas e não na experiência isolada de um médico” e que “o profissional (Zeballos) não cuidou de número expressivo de pacientes no hospital conforme comenta em seu áudio.”
Contexto
Boatos sobre a origem do novo coronavírus na China são comuns nas redes sociais. Recentemente, o Comprova mostrou que o Nobel de Medicina Tasuku Honjo nunca disse que o coronavírus é artificial e esclareceu que reportagem de TV italiana sobre vírus criado em laboratório chinês não tem relação com a covid-19, por exemplo.
As notícias falsas também refletem críticas e acusações de líderes políticos, como o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Em 1º de maio, questionado por jornalistas se estava vendo algo que o deixasse altamente confiante de que a origem do vírus seria o Instituto de Virologia de Wuhan, Trump respondeu: “Sim, eu tenho”, sem detalhar o comentário. O presidente norte-americano disse ainda que a Organização Mundial da Saúde (OMS) “deveria se envergonhar por agir como agência de relações públicas da China”.
A suspeita emergiu com a revelação de observações de diplomatas dos Estados Unidos em 2018. De acordo com a coluna do jornalista Josh Rogin, do jornal The Washington Post, diplomatas alertaram há dois anos sobre a precariedade dos níveis de segurança de pesquisas com coronavírus de morcego realizadas no Instituto de Virologia de Wuhan. Órgãos de inteligência, no entanto, afirmaram na sexta-feira (30) que concordam “com o amplo consenso científico de que o vírus da covid-19 não foi feito pelo homem ou geneticamente modificado”.
Em 18 de março, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho 03 do presidente Jair, causou tensão entre o Brasil e a China ao culpar o país asiático pela pandemia. No Twitter, a embaixada da China rebateu as acusações e disse que Eduardo fazia acusações irresponsáveis.
Apesar de as evidências apontarem para origem natural do vírus, cientistas ainda estão pesquisando de que forma ele entrou em contato, pela primeira vez, com humanos. Relatórios de autoridades de saúde chinesas e da Organização Mundial da Saúde (OMS) trabalhavam com a hipótese de que a doença se alastrou a partir de um mercado de frutos do mar da cidade de Wuhan. No entanto, estudo publicado no The Lancet em 24 de janeiro mostra que 13 dos 41 primeiros casos registrados não tinham relação com o mercado, enfraquecendo a tese. Especialistas ainda realizam pesquisas para descobrir se existiu algum hospedeiro intermediário.
Alcance
O Comprova recebeu de seus leitores diversas solicitações de verificação. O áudio tem sido compartilhado pelo WhatsApp e também foi encontrado em perfis no Twitter.