Vídeo não prova fraude em eleição de 2014
- Falso
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- Não há provas de que as eleições de 2014 tenham sido fraudadas. Em um vídeo de 2018, que voltou a ser compartilhado nas redes sociais depois de comentários feitos sobre o assunto pelo presidente Jair Bolsonaro, um suposto especialista usa metodologia incorreta para analisar os dados da apuração minuto a minuto dos votos para presidente no segundo turno.
- Conteúdo verificado: Em vídeo publicado nas redes sociais em 2018, um suposto especialista analisa a apuração dos votos das eleições de 2014 e conclui que houve fraude no segundo turno e que a vitória deveria ter sido de Aécio Neves (PSDB).
Um vídeo com acusações inconsistentes de fraude nas eleições de 2014 voltou a circular nas redes sociais após comentários do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante conversas com apoiadores, no dia 8 de julho. O conteúdo mostra uma entrevista da ex-candidata a deputada federal de São Paulo pelo PSL Naomi Yamaguchi com uma fonte anônima que apresenta supostos indícios de irregularidades no pleito daquele ano.
Ao contrário do que sugere o vídeo, não há, até o momento, provas de que ocorreram fraudes nas eleições de 2014 e em outras disputas eleitorais desde a adoção do sistema eletrônico para o processamento dos resultados, em 1994. Especialista consultado pelo Comprova, verificações antigas, bem como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já desmentiram os apontamentos enganosos propagados no material.
O vídeo erra ao comparar os resultados parciais iniciais da eleição com pesquisas de intenção de voto. Além dos principais levantamentos apontarem para um resultado final próximo ao registrado, diferenças entre pesquisas eleitorais e o desfecho de eleições não configuram prova sólida de fraude.
A análise gráfica sobre a curva dos votos dos candidatos ignora que a contabilização dos votos não é distribuída de maneira uniforme durante o período de apuração. A queda na curva do candidato Aécio Neves (PSDB) não foge do esperado, tampouco permite concluir que houve fraude. O padrão alardeado no vídeo se baseia em uma metodologia pouco clara e imprecisa.
Já a aplicação da chamada Lei de Benford — princípio matemático usado para tentar identificar fraudes em auditorias fiscais e contábeis — no contexto eleitoral é controversa e, isoladamente, não fornece indícios suficientes para provar a ocorrência de irregularidades.
Como verificamos?
Para analisar o vídeo enganoso, o primeiro passo do Comprova foi confirmar se os dados dos resultados parciais apresentados na gravação estavam corretos. A reportagem identificou que os dados foram extraídos de uma cobertura do portal de notícias G1, que tem como fonte o TSE. Também solicitamos ao Tribunal acesso aos dados do acompanhamento minuto a minuto das eleições 2014.
Em seguida, considerando que o vídeo foi publicado há pelo menos dois anos, o Comprova promoveu buscas por verificações de outros veículos sobre o vídeo e as alegações disseminadas pelo conteúdo. Identificamos uma checagem de fatos da Agência Pública e uma resposta do TSE publicada em 2018, que contestavam os boatos. Também encontramos uma verificação antiga do Comprova acerca de um boato similar sobre a Lei de Benford e eleições 2014.
Consultamos o professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, Diego Aranha, que confirmou a inviabilidade das análises presentes no vídeo e nos recomendou a matéria da Agência Pública. Procuramos também por manifestações recentes no TSE sobre a segurança das urnas eletrônicas.
Além disso, tentamos contato com o homem identificado como Alexandre Chut. Ele aparece no vídeo como suposto especialista, mas não obtivemos retorno.
Verificação
Pesquisas eleitorais não determinam resultado da eleição
O primeiro argumento enganoso do vídeo diz respeito às pesquisas eleitorais. Um homem identificado como Alexandre Chut e um entrevistado anônimo, que aparece conversando com Naomi Yamaguchi, apontam que pesquisas eleitorais “fundamentadas” indicavam que Aécio Neves teria cerca de 70% das intenções de votos antes da eleição. Eles não esclarecem, no entanto, qual instituição foi responsável pelos levantamentos, tampouco quem foram os contratantes da pesquisa.
Pesquisas do Datafolha e do Ibope, por outro lado, indicavam uma disputa acirrada, na margem do empate técnico entre os candidatos. Nos dois últimos levantamento do Ibope, alguns dias antes da eleição, Dilma Rousseff (PT) abriu uma vantagem entre 8% e 10% em relação ao tucano. No dia anterior ao pleito, a Vox Populi indicou 7% de vantagem para a petista, já uma pesquisa da Confederação Nacional dos Transportes estipulou um empate técnico.
De qualquer maneira, a diferença do resultado final para pesquisas eleitorais não implica fraude. Em nota publicada ainda em 2018, em resposta ao vídeo enganoso, o TSE aponta que “o desempenho dos candidatos nas pesquisas eleitorais não constitui um fator determinante no resultado das eleições, pois pesquisas estão sujeitas a erros amostrais inexistentes na realidade do processo eleitoral.”
Curva acentuada no início é comum
As pessoas que aparecem no vídeo mencionam a suposta pesquisa eleitoral que mostrava uma vitória folgada de Aécio para ancorar uma análise equivocada sobre o gráfico da apuração de votos do segundo turno. Tanto o entrevistado anônimo como Alexandre Chut tratam com estranheza que o candidato tucano tenha alcançado 67% dos votos no início da apuração e sofrido uma queda até ser ultrapassado por Dilma depois de 2 horas e meia de apuração.
“Como cai tanto em 2h30 quando os votos do sul do país estavam sendo computados…”, diz uma imagem apresentada no vídeo.
O gráfico, porém, não mostra nada além de que Aécio obteve muitos votos nas regiões Sudeste e Sul do País, cujos dados foram processados primeiro. Diferentemente do que o vídeo sugere, é natural que no começo da apuração a diferença entre os candidatos seja maior do que o resultado final.
Isso pode acontecer porque no começo da contagem o número absoluto de votos é baixo, então a diferença entre o número de votos dos candidatos nas primeiras parciais terá um impacto mais significativo na curva do gráfico do que quando já se tem muitos votos apurados. O tucano começou na frente embalado pela apuração de votos da região Sudeste, onde obteve um bom desempenho.
Ao atingir a marca de 67% alardeada no vídeo, Aécio continha 94,6 mil de 194 mil votos computados. Em vias de comparação, após duas horas e meia de apuração, 94 mil votos significariam um percentual de apenas 0,0001% do total de votos válidos.
Quantidade de votos apurados por minuto não é uniforme
O fato da porcentagem de Aécio cair após atingir 67% não significa necessariamente que ele obteve menos votos ou que teria ficado atrás de Dilma nas parciais seguintes e na região Sul e Sudeste, mas apenas que a diferença proporcional entre o candidato e sua adversária não se manteve nas parciais seguintes. O tucano não conseguiu fechar com esse percentual de votos em nenhuma das regiões brasileiras.
A reportagem da Agência Pública mostra que Aécio esteve à frente da petista em todas as parciais até às 18h25.
A peça desinformativa ainda faz um falso alarde ao questionar porque os votos de Aécio não caíram acentuadamente após a virada de Dilma. Um dos equívocos da interpretação do entrevistado anônimo é ignorar que a quantidade de votos apurados não é distribuída uniformemente minuto a minuto na eleição.
A virada aconteceu às 19h32, quando as curvas do gráfico se cruzam. Naquele momento, 94 milhões do total de 105,5 milhões dos votos válidos já estavam apurados, segundo os dados do TSE. Logo, apenas cerca de 10% do total de votos válidos foi computado no período de seis horas após a virada de Dilma.
Ou seja, ainda que Dilma tenha registrado vantagem em parciais nas horas seguintes, esses votos tiveram um impacto proporcional já reduzido, porque representavam uma pequena parcela dos votos totais da eleição. Além disso, Dilma venceu por uma diferença de 12 milhões de votos no Nordeste. Isso significa que os votos da região já eram contabilizados antes da virada acontecer.
Para o TSE, o vídeo não faz nada mais do que uma constatação óbvia do resultado observado.
“Os primeiros dados da apuração são recebidos da região Sudeste, e os últimos da região Norte e Nordeste, sendo esperado que a referida candidata possua realmente a vantagem nas regiões em que recebeu mais votos. Consequentemente, ao analisar a linha temporal das parciais nessas regiões onde teve mais votos, é esperado que as variações percentuais sejam mais favoráveis para aquela candidata.”, afirmou o tribunal em nota.
Padrão fabricado
O vídeo enganoso ainda faz uma análise com metodologia confusa para traçar o padrão apresentado como prova de que um algoritmo teria manipulado os resultados do pleito. Como apontado nesta checagem da Agência Pública, publicada em 2018, a análise não reflete a quantidade de votos recebidos pelos candidatos em cada parcial.
O cálculo consiste na subtração do total de votos do candidato no minuto analisado pela “variação do incremento” do minuto anterior. Por exemplo, a variação de Dilma no minuto 17:09 é o resultado dos 270.466 votos totais da candidata, menos a “variação de incremento” do minuto anterior, de 111.843. Essa conta fecha em 158.623. Não está claro, porém, a metodologia utilizada para calcular essa variação.
A partir disso, o entrevistado anônimo marca qual dos dois candidatos apresentou uma maior diferença em relação à “variação de incremento” anterior. Ele não deixa claro porque adotou essa metodologia, mas o fato é que o cálculo não prova fraude. A quantidade de votos totais recebidos pelos candidatos minuto a minuto mostra um padrão bem diferente, conforme mostra a reportagem da Pública.
No vídeo, o homem compara a chance de encontrar um padrão como o que obteve a partir desta metodologia com um “cara ou coroa”: “se você jogar uma moeda e der cara, e na vez seguinte der coroa; e na vez seguinte der cara; e na outra coroa… 241 vezes. É a mesma probabilidade”. A mesma comparação foi usada pelo presidente Bolsonaro no dia 9 de julho, em conversa com apoiadores, e não faz sentido.
De acordo com o TSE, “a alternância das vantagens também não constitui indício da inexistência de tendências no desempenho dos candidatos”. Isso ocorre porque a análise apresentada no vídeo não considera a magnitude das variações, mas somente as frequências em que elas ocorreram.
O Comprova procurou o professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, Diego Aranha, que coordenou o projeto Você Fiscal em 2014. Esses dados foram usados na auditoria realizada pelo PSDB em 2014 e 2015. À nossa reportagem, o professor disse que essa auditoria não encontrou problemas nas etapas posteriores ao momento da votação.
“A crítica técnica sobre a transparência do sistema brasileiro de votação é centrada no software de votação, e não no que acontece depois: transmissão e totalização”, afirma. O professor disse ainda que “o vídeo não faz qualquer sentido” e nos referiu a checagem feita pela Agência Pública.
Em nota enviada ao UOL após declarações do presidente Bolsonaro contra o sistema eleitoral brasileiro, Aécio Neves disse não acreditar que tenha ocorrido fraude nas eleições de 2014. O ex-senador Aloysio Nunes (PSDB), que concorreu à vice-presidência na chapa de Aécio, afirmou à Folha de S. Paulo que a “eleição foi limpa” e reconheceu ter perdido a disputa “porque faltou voto”
Lei de Benford
Outro argumento falho remete à Lei de Benford. Em 2018, o Comprova já desmentiu um vídeo que aplicava a lei matemática para estabelecer uma prova de que as eleições de 2014 foram fraudadas. Porém, o método, por si só, não é capaz de provar irregularidades, como explicaram especialistas na reportagem.
A Lei de Benford sugere que em números naturais, gerados sem interferência humana, a probabilidade de ocorrência de dígitos menores (1, 2, 3) é maior do que a de dígitos maiores (7, 8, 9). O método é muito utilizado em auditorias contábeis e fiscais para identificar possíveis manipulações, porém sua aplicação no contexto eleitoral ainda é controversa no universo acadêmico.
Além disso, especialistas defendem que o modelo pode ser um sinalizador de possíveis irregularidades, e não uma prova concreta. Já um estudo do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal (TRE-DF) aplicou a lei matemática nos resultados de eleições anteriores, segmentando a votação por município. Segundo os autores, a análise por cidades seria mais adequada. Os resultados indicaram que não houve fraudes em nenhum dos pleitos.
TSE defende processo de totalização dos votos
O homem entrevistado no vídeo repete, por diversas vezes, que as urnas eletrônicas não são auditáveis. Como já mostraram verificações anteriores do Comprova e de outros veículos, o TSE defende que as urnas podem ser auditadas antes, durante e depois da eleição.
Perguntado sobre qual parte do processo de votação poderia estar comprometida, o homem diz que o problema pode estar no “módulo de criptografia” das urnas, que poderia, por exemplo, imprimir boletins de urna com resultados diferentes dos realmente digitados no equipamento. Porém, não há evidências de que algo similar já tenha ocorrido.
Em nota, divulgada na semana passada, o TSE defendeu a segurança do processo de totalização dos votos das urnas eletrônicas. O comunicado diz que após o encerramento da votação, o total de votos registrados em cada aparelho é gravado em uma mídia digital. O resultado é transmitido ao TSE por meio de uma rede exclusiva da Justiça Eleitoral, o que impediria, segundo o tribunal, qualquer tentativa de interceptação por hackers.
Os dados chegam criptografados ao TSE, onde são checados e somados por um programa. Isso significa que as informações são protegidas por um código que pode ser decifrado apenas por uma “chave” em posse do tribunal. A instituição ainda reforçou que os equipamentos são auditáveis.
“Antes da eleição, os códigos-fonte usados na urna eletrônica podem ser conferidos no TSE. Durante todo o processo eleitoral, é permitido checar e auditar todos os softwares que realizam a totalização dos votos. Por fim, depois da votação, tudo fica registrado no Boletim de Urna (BU), um relatório detalhado, que contém, entre outras informações, o total de votos por partido e por candidato, bem como a totalidade de eleitores aptos a votar na seção e a quantidade de votos nulos e brancos.”, diz a nota.
Há um debate técnico em torno da efetividade desses processos. Uma auditoria independente promovida pelo PSDB entre 2014 e 2015 concluiu que não foi possível identificar fraudes na votação de 2014. Os autores ressaltaram, porém, que mesmo com os recursos do TSE, o sistema não permitia uma auditoria externa independente e efetiva. O tribunal contesta.
Quanto à possibilidade levantada de fraude nos boletins de urna, é preciso considerar o processo de Auditoria de Funcionamento das Urnas Eletrônicas. No dia das eleições, todos os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) fazem um processo de votação paralelo ao oficial, usando equipamentos sorteados entre os que serão efetivamente usados nas seções eleitorais.
Para mostrar que as urnas estão funcionando e apurando os votos corretamente, pessoas registram os votos em uma planilha e digitam o mesmo número na urna. Todo o processo, incluindo a cabine de votação, é filmado, para garantir que os representantes digitaram os números certos, e acompanhado por empresas terceirizadas. Ao final, faz-se uma comparação entre o boletim da urna e a planilha do TRE.
Quem são as pessoas que aparecem no vídeo
O vídeo verificado nesta checagem foi feito por Naomi Yamaguchi, irmã da médica Nise Yamaguchi, que é conhecida aliada do presidente Jair Bolsonaro e defensora de tratamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19.
Naomi tem atuação política desde 2016, quando se candidatou a vereadora em São Paulo pelo Partido Novo. Nas eleições seguintes, em 2018, se candidatou a deputada federal no estado pelo PSL, e está na lista de suplentes.
Apesar da legenda do vídeo no YouTube a identificar como jornalista, Naomi se apresenta como “consultora intercultural” de uma empresa da área de Recursos Humanos em sua página na plataforma LinkedIn.
Ela mantém, até hoje, uma página no Facebook com o mesmo nome que aparece no início do vídeo: “Naomi Yamaguchi pensa”. Ela tem mais de 24 mil curtidas e mais de 48 mil seguidores e já publicou outros vídeos defendendo voto impresso e falando em fraude nas eleições e sobre o uso de tratamentos ineficazes contra a covid-19. Em abril, outro vídeo dela, sobre o uso da cloroquina em pacientes com coronavírus, foi marcado como falso em uma checagem da Agência Lupa.
Um dos homens que aparece no vídeo é identificado apenas como Alexandre Chut. A única pessoa que o Comprova localizou com este nome nas ferramentas de busca foi um psicólogo e astrólogo de São Paulo. Enviamos um e-mail para o contato que aparece nas redes sociais desta pessoa, para confirmar se ela realmente é quem aparece no vídeo e pedir detalhes sobre a metodologia da análise realizada, mas não tivemos retorno. Não localizamos qualquer ligação entre esta pessoa e o PSDB ou a avaliação de resultados eleitorais.
Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos relacionados à pandemia da covid-19 ou a políticas públicas do governo federal que tenham viralizado na internet.
Bolsonaro tem afirmado, sem provas, desde o começo do ano passado, que houve fraude nas eleições de 2018. Ele também critica de forma recorrente o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas e já fez insinuações sobre a lisura do processo para 2022.
Conteúdos como o vídeo de Nise Yamaguchi, que já foi visto mais de 151 mil vezes no Facebook e 1,5 mil vezes no YouTube, reforçam a falsa impressão de que o processo eleitoral brasileiro não é seguro e colocam em xeque a própria democracia.
O mesmo material também foi checado pela Agência Lupa, que concluiu serem falsos os dados usados na análise. O Comprova já verificou outros conteúdos relacionados às eleições e mostrou que as urnas eletrônicas brasileiras não foram hackeadas nos Estados Unidos, que o sistema de votação eletrônico pode ser auditado e que o resultado de uma enquete sobre o voto impresso não reflete a opinião da população.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.