Saúde

Investigado por: 2020-07-23

Estudo da Henry Ford Health System é insuficiente para provar eficácia da cloroquina contra a covid-19

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Enganoso
A conclusão do artigo ressalta que os resultados precisam ser confirmados através de outros testes que permitam avaliar “rigorosamente” a eficácia do tratamento. Especialistas entrevistados pelo Comprova apontam que o método e as conclusões tiradas pelos pesquisadores são frágeis e precipitadas
  • Conteúdo verificado: Post do site Pleno.News afirma que um estudo do Henry Ford Health System comprova a eficácia do tratamento com hidroxicloroquina nos casos de covid-19. O texto se baseia em uma reportagem da Fox News, do começo de julho, que foi publicada por Bolsonaro nas redes sociais.

Um texto publicado em 18 de julho, no site Pleno.News, distorce as informações de um estudo sobre o uso da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 ao afirmar que está comprovada a eficácia do medicamento.

A publicação cita um estudo do Henry Ford Health System, do começo de julho, que afirma que o tratamento com a droga reduziu significativamente a taxa de mortalidade em pacientes hospitalizados com covid-19, sem causar efeitos colaterais ao coração. A própria conclusão do artigo, porém, ressalta que os resultados precisam ser confirmados através de outros testes que permitam avaliar “rigorosamente” a eficácia do tratamento.

Além disso, especialistas entrevistados pelo Comprova apontam que o método e as conclusões tiradas pelos pesquisadores são precipitadas e muito frágeis.

Como verificamos?

O Comprova buscou o estudo do Henry Ford Health System, uma organização de assistência médica sem fins lucrativos, dos Estados Unidos, e comparou as informações com as que foram publicadas no texto verificado. Buscamos também outras publicações com grande respaldo científico sobre o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com a covid-19, bem como o posicionamento de órgãos e entidades de referência sobre o uso dos medicamentos.

Também entrevistamos Carlos Orsi, diretor do Instituto Questão de Ciência e Estevão Urbano, presidente da Sociedade Mineira de Infectologia, que comentaram sobre a metodologia do estudo e sobre os resultados apresentados.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 22 de julho de 2020.

Verificação

O texto do site Pleno.News fala sobre o estudo por causa de uma reportagem do canal americano Fox News, de 3 de julho, que foi postada pelo presidente Jair Bolsonaro em suas redes sociais. Na matéria da Fox, que anunciou um “novo estudo bombástico sobre a hidroxicloroquina”, a pesquisa do Henry Ford Health System foi comentada pelo médico cardiologista e CEO da Foxhall Cardiology, Ramin Oskui.

O Estudo da Henry Ford Health System

No estudo publicado pelo Henry Ford Health System no International Journal of Infectious Diseases, médicos analisaram 2.541 pacientes hospitalizados entre os dias 10 de março e 2 de maio de 2020 em seis hospitais que fazem parte da rede de saúde da organização, localizados na região metropolitana de Detroit, nos Estados Unidos. De acordo com os pesquisadores, 13% dos tratados apenas com hidroxicloroquina morreram, enquanto a taxa de mortalidade entre os pacientes não tratados com hidroxicloroquina foi de 26,4%. “Nenhum dos pacientes havia documentado anormalidades cardíacas graves; no entanto, os pacientes foram monitorados quanto a uma condição cardíaca rotineiramente apontada como uma razão para evitar o medicamento como tratamento para a covid-19”, afirma o estudo.

Os pesquisadores também analisaram a taxa de mortalidade entre pacientes que receberam uma combinação dos medicamentos hidroxicloroquina e azitromicina e aqueles que receberam apenas o último tipo.

O Comprova conversou com o diretor do Instituto Questão de Ciência, Carlos Orsi, que avalia que existem dois problemas nos argumentos apresentados pela pesquisa; um de caráter geral e outro específico do trabalho em questão. Segundo Orsi, trata-se de um estudo observacional, em que os autores apenas observaram os resultados dos pacientes, sem interferir ou controlar os tratamentos. “Estudos observacionais são logicamente incapazes de provar qualquer coisa. Eles apenas sugerem associações (no caso, entre hidroxicloroquina e menor mortalidade) que depois precisam ser validadas em estudos de intervenção, onde os tratamentos são devidamente controlados”, explica ele. Como o Comprova já explicou, em outras verificações, o método científico mais confiável é o chamado de ensaio clínico randomizado controlado, em que um grupo de voluntários é recrutado e acompanhado pelos pesquisadores ao longo de vários meses. Nesse modelo, também é sorteado aleatoriamente quem receberá a medicação, para evitar que fatores externos, como idade e condição de saúde, interfiram no resultado.

O estudo Instituto Henry Ford também mostrou que aqueles pacientes tratados apenas com azitromicina ou com uma combinação de hidroxicloroquina e azitromicina tiveram um desempenho um pouco melhor que aqueles não tratados com os medicamentos. A análise constatou que 22,4% dos tratados apenas com azitromicina morreram e 20,1% tratados com uma combinação de azitromicina e hidroxicloroquina morreram, em comparação com 26,4% dos pacientes que morreram e que não foram tratados com nenhum dos medicamentos.

Segundo Estevão Urbano Silva, diretor da Sociedade Mineira de Infectologia, o fato de os pacientes analisados no estudo do Henry Ford Health System não terem apresentado efeitos colaterais relacionados à medicação não é definitivo. “Não dá para trazer essa conclusão para todos os outros pacientes e para as situações do dia a dia, porque é um estudo com metodologia científica inadequada”, aponta o médico. No início de junho, uma nova pesquisa da Universidade de Minnesota constatou, após uma experiência com mais de 800 pacientes, que não há nenhum benefício no uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no combate ao novo coronavírus. Além dessa análise, o estudo também apontou para efeitos colaterais graves ou problemas cardíacos com o uso dos dois medicamentos.

Para o infectologista, no momento em que a ciência caminha para aperfeiçoar seus estudos sobre o novo coronavírus, é delicado e perigoso acreditar em apenas uma fonte de informação. “Temos que fazer uma avaliação sobre o tema. Tem estudos mais conclusivos falando contra o uso da cloroquina que não adiantou, então temos que nos firmar naqueles estudos que tiveram uma metodologia mais adequada, mais correta.”

Embora o neurocirurgião Steven Kalkanis, CEO do Henry Ford Medical Group e vice-presidente sênior e diretor acadêmico do Henry Ford Health System, esteja comemorando que o medicamento tenha ajuado a salvar vidas, ao fazer a leitura dos dados é possível encontrar inconsistência nos perfis dos grupos de pacientes.

De acordo com Carlos Orsi, uma das tabelas apresentadas no estudo informa que apenas 38% dos pacientes do grupo que não receberam hidroxicloroquina ou azitromicina tinham menos de 65 anos, enquanto a taxa de pacientes mais jovens medicados, nos outros grupos, era superior a 50%. “A comparação não é justa, é impossível atribuir o progressos dos pacientes que receberam hidroxicloroquina à medicação, já que eles eram mais jovens, estavam recebendo também outros remédios. Os autores do estudo tentam corrigir essas distorções aplicando técnicas estatísticas para estimar o peso relativo de cada fator (como a idade), mas estatísticas não fazem milagres”, avalia Orsi.

A emissora norte-americana CNN esteve na coletiva de imprensa em que a equipe do Henry Ford Health System anunciou os resultados. Segundo a reportagem, a equipe que coordenou os estudos destacou que os pacientes foram submetidos ao tratamento no início da manifestação da doença. “Para que a hidroxicloroquina seja benéfica, é preciso que os pacientes tomem antes de seu organismo produzir algumas reações imunológicas severas que podem ocorrer a quem está infectado com a covid-19”, afirmaram os pesquisadores, na apresentação dos dados à imprensa.

A reportagem destaca, também, que a pesquisa recebeu críticas da comunidade científica e cita que outros dois estudos de ampla divulgação foram interrompidos porque os resultados sugeriram que a hidroxicloroquina não trazia benefícios aos pacientes. O primeiro, realizado pela Agência Nacional de Pesquisa Médica (National Institutes of Health), testou o medicamento em 470 pacientes. O segundo, realizado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, contou com mais de 11 mil pacientes.

Apesar do entusiasmo que acompanhou a publicação da pesquisa realizada pelo Henry Ford Health System, e da ênfase do site Pleno.News sobre a comprovação dos benefícios, os próprios pesquisadores destacaram na conclusão do artigo que “os resultados devem ser interpretados com cautela e o tratamento não deve ser aplicado em pacientes fora do ambiente hospitalar. Os resultados também requerem confirmação através de testes randomizados que permitam avaliar rigorosamente a segurança e a eficácia do tratamento com hidroxicloroquina para pacientes hospitalizados com a covid-19”.

A hidroxicloroquina no tratamento da covid-19

A Fox News, que publicou a reportagem sobre o estudo do Henry Ford Health System, foi a primeira emissora americana a ventilar a possibilidade de uso da cloroquina e da hidroxicloroquina, ainda em março. O advogado Gregory Rigano foi entrevistado no canal e falou sobre os resultados promissores de um estudo francês, que ainda não havia sido publicado, sobre o uso da droga no tratamento da covid-19. Tratava-se do artigo de Didier Raoult, que, posteriormente, foi criticado pela comunidade científica em decorrência dos métodos duvidosos empregados na pesquisa. O estudo francês já foi alvo de outras verificações do Comprova.

Desde então, vários outros estudos já apontaram a ineficácia do tratamento com a cloroquina e a hidroxicloroquina nos pacientes com o novo coronavírus e a Organização Mundial da Saúde suspendeu as pesquisas com o medicamento em pacientes hospitalizados.

Na semana passada, a Sociedade Brasileira de Infectologia divulgou uma nota afirmando que dois estudos internacionais comprovaram que não há nenhum benefício clínico da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. No texto, a entidade diz que a substância não é eficaz nem na prevenção nem na cura da doença.

A entidade também pede que a cloroquina deixe de ser usada como tratamento da covid-19, que os órgãos públicos reavaliem orientações de uso de medicamentos comprovadamente sem efeito e que os recursos públicos sejam usados em anestésicos, bloqueadores neuromusculares e aparelhos para o tratamento da doença, em falta na rede pública.

Nos Estados Unidos, a Food and Drug Administration — órgão governamental responsável pela regulação de medicamentos — revogou, em junho, a autorização emergencial para o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com a covid-19 — a não ser no caso de ensaios clínicos. Em julho, o órgão atualizou as diretrizes e divulgou um documento com um resumo dos problemas de segurança encontrados durante o tratamento dos pacientes hospitalizados com o novo coronavírus. São mencionados “arritmias sérias”, “problemas hematológicos e linfáticos”, lesões renais e falhas no fígado.

Por que investigamos?

O Projeto Comprova verifica conteúdos sobre a covid-19 que tenham grande alcance em redes sociais e grupos de mensagem. A checagem de fatos durante a pandemia adquiriu uma importância ainda maior, uma vez que a desinformação afeta diretamente a saúde das pessoas. Nesse caso, a relevância da verificação justifica-se pelo fato de envolver um tratamento que, além de não possuir eficácia cientificamente comprovada, pode ocasionar efeitos colaterais graves aos pacientes que a ele são submetidos.

Além disso, no Brasil, o medicamento vem sendo apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) como uma possível cura para a doença. Após afirmar ter sido diagnosticado com a doença no início de julho, o presidente disse estar tomando o remédio e defende o uso para pacientes com sintomas leves. Em um encontro com apoiadores no Palácio do Planalto, Bolsonaro exibiu uma caixa do medicamento.

Uma pesquisa do Instituto Ipsos mostra que 18% dos brasileiros acreditam que a hidroxicloroquina é uma cura para a covid-19, apesar de não haver qualquer indicação científica a sustentar essa impressão. “Entre os 16 países pesquisados, o brasileiro é a segunda população que mais acredita que há, sim, uma cura para a covid e é a cloroquina. Só perde para a Índia nesse quesito”, disse o presidente do instituto Marcos Calliari em entrevista ao Valor Econômico.

De acordo com os dados da plataforma CrowdTangle, o conteúdo verificado conta com mais de 100 mil interações no Facebook, tendo sido compartilhado inclusive pelo deputado Marco Feliciano. O conteúdo também viralizou no Twitter, somando mais de 11 mil interações.

O conteúdo do site Pleno.News também foi encontrado em outros blogs como o A Trombeta News, Atualidade em Foco, Opinião Crítica e Mídia News.

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