Passo a passo

Investigado por: 2024-01-09

Foto de menina com homens fantasiados de cães em Parada LGBTQIA+ não foi feita em São Paulo I Como verificamos

  • Estudo de caso
Estudo de caso
O Comprova está publicando relatos de algumas de suas investigações feitas em 2023 para mostrar como e por que investigou conteúdos duvidosos encontrados na internet. Este relato refere-se a uma publicação feita em junho de 2023, logo após a Parada LGBTQIA+ de São Paulo, e que exibia a foto de uma menina segurando a bandeira de arco-íris ao lado de três homens com máscara de cachorro, ajoelhados no chão – dois deles sem camisa.

Caso relatado por Luisa Alcantara e Silva (Folha de S.Paulo)

 

Em junho de 2023, logo após a Parada LGBTQIA+ de São Paulo, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) publicou um post que viralizou ao mostrar uma foto de uma garota segurando a bandeira de arco-íris ao lado de três homens com máscara de cachorro, ajoelhados no chão – dois deles sem camisa. Na legenda, o parlamentar criticava a presença de crianças no evento, sugerindo que a imagem era da edição paulistana, o que não era verdade. Outros políticos também fizeram publicações semelhantes.

Até 14 de junho, quando o Comprova publicou a verificação, o post havia sido compartilhado mais de 8,1 mil vezes e teve quase 44 mil curtidas, número que não se alterou significativamente até hoje.

Para a reportagem concluir que a foto não havia sido feita na avenida Paulista, onde ocorre a Parada LGBTQIA+ de São Paulo ou em seus arredores, o primeiro passo foi fazer uma busca reversa no Google Lens, ferramenta de reconhecimento de imagem que traz links de páginas que postaram a imagem ou uma semelhante anteriormente.

Nesta etapa, verificou-se que um post da rede X (antigo Twitter) publicou a mesma imagem em 2019. Ou seja, a foto que estava sendo verificada, do post de Nikolas Ferreira, não havia sido feita em 2023. Mais do isso: a legenda dizia que a imagem era da Parada de Montreal, no Canadá.

Mas, ao verificar uma foto, não podemos nos basear apenas no que o autor do post diz. Ele poderia estar mentindo sobre a imagem ter sido clicada em Montreal. Então, o Comprova usou a informação como uma pista e foi para o próximo passo: buscar vídeos da Parada de Montreal de 2019 no YouTube para ver se os homens fantasiados de cães apareciam em algum momento.

Nesta etapa, a reportagem analisou mais de duas horas de vídeos que mostravam a Parada de Montreal de diferentes ângulos, até que encontrou uma gravação em que, a partir da minutagem 27’35”, foi possível ver diversas pessoas com máscara de cachorro.

I Legenda: Captura de tela do vídeo mostra o momento em que homens fantasiados de cachorro começam a aparecer.

Quase um minuto depois, aos 28’40”, surgem homens que parecem ser os da foto do post de Nikolas: um branco com a focinheira azul, outro com ela em laranja fluorescente e um preto com a coleira corporal laranja. Nesse momento, foi preciso analisar a captura de tela do vídeo para comparar com a imagem do post. Alguns detalhes foram observados, como mostra a imagem a seguir:

Depois, foi feita uma busca no Google por termos como “Pride”, “Montreal 2019” e “pups” (cachorrinhos, em inglês). Um dos resultados foi um post no X do perfil ​​@lorgair de abril de 2023 fazendo a verificação da mesma imagem, afirmando não se tratar da Folsom Street, rua famosa de San Francisco, nos Estados Unidos, e, sim, da parada de Montreal. Com tudo o que a equipe já tinha de material e comparando o vídeo em que os homens da foto foram identificados, foi possível concluir se tratar, de fato, da Parada de Montreal de 2019.

A busca no Google também trouxe como resultado uma página no Facebook do grupo Pup Montreal no Facebook. A reportagem trocou mensagens privadas na rede social com Sillas Grey, dono da página e um dos membros do grupo que esteve na Parada fazendo “puppy play”, como ele contou. Grey disse conhecer as pessoas que apareciam na foto do post de Nikolas e passou o contato de um deles para o Comprova. Foi feita uma entrevista, mas, como o homem não quis se identificar por medo de retaliações, a reportagem não publicou suas declarações – o Comprova não usa declarações em off, ou off-the-record, quando a fonte não quer aparecer.

Sabendo que a imagem não havia sido registrada em São Paulo, mas em Montreal, a equipe quis saber sobre o contexto da foto. Além de, no vídeo em que os homens fantasiados de cães aparecem, o público parece interagir e não ter problema com eles, o Comprova conversou com uma fotógrafa que esteve no evento canadense. Ela foi encontrada pela marca d’água de uma das fotos usadas na verificação feita pelo perfil @lorgair no X.

I Legenda: Post na rede X traz imagens com mesmos homens fantasiados de cães que aparecem no post verificado pelo Comprova e com marca d’água a partir da qual foi possível contatar a autora da imagem.

Ao buscar o nome que está na marca d’água – Shootitall Photo – no Google, o resultado leva a um perfil no Instagram, @photos.by.shootitall. Por meio de mensagem privada na rede, a reportagem conversou com a fotógrafa Cat Myth. Ela contou não ter presenciado nada inapropriado ao ver uma garota brincando com os homens mascarados.

As duas principais perguntas que o Comprova fez ao iniciar a verificação – se a imagem do post de Nikolas havia sido feita no Brasil e, se não fosse, qual o contexto da foto – haviam sido respondidas. Dessa forma, a reportagem teve segurança para concluir se tratar de um conteúdo enganoso. Mas por que não falso? Porque o Comprova considera falso o conteúdo que é inventado e, enganoso, aquele que é retirado de seu contexto original. Dessa forma, como a foto era real – a cena da menina com os homens fantasiados de cães não foi criada artificialmente –, a classificação correta é enganoso.

Passo fundamental, a equipe tentou falar com o deputado Nikolas Ferreira, tanto por e-mail como pelo telefone de seu gabinete informados no site da Câmara, mas não houve resposta.

Após escrever o texto da verificação, feita por pelas jornalistas Luisa Alcantara e Silva, da Folha de S.Paulo, e Letícia Mutchnik, do UOL, ele foi liberado para os editores do Comprova e, então, seguiram para a última etapa antes da publicação: o cross-checking. Esse passo consiste na leitura da verificação por jornalistas que não participaram da apuração do conteúdo. Neste momento, eles podem apontar dúvidas, inconsistências e correções. Uma vez feito o cross-checking – neste caso, feito pelos veículos O Popular, A Gazeta, Portal Norte, Poder360, Plural, Estadão, SBT e SBT News –, a verificação foi publicada, dois dias depois de iniciada.