Política

Investigado por: 2020-07-04

Exército não refez todo o trecho da transposição do São Francisco inaugurado por Temer e Lula

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Enganoso
É verdade que a ideia de transposição das águas do São Francisco remonta ao Império e que o exército participou da execução das obras. O texto que viralizou no WhatsApp, no entanto, engana ao afirmar que as obras ficaram abandonadas por dez anos e que o exército teria refeito trecho inaugurado por Temer e Lula. Veja outras informações checadas pelo Comprova
  • Conteúdo verificado: Texto que tem circulado no WhatsApp e nas redes sociais e que denuncia casos de corrupção na construção da transposição do Rio São Francisco e afirma que “o exército refez todo o trecho com concretagem adequada podendo assim ser finalmente inaugurada” pelo presidente Jair Bolsonaro.

Não é verdade que os governos dos ex-presidentes petistas Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff tenham abandonado por dez anos as obras da transposição do Rio São Francisco – depois de terem roubado R$ 7 bilhões dos cofres públicos. Essa alegação enganosa circula em texto no WhatsApp e em redes sociais. O boato afirma que o Exército teria refeito todo o trecho inaugurado em 2017, que teria “desmoronado” — mas isso também não é verdade. A mensagem dá a entender que os ex-presidentes Michel Temer, Lula e Dilma teriam feito questão de inaugurar uma obra ainda inacabada.

A construção, apesar de ter tido interrupções, não ficou parada por dez anos. Também é falso que um canal tenha desmoronado. O que ocorreu foi que o Eixo Leste, inaugurado por Temer, e depois por Lula e Dilma de maneira extraoficial, teve problemas de vazamentos. Enquanto a estrutura ficou sem água para realização de reparos, o concreto do leito chegou a rachar, deixando exposta a manta de impermeabilização. Mas o canal nunca desmoronou. Além disso, a inauguração feita por Bolsonaro ocorreu no Eixo Norte, distante 215 quilômetros de onde os ex-presidentes estiveram.

O texto traz algumas informações verdadeiras, como o fato de que a ideia da transposição partiu do Imperador Dom Pedro II. Realmente, os primeiros debates sobre a transposição começaram durante o período do Segundo Reinado. Também é verdade que as obras só tiveram início em 2007 e o primeiro trecho foi inaugurado em 2017. Além disso, é verdadeira a afirmação de que o Exército participou do início das obras e ainda atua no Eixo Leste.

O texto que viralizou também acusa a “esquerda” de embargar a obra pelos efeitos ambientais e diz que o Partido dos Trabalhadores “não fez nada além de superfaturar e roubar”.

Como verificamos?

Primeiro, buscamos na Internet matérias de jornais ou sites de órgãos públicos, como o Senado, que ajudassem a recontar a história da transposição do Rio São Francisco. Também lemos um relatório do Comitê Gestor da Bacia do São Francisco, que conta parte da história. E entrevistamos o engenheiro civil Francisco Jácome Sarmento, que atuou no projeto em três governos de partidos diferentes.

Em seguida, procuramos a comunicação do Exército Brasileiro para confirmar se a organização havia trabalhado na obra e em que trechos. Entramos em contato como Tribunal de Contas da União (TCU), a Controladoria Geral da União (CGU), a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público Federal (MPF) em Pernambuco, Paraíba e Ceará para saber se foram realizados procedimentos ou operações relacionadas a possíveis casos de corrupção no empreendimento.

Por fim, procuramos o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), atual responsável pela obra de transposição. Também usamos recurso do Google Maps para descobrir a distância entre o trecho inaugurado pelo presidente Jair Bolsonaro, no último dia 26 de junho, e aquele que foi inaugurado pelo ex-presidente Michel Temer, e depois por Lula e Dilma Rousseff, em duas diferentes datas de 2017.

Verificação

A transposição

O Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF), popularmente conhecido como “transposição do São Francisco”, é uma obra hídrica de 477 quilômetros de extensão que levará água do rio para 390 municípios dos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. A obra se divide em dois canais, o Eixo Leste e o Eixo Norte, e vai ter 13 aquedutos, nove estações de bombeamento e 27 reservatórios, segundo informações do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR).

A criação de um canal que leve a água do São Francisco para banhar a região do Nordeste que não tem rios perenes já era uma proposta debatida desde o Império. Na época, porém, não havia recursos financeiros e tecnológicos para concretizar a construção. Ainda no século XIX, o engenheiro alemão Henrique Guilherme Fernando Halfeld percorreu o rio para estudar a viabilidade da obra.

O primeiro projeto técnico foi feito durante o regime militar, no governo João Figueiredo, pelo Ministério do Interior, conduzido por Mario Andreazza, segundo relatório produzido pelo Comitê Gestor da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. No governo Itamar Franco, em 1994, um projeto básico foi elaborado pelo então Ministério da Integração Regional. Na época, o traçado tinha apenas o Eixo Norte. De acordo com o relatório, a transposição só passou a ter um Eixo Leste no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), quando um terceiro projeto foi elaborado, em 2000.

A construção dos canais só começou em 2007, no governo Lula (PT), após uma longa disputa jurídica. Francisco Jácome Sarmento, que integrou a equipe técnica da transposição nos governos Itamar, FHC e Lula, contou ao Comprova que liminares judiciais contra a construção foram concedidas em todos os estados que historicamente se opunham à transposição: Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais. “Um belo dia, o STF [Supremo Tribunal Federal] chamou para si a responsabilidade de julgar todos os processos relativos à transposição; ao ser provocado pela AGU [Advocacia-Geral da União]. Foi quase um ano até que o ministro Sepúlveda Pertence desse um parecer monocrático, em março de 2007. Três meses depois, nós demos início à obra”, lembra.

Sarmento é engenheiro civil, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e autor dos livros “Transposição do Rio São Francisco – Realidade e obra a construir” (2005) e “Transposição do Rio São Francisco – Os bastidores da maior obra hídrica da América Latina” (2018).

Ao contrário do que diz o texto verificado pelo Comprova, a oposição ao projeto não partia apenas da esquerda, segundo conta Sarmento. Opositores do PT, como o ex-senador Antônio Carlos Magalhães (Bahia) e o ex-ministro do Meio Ambiente tucano José Carlos Carvalho (Minas Gerais), ambos de estados contrários ao projeto, também trabalharam contra. “Inicialmente, a gente tinha previsto uma obra que traria água do Rio Tocantins para alimentar o São Francisco. O ministro José Carlos Carvalho protegeu o trecho onde a água seria captada como área ambiental. Aquilo inviabilizou a alimentação do São Francisco. Depois, ele fez de tudo para criar o Comitê Gestor da Bacia do São Francisco. Porque mesmo que o projeto ressurgisse no futuro, a construção precisaria ser aprovada por esse comitê”, lembra.

Inaugurações

A obra atravessou os governos Lula e Dilma Rousseff (PT). O Eixo Leste foi o primeiro a ser inaugurado, em 10 de março de 2017, pelo então presidente Michel Temer (MDB). Na ocasião, Temer foi até a cidade de Sertânia (PE) para abrir a comporta do reservatório de Campos. Depois, seguiu para Monteiro (PB) para acompanhar a chegada das águas. Na cerimônia, o presidente descreveu o momento como “uma coisa emocionante”, que teria levado parte da comitiva a lacrimejar.

Nove dias depois, Lula e Dilma, já ex-presidentes, visitaram o trecho da obra de Monteiro para fazer o que chamaram de “inauguração popular” da obra. Os dois estiveram apenas em Monteiro e chegaram a discursar em cima de um palanque.

Mesmo depois de inaugurada, a transposição passou por problemas. O bombeamento de água chegou a ser interrompido por três meses por causa de vazamentos na barragem de Cacimba Nova, em Custódia (PE). Outra bomba passou nove meses em obras por falhas na barragem de Negreiros, em Salgueiro (PE). A falta de água no canal fez o concreto rachar.

No dia 26 de junho, o presidente Jair Bolsonaro fez a primeira inauguração no Eixo Norte da transposição. Ele acionou as comportas do Reservatório de Milagres, na cidade de Verdejantes (PE). De lá, as águas seguem para o Reservatório Jati, na cidade de Bela Vista (CE). O local onde Bolsonaro esteve fica a 215 quilômetros da cidade de Monteiro, onde Temer, Lula e Dilma estiveram.

Em um e-mail enviado ao Comprova, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) informou que o Eixo Norte está com 97,49% de execução, com previsão de conclusão no primeiro semestre de 2021. Já o Eixo Leste tem execução de 97,11% e deve ser concluído no segundo semestre de 2020. Em ambos, faltam serviços complementares que, segundo a pasta, não comprometem a passagem da água pelos canais.

O Exército

Em 2007, foi o Exército que deu início às obras da transposição. Segundo Francisco Jácome Sarmento, o objetivo era garantir que o projeto saísse do papel. Em junho daquele ano, o canteiro de obras chegou a ser ocupado por movimentos sociais que temiam uma degradação do rio. A ocupação teve o apoio do então bispo de Barra (BA), dom Luiz Flavio Cappio, que havia feito duas greves de fome contra a construção dos canais.

Segundo Sarmento, o Exército teve um papel importante para garantir a segurança da obra e não na sua execução, uma vez que seus opositores ameaçavam invadi-la. O professor afirmou que a participação dos militares deu-se no sentido de “garantir a irreversibilidade das obras”.

Em nota enviada ao Comprova por e-mail, o Exército confirmou que atua no Projeto de Integração do São Francisco desde o início das obras. Segundo a assessoria, a Engenharia Militar construiu os dois canais de aproximação, que levam as águas até as primeiras estações de bombeamento de cada eixo, entre 2007 e 2016. Os militares também abriram e pavimentaram a estrada que dá acesso à estação de bombeamento do Eixo Leste.

Atualmente, o Exército executa obras obras complementares às barragens de Areias e Tucutu, nos Eixos Leste e Norte do projeto. Além disso, os militares têm pavimentado as estradas que dão acesso a duas estações de bombeamento. As obras têm previsão de término até 31 de dezembro de 2020.

Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, o Exército foi convidado para dar início às obras pelo Canal de Aproximação e, depois, atuou na primeira barragem do Eixo Leste, por “questões de segurança nacional” e por “atrasos na conclusão de processos licitatórios”.

Denúncias de corrupção

Para apurar se existem denúncias de corrupção envolvendo os projetos de transposição do rio São Francisco, o Comprova entrou em contato com a Controladoria Geral da União (CGU), o Tribunal de Contas da União (TCU), o Ministério Público Federal (MPF) nos estados de Pernambuco, Paraíba e Ceará — onde ocorreram as obras —, e com a Polícia Federal.

Em resposta, a Polícia Federal informou que em 2015 foi declarada a Operação Vidas Secas – Sinhá Vitória, para apurar suspeitas de superfaturamento das obras de engenharia executadas por empresas em dois dos quatorze lotes da transposição do rio São Francisco.

Segundo a nota publicada na época no site da PF, os investigadores apuraram que empresários do consórcio responsável pela obra utilizaram empresas de fachada para desviar cerca de R$ 200 milhões das verbas públicas destinadas à transposição, no trecho que vai do agreste no estado de Pernambuco até a Paraíba. A nota diz, ainda, que as empresas de fachada utilizadas para esses desvios estariam em nome de um doleiro e um lobista investigados na Operação Lava Jato.

No dia da deflagração da Operação Vidas Secas, a PF realizou uma entrevista coletiva em que informou que as investigações sobre esses desvios começaram em 2014, a partir da análise de relatórios produzidos pelo TCU e pela CGU que apontaram indícios de superfaturamento em dois lotes das obras de transposição do rio São Francisco. A operação culminou na prisão temporária de Elmar Varjão, presidente da construtora OAS na época, e de executivos de outras empresas que participavam das obras. Além disso, a investigação revelou que as construtoras envolvidas utilizaram contas de Alberto Youssef e Adir Assad, presos no âmbito da Operação Lava Jato, para realizar os desvios.

Na resposta ao Comprova, a PF informou, ainda, que como as investigações são sigilosas, não é possível informar a existência de novas operações sobre este tema.

Sobre denúncias de corrupção envolvendo as obras de transposição do rio São Francisco, o MPF-PE informou por e-mail que não há questionamentos sobre a obra em andamento em Pernambuco. O MPF-CE e o MPF-PB não responderam nosso contato até a data de fechamento deste texto.

O TCU, também por e-mail, enviou ao Comprova três decisões recentes do tribunal que tratam do assunto. Nelas, o TCU identificou irregularidades na contratação das empresas responsáveis, na execução dos contratos e nas políticas que deveriam ser traçadas em conjunto pelos municípios beneficiados pelas obras.

A CGU não respondeu o contato do Comprova até o fechamento deste texto.

O texto verificado afirma que, no início, a obra era estimada em R$ 5 bilhões. E que outros R$ 7 bilhões foram “roubados dos cofres públicos”. Em e-mail enviado ao Comprova, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) informou que o orçamento inicial previsto era de R$ 4,5 bilhões. Até o momento, já foram investidos R$ 10,9 bilhões. Só em custos ambientais, foram incorporados R$ 1,5 bilhões, o que a pasta considera “relevante para a revisão orçamentária”. A estimativa do custo final do projeto não foi informada pelo MDR.

A postagem também diz que, além do Exército, as empresas “Ecolog” e “Egrar” iniciaram a construção. O MDR enviou ao Comprova uma lista com dezenas de empresas que trabalharam no projeto. Mas nenhum dos nomes consta nessa lista.

O ministério também disse não ter conhecimento de desvios ou superfaturamento ocorridos na transposição e ressaltou que “as licitações e execução foram monitoradas e fiscalizadas pelos organismos de controle e os questionamentos apresentados por estes órgãos foram sanados”.

Por que investigamos?

O Comprova investiga conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal de ampla repercussão em redes sociais. É o caso desse texto sobre o Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF), maior obra de infraestrutura hídrica do país, que deve atender 12 milhões de pessoas no semiárido nordestino. No Facebook, a versão desse texto postada pela página Amigos do Presidente teve 116 mil interações, segundo dados da plataforma Crowdtangle.

O Estadão Verifica e a Agência Lupa verificaram um conteúdo sobre o trabalho do exército nas obras da transposição do Rio São Francisco. O Estadão também mostrou que fotos dos canais da transposição foram usadas fora de contexto nas redes sociais.

Enganoso para o Comprova é todo conteúdo retirado de seu contexto original e usado em outro com o propósito de mudar o seu significado; induzindo a uma interpretação equivocada.