Contextualizando

Investigado por: 08/10/2025

Entenda o que significa o conceito de narcoestado, que não se aplica ao Brasil

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Teoria de que o país já atingiu a fase em que é controlado por facções criminosas ganhou força nas redes sociais após a Polícia Federal abrir investigação sobre o suposto envolvimento do PCC com a adulteração de bebidas alcoólicas com metanol.

Conteúdo analisado: Publicações que alegam que o Brasil se tornou um narcoestado após uma investigação ser aberta para apurar se há envolvimento do crime organizado na adulteração de bebidas alcoólicas com metanol e que o PSOL é o partido do narcoestado.

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Contextualizando: Após a Polícia Federal abrir uma investigação para saber se há ligação entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e a adulteração de bebidas alcoólicas com metanol, começaram a circular nas redes sociais publicações alegando que o Brasil seria um “narcoestado”, devido à forte presença de organizações criminosas em diversos setores da sociedade.

Posts usando a expressão “narcoestado” citam ainda, como exemplos que reforçariam essa ideia, o episódio no qual um cão foi baleado por traficantes na Favela do Irajá, no Rio de Janeiro, após ser “jurado de morte” por traficantes, e uma reportagem que aponta que ao menos 50,6 milhões de brasileiros estão em territórios controlados por facções criminosas, sendo a maior proporção da América Latina.

Na publicação que cita o cachorro baleado, o autor afirma que o PSOL é o partido do narcoestado, em referência ao post feito pela deputada federal Érika Hilton (PSOL-SP), no qual sugeriu ao rapper Oruam a fazer “revolução pé no chão”. A parlamentar se pronunciou depois e disse que errou o tom e que desconhecia “todas as problemáticas e complexidades que existiam em torno dele”.

Oruam é filho de Marcinho VP, um dos líderes da facção Comando Vermelho e tem uma tatuagem de Elias Maluco, condenado pela morte do jornalista Tim Lopes.

O que é narcoestado?

O conceito de narcoestado tem sido citado com frequência pelo promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo (MPSP) Lincoln Gakiya, visto como o principal nome do combate ao PCC no país. No entendimento dele, se alcança essa fase quando o crime começa a dominar prefeituras, câmaras municipais, e depois a ter influência sobre os governos estaduais, podendo então chegar a eleger um presidente ou ter ligações diretas com o chefe do Executivo federal. Segundo o promotor, o Brasil ainda não atingiu essa fase.

Na mesma linha, o professor do doutorado em Segurança Pública Pablo Lira, da Universidade de Vila Velha (UVV), ouvido pelo Comprova, entende que o termo narcoestado reflete a captura de um país pelo poder do crime organizado. “Em linhas gerais, descreve uma realidade na qual as estruturas estatais deixam de cumprir seu papel de garantir a ordem, a Justiça e o interesse público, passando a ser penetradas, controladas ou corrompidas pelas redes do narcotráfico”, avaliou.

“O que deveria ser combate e repressão ao tráfico se transforma, em muitos casos, em cumplicidade velada ou até em associação direta. O Estado, nesse cenário, em vez de proteger o cidadão, passa a proteger os próprios traficantes”, afirmou o professor, que também é membro-pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Essa discussão parece recente, mas já tem décadas. Em 1999, por exemplo, o então governador do Acre, Jorge Viana, chamou de preconceito o tratamento dado pela imprensa brasileira ao passar chamar a localidade de narcoestado devido à presença do narcotráfico.

Henrique Herkenhoff, professor do programa de doutorado da UVV, entende que não há um conceito “oficial de narcoestado”. Mas ele explica que o termo pode ser entendido como um país governado por traficantes e a serviço dos interesses deles: “Algo assim como certos países muito pequenos, que se sustentam basicamente como paraísos fiscais, onde as leis facilitam a entrada de dinheiro e outros bens de alto valor sem nenhum controle, impõem sigilo bancário extremo, não colaboram com as autoridades de outros países etc.”

Brasil pode vir a se tornar um narcoestado?

Em entrevistas dadas a diferentes veículos, Lincoln Gakiya defende a ideia de que se nada for feito para conter o avanço das organizações criminosas, o Brasil se tornará um narcoestado nas próximas décadas. “O crime organizado está num processo de crescimento exponencial. E ninguém sabe onde isso vai chegar se não tomarmos uma providência diferente de tudo que foi feito até agora”, declarou ao jornal O Globo.

Pablo Lira ressalta que estudos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública têm apontado que desde 2007 há um avanço das facções criminosas para além do eixo entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Essas organizações estão presentes em todo o país hoje e já com influência em câmaras, prefeituras, assembleias legislativas, portos e aeroportos, com o país caminhando para essa condição de narcoestado.

Herkenhoff, por sua vez, entende que o país não é nem vai se tornar um narcoestado, por entender que a influência de organizações criminosas em governos é pequena e funciona mais à base de corrupção pontual de autoridades, com poucos integrantes ocupando cargos eletivos.

Além disso, o professor avalia que o país não é um grande produtor de drogas, somente rota para chegar a outros países consumidores.

“Temos pouca produção de maconha e importamos a maior parte do Paraguai. Somos apenas importadores e consumidores de drogas. O Brasil apenas consome drogas, quase não produz, e serve apenas como rota de passagem. O próprio PCC deixou de focar no tráfico e está caminhando para explorar negócios legais ou pelo menos formalmente legalizados”, analisou.

Há países classificados como narcoestado?

Pablo Lira cita que países da América Latina, como Colômbia e México, têm aparecido em estudos como exemplo de localidades com características semelhantes a de um narcoestado.

“O México é frequentemente citado pela força dos cartéis que disputam territórios e desafiam a soberania estatal em certas regiões. Países da América Central, como Honduras e Guatemala, também viveram períodos nos quais o tráfico de drogas se sobrepôs às autoridades formais. Em outra escala, o Afeganistão ilustra como a produção e o comércio de ópio alimentaram estruturas políticas e militares, sustentando conflitos e regimes ao longo das últimas décadas”.

Já Henrique Herkenhoff entende que nenhum país possa ser considerado um narcoestado, embora alguns tenham a produção e exportação de drogas como parte relevante de sua economia e tenha havido influência significativa do tráfico no próprio governo, como México, Colômbia, Peru, Bolívia e Paraguai.

Investigação da Polícia Federal sobre relação do PCC com metanol em bebidas

Em 30 de setembro, o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Augusto Passos Rodrigues, afirmou que a corporação investigava se há ligação do crime organizado com a adulteração de bebidas alcoólicas com metanol.

O governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas (Republicanos), divergiu do posicionamento da PF e disse que não havia evidência de ligação do crime organizado ao caso. O secretário estadual de Segurança Pública, Guilherme Derrite (PP), afirmou que está “completamente descartada a hipótese do PCC”.

No dia 6 de outubro, em uma coletiva de imprensa, o governador de São Paulo manteve seu posicionamento. “No dia em que começarem a falsificar Coca-Cola eu vou me preocupar… Ainda bem que não chegaram nesse ponto. Coca-Cola, até aqui, não. E a minha é normal”.

Até o momento, São Paulo registrou 2 mortes por metanol. O Ministério da Saúde informou que investiga 12 mortes por suspeita de intoxicação por metanol, em São Paulo (6), Pernambuco (3), Mato Grosso do Sul (1), Paraíba (1) e Ceará (1).

O Comprova procurou a Polícia Federal para checar o andamento das investigações. A PF respondeu, em nota, que não se manifesta sobre investigações em andamento.

Fontes consultadas: Os professores Henrique Herkenhoff e Pablo Lira e reportagens sobre o assunto.

Por que o Comprova contextualizou este assunto: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas e eleições. Quando detecta nesse monitoramento um tema que está sendo descontextualizado, o Comprova coloca o assunto em contexto. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Para se aprofundar mais: O Comprova publica, com frequência, conteúdos com o objetivo de contextualizar assuntos em alta nas redes sociais. Alguns exemplos são o que mostrou que um post inventou declaração de Fernando Haddad culpando exclusivamente a gestão anterior por problemas econômicos e o que detalhou que a Constituição brasileira não permite construção de bomba nuclear.