Hidroxicloroquina no início da covid-19 não descarta necessidade de UTI
- Enganoso
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- Ao contrário do que diz médico nas redes sociais, há relatos de óbitos de pacientes que usaram hidroxicloroquina já no início dos sintomas. E não há comprovação de que o medicamento reduz o risco de morte pela covid-19
- Conteúdo verificado: Tuíte de um médico que diz não ter visto nenhum paciente medicado com hidroxicloroquina no início dos sintomas que tenha evoluído para a fase crítica na UTI.
Um tuíte do dia 22 de junho, escrito pelo médico Allan Garcês, induz ao erro ao fazer crer que o uso da hidroxicloroquina nos primeiros sintomas de covid-19 impede que a doença siga para uma etapa mais severa. “Ainda não vi nenhum paciente que iniciou o tratamento com hidroxicloroquina no INÍCIO dos sintomas, ou seja, no INÍCIO da sua doença, que tenha evoluído para a fase crítica na UTI. FICA A DICA”, ele escreveu em seu perfil.
Estudos dos programas Solidariedade (da Organização Mundial de Saúde) e Recovery (do governo do Reino Unido) não conseguiram comprovar que a cloroquina e a hidroxicloroquina reduzam o risco de morte de pacientes com covid-19. A autoridade sanitária dos Estados Unidos, a Food and Drug Administration (FDA), suspendeu a autorização para uso emergencial dessas substâncias como tratamento do novo coronavírus no país.
No Brasil, o Ministério da Saúde permitiu o uso da cloroquina em pacientes graves no dia 23 de março e orientou o uso em casos leves no dia 20 de maio. A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e a Sociedade Brasileira de Arritmias Cardíacas (Sobrac) criticaram a liberação para uso da droga na fase inicial da doença.
Para o médico Edson Carvalho, professor da Uninove e infectologista do Hospital Unimed e do Hospital Estadual de Bauru (SP), referência no tratamento de covid-19, a “suspeita” de Garcês não tem fundamento. Carvalho, que foi procurado pelo Comprova por recomendar a hidroxicloroquina, diz que tratou “vários” pacientes com hidroxicloroquina desde o início dos sintomas e, mesmo assim, viu eles evoluírem para casos mais graves – alguns, inclusive, morreram.
Como verificamos?
O Comprova buscou identificar os primeiros estudos que sugeriram o uso da cloroquina no tratamento de pacientes com covid-19 e as revisões feitas sobre eles. Também tentou saber como estudos clínicos conduzidos pela Organização Mundial de Saúde e pelo governo do Reino Unido vêm sendo interpretados por essas organizações. A equipe procurou o posicionamento sobre o remédio do governo dos Estados Unidos e do Brasil. Por fim, levantou o posicionamento de entidades como a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e a Sociedade Brasileira de Arritmias Cardíacas (Sobrac).
Também procuramos testemunhos de pessoas que evoluíram para quadros graves da doença mesmo se tratando com a droga desde o início e, em pesquisas na internet, encontramos uma reportagem do site JCNet, de Bauru, com a história de Marília Buzalaf e seu marido, Cláudio, que, em março, ficou 21 dias no hospital – 11 deles intubado – por conta do novo coronavírus, e havia tomado hidroxicloroquina. No Facebook, descobrimos que ela é professora da Faculdade de Odontologia da USP em Bauru, no interior paulista, e, no site da instituição, conseguimos o e-mail dela. Entramos em contato e marcamos uma entrevista, realizada por telefone.
Após ouvir o relato de Marília, o Comprova pediu a ela o celular de Edson Carvalho, médico que cuidou do caso, para confirmar se o paciente havia sido realmente tratado com a hidroxicloroquina desde o começo dos sintomas.
Também tentamos, sem sucesso, falar com Allan Garcês, autor do tuíte. Ele não respondeu as mensagens diretas no Facebook nem no Instagram – seu Twitter não permite o envio de mensagens.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 29 de junho de 2020.
Verificação
O que dizem os estudos?
A cloroquina chegou a ser considerada como um possível tratamento de infecções por coronavírus nas epidemias de SARS e MERS. Na época, porém, não houve estudos em humanos que pudessem confirmar a eficácia da droga.
Em março deste ano, dias após a OMS classificar a covid-19 como uma pandemia, a medicação voltou ao debate a partir de um estudo conduzido por médicos do Sul da França que sugeriram usar a cloroquina para tratar o SARS-CoV-2. Esse estudo foi alvo de muitas críticas, seus resultados foram questionados e considerados anedóticos — termo da literatura médica que descreve casos isolados, que não representam comprovação científica. Em abril, a International Society of Antimicrobial Chemotherapy e a Elsevier, entidades responsáveis pela revista que publicou o artigo, emitiram um comunicado que reconheceu a existência de dúvidas quanto ao conteúdo do estudo e anunciaram um novo processo de revisão independente.
No dia 19 de março, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, classificou o medicamento como uma “mudança de jogo” no tratamento da covid-19 e anunciou que aprovaria o uso dele no país. Dois dias depois, o presidente Jair Bolsonaro disse que o laboratório do Exército aumentaria a produção de cloroquina no Brasil.
Em 25 de março, o Ministério da Saúde emitiu uma nota técnica autorizando o uso da cloroquina para tratar pacientes com casos graves de covid-19. Depois, em 20 de maio, o governo brasileiro passou a orientar o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no “tratamento medicamentoso precoce” de pacientes com covid-19, incluindo pessoas com sintomas leves da doença. No texto, o próprio Ministério da Saúde escreveu: “ainda não há meta-análises de ensaios clínicos multicêntricos, controlados, cegos e randomizados que comprovem o benefício inequívoco dessas medicações para o tratamento da covid-19”.
Naquela semana, a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) emitiu uma nota em que “não recomenda o uso da Cloroquina e Hidroxicloroquina associadas, ou não, à Azitromicina, enquanto não houver evidências científicas definitivas acerca do seu emprego”. O texto também orienta os médicos a realizarem eletrocardiogramas nos pacientes que optarem pelo tratamento, de modo a monitorar possíveis complicações cardíacas.
A Sociedade Brasileira de Arritmias Cardíacas (Sobrac) também lançou uma nota ressaltando a “ausência de evidências que apontem claramente o benefício do uso deste esquema terapêutico”. A entidade recomenda o acompanhamento dos pacientes que usem o medicamento para “prevenir a manifestação de eventos arrítmicos potencialmente fatais que podem ocorrer devido a efeitos adversos de um destes fármacos ou da associação entre eles ou com outros fármacos que também possam predispor a distúrbios elétricos cardíacos”.
No dia 5 de junho, pesquisadores do Recovery, estudo clínico conduzido no Reino Unido para encontrar medicamentos que combatam o novo coronavírus, afirmaram não haver benefício no uso da hidroxicloroquina em pacientes com covid-19. Dez dias depois, a Food and Drug Administration (FDA), autoridade sanitária americana, revogou a autorização de uso emergencial da cloroquina e da hidroxicloroquina para o tratamento da doença nos Estados Unidos. A organização afirmou na ocasião que, após realizar estudos, descobriu ser improvável que os medicamentos sejam efetivos no tratamento da covid-19. “Além disso, à luz de eventos adversos cardíacos graves e contínuos e de outros efeitos colaterais sérios, os benefícios conhecidos e potenciais de cloroquina e hidroxicloroquina não superam mais os riscos conhecidos e potenciais para o uso autorizado”, afirmou ainda.
A Organização Mundial da Saúde chegou a incluir a hidroxicloroquina na lista de medicamentos avaliados pelo estudo clínico Solidariedade, que testou drogas para combater a covid-19 em pacientes de 35 países. A OMS, porém, encerrou os testes com a hidroxicloroquina no dia 17 de junho por não ter sido capaz de identificar redução no número de óbitos entre os pacientes que usaram a droga.
A autoria do tuíte
Médico, Allan Quadros Garcês, conhecido como Allan Garcês, foi diretor do Departamento de Articulação Interfederativa da Secretaria-Executiva do Ministério da Saúde na gestão de Luiz Henrique Mandetta. Deixou o cargo para assumir como secretário estadual da Saúde de Roraima, posição que ocupou por 43 dias, entre janeiro e fevereiro deste ano. O Comprova procurou a Secretaria de Saúde para saber o motivo da exoneração, mas não recebeu resposta até o fechamento desta verificação.
Forte defensor da hidroxicloroquina, como mostra em seus perfis nas redes sociais, Allan se lançou ao cargo de ministro da Saúde após a saída de Nelson Teich, em maio. Na época, afirmou em seu Twitter que não havia sido sondado pelo Planalto, mas sabia que seu nome havia chegado “até lá”. No mesmo post, se diz “alinhado ao governo”, como é possível verificar em seus posts – muitos de apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Em 2018, ele foi candidato a deputado federal pelo PSL, mas não se elegeu. Antes, tentou se candidatar a vereador em São Luís, no Maranhão, pelo PMB em 2016, mas também não se elegeu. Em 2012, ficou como suplente da vaga de vereador pela mesma cidade, pelo PSDB.
Testemunho
Em entrevista ao Comprova, a professora de Odontologia da USP Bauru Marília Buzalaf contou que o seu marido, Cláudio, havia tido febre, dor no corpo e mal-estar por cinco dias quando procurou o Hospital Unimed, em Bauru, em março. “Falta de ar ele não teve”, disse. Ele fez o teste de covid-19 e, por ser cardíaco, acharam melhor interná-lo, mesmo sem o resultado do exame, que só sairia em cinco dias. “Naquele dia (da internação), o médico já tinha quase mandado a gente embora para casa depois de ter feito os exames”, afirmou Marília. Mesmo não considerando o caso grave, a equipe médica passou a tratar o paciente com hidroxicloroquina. O medicamento não fez efeito e, quatro dias depois, Cláudio foi para a UTI. No total, ele ficou 21 dias no hospital, até receber alta.
Casos médicos
O infectologista Edson Carvalho, que trabalha no Hospital Unimed e no Hospital Estadual de Bauru, e leciona na Uninove, disse ao Comprova que Cláudio estava na fase inicial da doença quando foi internado e passou a ser tratado com hidroxicloroquina. Acrescentou que teve vários pacientes que tomaram a droga assim que surgiram os sintomas e também tiveram o quadro agravado – alguns falecendo. O médico afirmou ainda que hoje tem “pelo menos quatro pacientes graves que tomaram o medicamento desde o começo e evoluíram com gravidade, com intubação, e que a hidroxicloroquina não fez a menor diferença no quadro clínico deles”.
Por que investigamos?
O Comprova investiga conteúdos suspeitos que viralizam nas redes sociais. Quando o material aborda assuntos relacionados à covid-19, a verificação se torna ainda mais importante, pois conteúdos enganosos podem colocar a saúde das pessoas em risco. O tuíte checado pelo Comprova tinha mais de 17 mil curtidas e foi retuitado 3.500 vezes.
Sem apresentar nenhuma prova, Allan Garcês engana ao insinuar que a hidroxicloroquina, se receitada no início dos sintomas de covid-19, evita que os pacientes evoluam para quadros mais graves. Desde os primeiros casos da doença no Brasil, os temas relacionados à pandemia têm sido usados para reforçar narrativas que se alinham ou contrariam o discurso do presidente da República, Jair Bolsonaro. No caso, o tuíte do médico segue a linha do chefe do Executivo, que sempre defendeu a cloroquina e a hidroxicloroquina como possíveis substâncias eficazes contra o novo coronavírus, descartando evidências científicas segundo as quais ainda não há nenhuma droga conhecida que combata com eficácia a doença. A polarização dos discursos em defesa do uso de medicamentos sem eficácia comprovada pode servir de incentivo à automedicação e causar efeitos colaterais danosos.
Desde o início da pandemia, o Comprova já realizou várias checagens sobre a cloroquina. Uma delas enganava ao afirmar que pesquisadores brasileiros usaram doses letais da medicação para matar os pacientes. Outra mentia ao afirmar que o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, proibiu o uso da substância. Recentemente também mostrou que era enganoso um conteúdo que atribuía ao uso da cloroquina a situação da pandemia no Senegal.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor ou que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.