Tuíte engana ao responsabilizar o governo federal por importação de laticínios
- Enganoso
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- Publicação engana ao afirmar que o governo federal importa leite para quebrar produtores brasileiros. A postagem utiliza vídeo realizado por uma mulher que se apresenta como uma pecuarista que trabalha com produção de leite. De fato, desde 2022, houve aumento na importação de leite e derivados em torno de 264%, conforme plataforma de dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). A compra, no entanto, é feita por empresas privadas e não pelo governo.
Conteúdo investigado: Publicação utiliza vídeo de pecuarista que trabalha com produção de leite, em que ela fala sobre aumento da importação do produto nos últimos 12 meses, como forma de culpar o governo federal pela crise e falência de produtores do mercado de leite.
Onde foi publicado: Telegram e X (antigo Twitter).
Conclusão do Comprova: É enganoso post que responsabiliza o governo brasileiro pela compra de produtos lácteos de países como Argentina, Uruguai e Nova Zelândia com o objetivo de prejudicar produtores brasileiros. As transações de leite e seus derivados com países estrangeiros são realizadas por empresas privadas para abastecer o setor, como explicou a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A entidade é composta por federações e sindicatos do setor produtivo de todo o país.
A indústria láctea brasileira importou no primeiro semestre deste ano quase 116 mil toneladas de leite, creme de leite e lácteos (com exceção de manteiga e queijo). A quantidade é 238% maior do que a registrada no mesmo período de 2022 – aproximadamente 34 mil toneladas, segundo os dados da plataforma Comex Stat, mantida pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). Os maiores comerciantes dos produtos são Argentina e Uruguai, que, juntos, somam mais de 100 mil toneladas.
Os dados mostram também o aumento do fluxo de importação entre os países: houve um salto de 466% nas transações com a Argentina, saindo de 9 mil toneladas para 51 mil toneladas, no comparativo entre os seis primeiros meses de 2022 e 2023. Com o Uruguai, há o registro de um aumento de 150%. A variação na importação depende de aspectos como preço médio pago por litro e as condições de produção. A baixa disponibilidade da matéria-prima no campo, impactada por alterações climáticas, a variação do real frente ao dólar e a competitividade dos produtos estrangeiros frente aos nacionais são alguns dos fatores que influenciam na importação do leite, bem como o preço a que é comercializado.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. No X (antigo Twitter), foram 169 mil visualizações, 7,5 mil curtidas e 2,5 mil retuítes. Já no Telegram foram 7,5 mil visualizações. O mesmo vídeo foi encontrado no Facebook, YouTube e TikTok, mas sem o texto que responsabiliza o governo brasileiro pela importação.
Como verificamos: O primeiro passo foi procurar por notícias sobre o aumento da importação de leite. Para isso, termos como “aumento importação leite Brasil” e “Brasil importação leite Argentina” foram consultados no Google.
A consulta aos dados foi feita na plataforma Comex Stat, alimentada pelo MDIC, usando a Classificação Uniforme para Comércio Internacional (CUCI) do leite e derivados, com exceção da manteiga e queijo. Também procuramos instituições ligadas à produção de leite, como a CNA.
Por fim, tentamos contato com o responsável pela publicação, mas não houve retorno até o fechamento desta checagem.
Realidade dos produtores de leite no Brasil
Não é novidade a crise que pecuaristas que trabalham com produção de leite enfrentam no Brasil. Há mais de um fator responsável por elevar os custos de produção e de comercialização do produto. Um dos mais recentes é a estiagem, que afetou algumas localidades do país durante temporadas de queda nas temperaturas, a exemplo do que enfrentam estados como Rio Grande do Sul e Espírito Santo.
Conforme o governo do Estado do Rio Grande do Sul, os processos causaram “grande impacto na produção leiteira”. Esses fatores ocasionaram baixa condição corporal das vacas em lactação por má qualidade ou falta de pastagens e falta de água disponível ou perdas nas safras de grãos destinados à nutrição dos animais. É o que aponta o Comunicado Agrometeorológico 51 – Especial Biometeorológico Verão 2022-2023, editado pelo Departamento de Diagnóstico e Pesquisa Agropecuária da Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi).
Outro fator é o elevado custo de produção. Em função disso, apenas em Mato Grosso do Sul, entre 2011 e 2021, a produção do leite caiu 41,13%. Consequentemente, o preço pago aos produtores que persistem sobe, em razão da lei da oferta e demanda, conforme explicou a consultora técnica da Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), Eliamar Oliveira, ainda em fevereiro de 2023. “A principal razão para a valorização no preço do leite é a oferta restrita. Não houve aumento de produção e isso limitou a captação.”
Em 16 de agosto de 2023, a CNA criticou a concorrência desleal no setor lácteo no país em debate na Câmara dos Deputados. A entidade pediu ajuda principalmente em relação à importação do leite em pó. O evento, organizado pela Frente Parlamentar em Apoio ao Produtor de Leite (FPPL), reuniu milhares de participantes, entre parlamentares, representantes do governo federal, lideranças do setor rural e produtores de todo o país.
Representantes do setor explicam que nunca houve “um momento tão difícil, com um volume tão grande de importação que atinge gravemente pequenos, médios e grandes produtores. Sofremos uma competição desleal e desnecessária que desestrutura o setor lácteo”, ressaltou o presidente da Comissão Nacional de Pecuária de Leite da CNA, Ronei Volpi, durante o evento.
Importação de leite no Brasil
A indústria láctea brasileira importou no primeiro semestre deste ano quase 116 mil toneladas de leite, creme de leite e lácteos (com exceção de manteiga e queijo), 238% maior do que o registrado no mesmo período de 2022. Durante todo o 2022, foram importadas 132 mil toneladas do produto, apontando para uma disparada das movimentações nestes seis meses iniciais. A diferença é de cerca de 16 mil toneladas. Os dados estão disponíveis na Comex Stat.
A CNA avalia que o aumento de “mais ou menos 300%”, mencionado pela autora do vídeo, seja exclusivamente relacionado aos leites em pó. Entre janeiro e julho de 2022, esses produtos lácteos somaram 29,4 mil toneladas, enquanto no mesmo período deste ano acumularam 107 mil toneladas, 266% a mais que no ano passado.
Entre os países fornecedores, a confederação elenca que, em primeiro lugar, figura a Argentina, em segundo, o Uruguai, e o Paraguai em terceiro. Juntos, esses três países acumulam 98% do volume de leite importado pelo Brasil, em equivalente-litros de leite. A Nova Zelândia aparece apenas na sétima colocação, conforme informação da entidade.
| Busca no sistema do Mdic sobre importações de lácteos nos seis primeiros meses de 2022 e 2023. Captura de tela feita em 24 de agosto de 2023. Fonte.
| Importações de leite e derivados, com exceção de manteiga e queijo, por país nos seis primeiros meses de 2022 e de 2023. Captura de tela feita em 24 de agosto de 2023. Fonte.
Em concordância, o Boletim do Leite de agosto deste ano, levantamento mais recente publicado pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Universidade de São Paulo (USP), mostra que a desvalorização do leite no campo, iniciada em maio, “ocorre em conformidade com o movimento de queda observado ao longo de toda a cadeia produtiva, justificada pela combinação do consumo enfraquecido com a diminuição dos custos e o aumento das importações”.
Segundo o levantamento, mesmo com algumas regiões registrando um cenário positivo na produção, como o Sudeste e o Centro-Oeste, menos dependentes de influências do clima, os preços permanecem altos, principalmente em função da demanda e dos valores competitivos de importação.
“As importações de lácteos caíram em julho, mas ainda permanecem em patamares elevados e com preços competitivos frente aos produtos nacionais. Dados da Secex [Secretaria de Comércio Exterior] mostram que, em julho, as importações caíram 12%, mas ainda superaram os 185,6 milhões de litros”, informa o boletim. Sobretudo, mesmo com o recuo em julho, o volume adquirido aumentou frente ao do mesmo período do ano passado, enquanto o preço caiu 6%.
Papel do governo federal
Com relação ao papel do governo federal diante deste cenário, a CNA explicou ao Comprova que as compras referidas no vídeo são de responsabilidade de empresas privadas.
O tuíte checado alega que o governo federal procura “quebrar os produtores brasileiros”. Procurado, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços afirmou ao Comprova que aprovou, no dia 15 de agosto de 2023, por meio do Comitê Executivo de Gestão (Gecex) da Câmara de Comércio exterior (Camex), o aumento do Imposto de Importação de 12,8% para 18%, pelo período de um ano, para três produtos lácteos. Segundo o governo federal, a medida é uma forma de favorecer os produtores nacionais.
Os produtos que receberão aumento na tarifa são: 1) óleo butírico de manteiga, utilizado como ingrediente em queijos processados, outros produtos lácteos, molhos e pães; 2) queijos de pasta mofada (azul) e outros queijos que apresentem veios obtidos utilizando Penicillium roqueforti; 3) e queijos com um teor de umidade igual ou superior a 46% e inferior a 55%, em peso – massa macia.
“Além desses itens, o Gecex decidiu anular, no caso de 29 itens de produtos lácteos, uma decisão do governo anterior que reduziu unilateralmente a Tarifa Externa Comum (TEC) em 10%, por meio da Resolução Gecex nº 353, de 2022. Dessa forma, esses 29 produtos terão imposto de importação variando de 10,8% a 14,4%. Alguns exemplos dessa lista são: iogurte (14,4%); manteiga (14,4%); queijo ralado (14,4%); e doce de leite (14,4%)”, informou a pasta.
O secretário executivo do MDIC, Márcio Elias Rosa, enfatizou que “a expectativa é de que as medidas minimizem os impactos negativos desse segmento tão essencial para geração de emprego e renda em nosso país, com forte presença de pequenos produtores de agricultura familiar na quase totalidade dos municípios brasileiros”.
O governo prometeu ainda aumentar a fiscalização do leite que entra de outros países, após denúncias sobre a prática de reidratar o leite em pó importado, o que é proibido. O ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro (PSD), disse que o Mapa está intensificando a fiscalização sobre a hidratação de leite em pó, que é proibida. “Nós vamos coibir de forma rigorosa. Estamos atentos também à entrada de produtos fora de conformidade nas nossas fronteiras”. Segundo o ministro, o governo trabalha para minimizar os impactos da importação de leite do Mercosul, que está tirando a competitividade e a rentabilidade dos produtores.
O que diz o responsável pela publicação: O Comprova entrou em contato com o responsável por veicular o vídeo da pecuarista, mas não houve retorno. Também procuramos pela autora do vídeo, mas não encontramos seu perfil nem demais informações.
O que podemos aprender com esta verificação: Nesta peça de desinformação, podemos concluir que o responsável por veicular o material distorce a mensagem do vídeo a partir da legenda, alterando o teor da crítica feita pela pecuarista. Um dos primeiros pontos que mostram a falta de credibilidade da postagem é a falta de referência à autora do vídeo. Desse modo, sequer é possível encontrar a postagem original ou solicitar informações sobre o assunto abordado. Uma forma de se precaver deste tipo de material enganoso é observar a incoerência, como a que vemos entre a legenda e o vídeo. Também pode-se procurar pelo assunto em veículos de comunicação jornalísticos.
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: O Estadão já fez verificações sobre assuntos relacionados ao leite, a exemplo da checagem que desmente vídeo que dizia mostrar a produção de leite no Brasil, mas que era de fato na Coreia. Em outra verificação, mostrou-se que é falso que leite de caixinha tenha substâncias tóxicas para se manter conservado na embalagem.
Importações e exportações são temas presentes em conteúdos de desinformação e já foram verificados pelo Comprova. Recentemente, o projeto mostrou que postagem engana ao relacionar apagão a decreto para compra de energia na Venezuela e que imposto para taxar compras em sites internacionais como Shein e Shopee existe desde 1999.