Saúde

Investigado por: 2021-12-16

Hospital desmente relato de médico sobre infarto de paciente vacinada em Campo Grande

  • Falso
Falso
‘Dr. Jackson’ viralizou no Telegram e no Twitter dizendo que uma paciente de 26 anos teria infartado no Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian, da UFMS, depois de receber dois imunizantes contra a covid-19. Autoridades de saúde e o próprio hospital negam o caso.
  • Conteúdo verificado: Vídeo em que um médico de Campo Grande alega que uma moça de 26 anos teria infartado em um hospital universitário após tomar duas doses da Astrazeneca e uma dose de reforço da Pfizer.

É falso que uma mulher de 26 anos tenha sido atendida em um hospital por causa de um infarto depois de receber duas doses da vacina Oxford/AstraZeneca e uma dose de reforço da Pfizer/BioNTech contra a covid-19. O conteúdo foi divulgado em um vídeo gravado pelo médico cardiologista João Jackson Duarte, que viralizou após a publicação em um canal do Telegram chamado Médicos pela Vida e em perfis do Twitter.

No vídeo, o médico, conhecido nas redes como “Dr. Jackson”, afirma que acabara de sair da sala de emergência e cita o suposto caso, sem dizer o nome da pessoa nem apresentar qualquer prova. Ele diz que a paciente não teria histórico familiar de infarto e que o único “fator de risco” seria o fato de ela ter sido imunizada contra o novo coronavírus.

O Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian (Humap), da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), de Campo Grande, onde o vídeo foi gravado, confirmou que o “Dr. Jackson” faz parte da equipe, mas negou a ocorrência de qualquer caso de infarto de jovem de 26 anos na unidade nos últimos dias. O registro mais antigo da publicação do vídeo encontrado pelo Comprova é de 9 de dezembro.

As secretarias municipal e estadual de saúde também informaram que não receberam qualquer notificação de reação adversa do tipo pós-vacinação contra a covid-19 e reforçaram que os efeitos colaterais mais comuns são de caráter leve a moderado, como dor no local da injeção e sintomas semelhantes a de uma gripe, a exemplo do que sustenta a Organização Mundial da Saúde (OMS).

O médico não retornou aos pedidos de entrevista do Comprova. O conteúdo foi classificado como falso nesta checagem porque foi inventado e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.

Como verificamos?

A reportagem baixou o vídeo publicado no Twitter usando a ferramenta Getfvid e assistiu às imagens quadro a quadro na tentativa de identificar placas, cartazes e algum elemento na estrutura do prédio que indicasse em qual hospital ocorreu a gravação. Foi possível visualizar uma placa nas cores azul e roxa, com setas em amarelo, mas os detalhes não estão legíveis.

Em seguida, procuramos por “Dr. Jackson” no Google em busca de informações sobre o profissional. Uma reportagem de um site local cita que ele atendia pacientes no Edifício Evidence Prime Office, no Royal Park, em Campo Grande. O endereço é o mesmo de uma clínica particular que aparece em seu perfil nas redes sociais como informação de contato.

Em seu cadastro na plataforma Lattes, do CNPq, o médico declara que tem doutorado em Cardiologia e Cirurgia Cardiovascular pela Fundação Cardiovascular São Francisco de Assis e que atualmente integra uma equipe do Humap. A unidade aparece como seu endereço profissional. Além desse, diz atuar também no Hospital Regional do Mato Grosso do Sul (HRMS).

Com essas pistas, a reportagem passou a procurar por imagens e vídeos dessas unidades para confirmar o local da gravação. O Comprova chegou a uma reportagem de fevereiro de 2019 do canal da TV UFMS, que mostra alguns espaços do hospital universitário. O conteúdo está disponível no YouTube.

No início da gravação aqui verificada, o médico caminha em um corredor com lâmpadas longas e posicionadas na horizontal, próximo a canaletas por onde provavelmente passam fios. O mesmo formato aparece no início da reportagem da UFMS, em corredores internos do hospital universitário.

| Captura do vídeo do médico.

| Captura da reportagem da UFMS.

A certa altura do vídeo, o médico passa por uma porta que está sinalizada por uma placa nas cores azul e roxa, com setas em amarelo. Uma placa semelhante aparece na reportagem da UFMS, logo nos corredores de entrada do hospital universitário. Naquele momento da caminhada do “Dr. Jackson”, a posição das luzes era diferente, na vertical, o que também confere com a matéria do canal.

 

| Capturas do vídeo do médico.

| Captura da reportagem da UFMS.

O hospital é administrado pela UFMS e pertence ao governo federal. A reportagem entrou em contato por meio de telefone e e-mail disponibilizado na página. A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) confirmou que o vídeo foi gravado no Humap, mas negou a ocorrência citada pelo médico.

O Comprova entrou em contato com as assessorias de comunicação da Secretaria Estadual de Saúde do Mato Grosso do Sul (SES-MS) e da Secretaria Municipal de Saúde (Sesau) para verificar se houve alguma notificação de infarto como reação adversa pós-vacinação em Campo Grande. A SES-MS respondeu por e-mail, e a Sesau, por WhatsApp.

Em seguida, a equipe procurou por reportagens e comunicados oficiais que tratam sobre os efeitos colaterais das vacinas contra a covid-19 e tentou entrevistar o médico João Jackson Duarte por meio do telefone de sua clínica que aparece em pesquisa no Google. A atendente nos passou o telefone da secretária do médico, que pediu o envio de solicitação de entrevista por WhatsApp. O contato também foi feito mensagem direta no Instagram. Ele não respondeu ao pedido de explicações.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 16 de dezembro de 2021.

Verificação

Hospital desmente o relato do médico

Em nota, o Humap informou que analisou as imagens e que elas indicam a gravação na unidade hospitalar por João Jackson Duarte, que faz parte do corpo médico. O hospital disse que não tem registro de nenhuma paciente com 26 anos acometida por infarto nos últimos dias e que vai abrir processo interno para apurar os fatos e a conduta do profissional.

“Independentemente do ocorrido, a instituição ressalta que não compactua com as conclusões feitas pelo profissional, visto que qualquer análise com este teor precisa ser feita baseada em um conjunto de dados, metodologias, análises de grupos focais e em uma amplitude muito maior como tem sido feito em diversas pesquisas no Brasil e no mundo”, acrescentou a instituição.

Secretarias não foram notificadas

Em resposta ao Comprova, tanto a Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande (Sesau) quanto a Secretaria Estadual de Saúde do Mato Grosso do Sul (SES-MS) afirmaram que não receberam a notificação de infarto como reação adversa das vacinas contra a covid-19. Até 16 de dezembro de 2021, mais de 4,6 milhões de doses foram aplicadas no estado e 72,15% da população estava com esquema vacinal completo.

Por mensagens de texto, a gerência técnica de imunização da Sesau disse que a informação que consta no vídeo do médico não é verídica. “O serviço não recebeu nenhuma notificação de reação adversa do tipo pós-vacinação contra a Covid-19 do Humap. Até o momento, os casos relatados à secretaria são de reações já previstas, como dor localizada. Nada referente a necessidade de internação ou outras ocorrências mais sérias.”

O mesmo relato foi feito pelas autoridades estaduais de saúde. “A SES/MS não foi notificada sobre caso de evento adverso grave no Estado”, afirmou em nota encaminhada por e-mail ao Comprova. Ainda segundo o órgão, o risco de uma reação adversa que demande atendimento é “muito pequeno” para qualquer imunizante autorizado no país e que, dessa forma, recomenda a toda a população elegível que procure uma unidade de saúde ou posto de vacinação para completar o esquema vacinal.

Reações provocadas pela vacina

Os efeitos colaterais provocados pelas vacinas podem ser encontrados nas bulas dos imunizantes, que estão disponíveis no site da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No caso da Pfizer, as reações mais comuns (ocorrem em 10% dos pacientes) são dor e inchaço no local de injeção, cansaço, dor de cabeça, diarreia, dor muscular, dor nas articulações, calafrios e febre. Também são comuns (ocorrem entre 1% e 10%) casos de vermelhidão no local de injeção, náusea e vômito.

Entre as reações incomuns (ocorrem em menos de 1% dos pacientes) estão aumento dos gânglios linfáticos, reações de hipersensibilidade, coceira, urticária, angioedema, diminuição de apetite, dor nos membros, insônia, letargia, hiperidrose, suor noturno, astenia, sensação de mal-estar e prurido no local de injeção. Há também reação rara de paralisia facial aguda, que ocorre entre 0,01% e 0,1% dos pacientes.

Em julho, a Anvisa publicou alerta sobre risco de miocardite e pericardite pós-vacinação com a Pfizer. A miocardite é a inflamação do músculo cardíaco e a pericardite é a inflamação do revestimento externo do coração. O comunicado da agência ocorreu após os Estados Unidos relatarem a ocorrência de casos das doenças depois da vacinação contra covid-19 com imunizantes de plataforma de RNA mensageiro (RNAm), que é o caso da Pfizer e da Moderna. Apenas a Pfizer tem registro para uso no Brasil.

No texto, a Anvisa esclarece que a ocorrência dos eventos adversos é baixa e recomenda atenção dos profissionais de saúde e da população a sintomas como dor no peito, falta de ar e palpitações. A agência ainda ressalta que a adoção de tratamento correto é fundamental para melhor evolução clínica dos pacientes. Por fim, a Anvisa reafirma que mantém a recomendação da continuidade da vacinação com a Pfizer porque, até o momento, os benefícios superam os riscos. Este também é o posicionamento da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

Em relação à vacina de Oxford/AstraZeneca, a bula aponta como reações muito comuns (acima de 10%) sensibilidade, dor, sensação de calor, coceira ou hematoma (manchas roxas) onde a injeção é administrada, sensação de indisposição de forma geral, fadiga, calafrio ou sensação febril, dor de cabeça, enjoos, dor na articulação ou dor muscular.

Os sintomas comuns (entre 1% e 10%) incluem inchaço, vermelhidão ou um caroço no local da injeção, febre, vômitos ou diarreia, dor nas pernas ou braços e sintomas semelhantes aos de um resfriado, como febre acima de 38 °C, dor de garganta, coriza, tosse e calafrios. Já os incomuns (entre 0,01% e 1%) envolvem sonolência ou sensação de tontura, diminuição do apetite, dor abdominal, linfonodos aumentados, sudorese excessiva e coceira ou erupção na pele.

As autoridades de saúde constataram ainda a ocorrência de coágulos sanguíneos em combinação com níveis baixos de plaquetas no sangue, ou trombocitopenia (TTS), mas em uma frequência extremamente rara, inferior a 1 entre 100.000 indivíduos vacinados. Em nota técnica de outubro, o Ministério da Saúde informou uma taxa ainda mais baixa: 1 a 8 casos por milhão. Esse é um efeito adverso mais grave que pode resultar em morte, mas a chance é muito baixa e não muda o perfil de segurança do produto, segundo a Anvisa. Estudos indicam ainda que o risco de desenvolver um quadro de trombose ao ser infectado pela covid-19 seria de 8 a 10 vezes mais alto.

A Anvisa também já publicou comunicado afirmando que a vacinação é, atualmente, a abordagem farmacológica mais promissora e segura para o controle da pandemia causada pelo Sars-CoV-2.

Quem é o médico que gravou o vídeo

João Jackson Duarte é um médico especializado em cardiologia e cirurgia cardiovascular e está regularmente inscrito no Conselho Regional de Medicina do Mato Grosso do Sul (CRM-MS), segundo consta no site da entidade.

Nas redes sociais, ele afirma atuar em uma clínica particular de “cardiologia e nutrição funcional” no bairro Royal Park, em Campo Grande. O currículo na plataforma Lattes acrescenta como locais de atendimento o Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian (Humap) e o Hospital Regional de Mato Grosso do Sul (HRMS).

O “Dr. Jackson” é um adepto do chamado “tratamento precoce” — um conjunto de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19 propagandeado por figuras como o presidente Jair Bolsonaro (PL) como opção terapêutica, mas que não encontra respaldo nos principais órgãos de saúde do mundo.

A página da sua clínica particular traz uma série de postagens festejando a prática, incluindo pacientes segurando uma folha de papel com a inscrição “Eu venci o covid” ao lado do médico, sempre sem máscara. Sites locais afirmam que o médico chegava a escrever “livre da picada” em sua conta no Telegram, anunciando aos seguidores que o paciente que recebeu alta não precisaria mais da vacina.

Em suas contas pessoais no Facebook e no Instagram, são frequentes os conteúdos de viés antivacina. O médico acusa os imunizantes de serem ineficazes, distorce informações sobre componentes da fórmula e os associa a casos de doenças graves e mortes sem provas. Em um post recente, afirma que se contaminou com o novo coronavírus em agosto de 2020 e se recusou a se vacinar depois disso.

A busca pelo nome do “Dr. Jackson” no Google ainda traz uma série de artigos em sites de Campo Grande sobre polêmicas do médico. Em junho, por exemplo, entrou em conflito na Justiça com a administradora do prédio onde estava localizada a sua clínica particular e a vigilância sanitária por descumprir protocolos para evitar a contaminação pela covid-19. Ele foi acusado de circular sem máscara pelas dependências do prédio mesmo com diagnóstico positivo para a doença.

Jackson também já foi citado em investigações do Ministério Público Federal (MPF), em um caso que apurou a suposta adulteração de um laudo de cirurgia que terminou na morte de uma paciente, em 2012. Na época, o médico fazia parte da equipe de cirurgia de José Carlos Dorsa no Humap e teve conversas telefônicas grampeadas em meio a um inquérito que apurava um possível esquema de corrupção operado pelo colega.

Assim como outros médicos que já foram alvos de checagem do Comprova por compartilhar desinformação, Jackson vem recebendo convites para participar de audiências públicas sobre a adoção do passaporte sanitário contra a covid-19, medida que obriga estabelecimentos a solicitarem comprovantes de vacinação para entrada. Ele diz ter participado de eventos em Dourados (MS) e Rio Branco (AC), por exemplo.

O médico também já falou sobre “acolhimento precoce” em live convocada por vereadores de Campo Grande. Em texto divulgado pelo legislativo municipal sobre o evento, o médico aparece como “diretor científico da Sociedade Brasileira de Ozonioterapia Médica”, entidade presidida por Maria Emilia Gadelha Serra, outra profissional que costuma atacar as vacinas com desinformação e tentou emplacar a aplicação retal de ozônio como tratamento contra a covid-19 no ano passado.

Apesar de o canal do Telegram em que o conteúdo viralizou se chamar Médicos pela Vida e ter na descrição um link que leva para o site do grupo de mesmo nome, conhecido por defender o tratamento precoce, este nega ser o responsável pela plataforma. No dia 10 de dezembro, o Comprova publicou reportagem mostrando que outra postagem feita no mesmo canal enganava ao afirmar que vacina contra covid-19 tinha provocado aumento de morte de crianças.

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos que tenham viralizado sobre a pandemia e políticas públicas do governo federal. O vídeo checado foi publicado no Telegram e no Twitter e já teve mais de 100 mil visualizações nas plataformas.

Esse tipo de conteúdo falso é prejudicial porque desinforma a população sobre a incidência de efeitos adversos das vacinas e desencoraja a imunização. Segundo autoridades de saúde e especialistas, os imunizantes são a principal medida de combate à covid-19, pois previnem a infecção, a evolução para quadros graves e as mortes pela doença.

Outras verificações publicadas recentemente pelo Comprova já mostraram que mutações da covid-19 não descartam eficácia e segurança das vacinas e que a vacina contra a covid-19 é segura e não gera HIV, câncer ou HPV.

Falso, para o Comprova, é conteúdo inventado e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.