Política

Investigado por: 2020-09-23

Decisões do STF contra Bolsonaro estão dentro das atribuições da Corte

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Enganoso
Tuíte distorce fatos para sugerir uma atitude de inconstitucionalidade do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação a ações envolvendo o governo de Jair Bolsonaro. As decisões, porém, se basearam em artigos da Constituição
  • Conteúdo verificado: Post sugere que o STF está agindo de maneira inconstitucional para limitar os poderes do presidente Jair Bolsonaro.

Uma publicação feita no Twitter distorce fatos para sugerir uma atitude de inconstitucionalidade do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação a ações envolvendo o governo de Jair Bolsonaro (sem partido).

No texto, a autora levanta suspeita sobre alguns atos recentes do Poder Judiciário: a suspensão da nomeação do diretor da Polícia Federal; a decisão de que os estados e municípios têm “competência concorrente” para tomar providências no enfrentamento ao novo coronavírus; a afirmação que as Forças Armadas não exercem o poder moderador entre os poderes; a audiência pública promovida pelo órgão para discutir a captação de recursos para o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo do Clima). Todas essas decisões, porém, se basearam em artigos da Constituição.

Especialistas ouvidos pelo Comprova consideraram que nenhum dos atos citados representa uma ação inconstitucional por parte do STF. Na visão deles, o único ponto que não é pacífico é o que trata da nomeação para o comando da PF. Ainda assim, o ministro Alexandre de Moraes seguiu entendimento que a Corte já havia usado recentemente em dois episódios durante os governos dos ex-presidentes Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB).

Como verificamos?

Por meio do Google, procuramos notícias sobre os temas levantados pela postagem verificada e quais foram os posicionamentos do Supremo Tribunal Federal em cada um deles. Depois, procuramos na Constituição Federal quais são as atribuições do STF.

Na sequência, entrevistamos advogados constitucionalistas para saber se houve algum ato inconstitucional por parte do STF. Por telefone, falamos com Pietro Alarcon, professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito na PUC-SP, e com Marcelo Labanca, professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco. Também tentamos contato com a autora do tuíte, mas não tivemos resposta até o fechamento deste texto.

Verificação

As atribuições do Supremo Tribunal Federal são definidas pelo artigo 102 da Constituição Federal, que descreve o órgão como o guardião da Constituição. Ao todo, o artigo cita 22 frentes em que a Suprema Corte brasileira pode atuar. As principais delas são julgar a inconstitucionalidade de leis federais; julgar o presidente da República, o vice e todos os deputados ou senadores por crimes comuns; julgar habeas corpus e julgar conflitos entre a União e os estados.

Quarentena

No dia 15 de abril, o plenário do STF decidiu que a União, os estados e os municípios têm “competência concorrente” para tomar providências no enfrentamento ao novo coronavírus. O entendimento dos ministros foi de que se o presidente definisse sozinho por decreto quais serviços essenciais deveriam continuar funcionando, afrontaria o princípio da separação de poderes. O argumento é que apenas a União teria as prerrogativas de isolamento, quarentena, interdição da locomoção e de serviços públicos e atividades essenciais. Estavam em discussão a Medida Provisória 926/2020 e o artigo 3º da Lei Federal 13.979/2020.

Bolsonaro criticou algumas vezes a decisão e chegou a dizer que o STF havia decidido que cabia apenas aos governadores e prefeitos as ações de combate a pandemia; embora a decisão da Justiça diga que os entes têm “competência concorrente”. Na época, o ministro Luiz Fux fez questão de frisar que o STF não eximiu o governo federal de responsabilidade nas ações de combate à pandemia.

O artigo 23 da Constituição diz ser competência comum da União, dos estados e dos municípios cuidar da saúde e o artigo 24 afirma que os três entes podem legislar sobre a “proteção e defesa da saúde”, lembra Marcelo Labanca. “O federalismo brasileiro tem competências que são compartilhadas entre a União, estados e municípios. E outras que são exclusivas. No caso da União, por exemplo, só ela pode legislar sobre direito penal. Mas, em relação à saúde, todos os entes podem legislar”, explica. Labanca lembra ainda que a Lei Federal 12.608/2012, que criou a Política Nacional de Defesa Civil, estabeleceu o papel de cada ente em situações de emergência e calamidade, cabendo ao governo federal a função de coordenar e centralizar as ações. A Lei que estava em discussão no STF prevê medidas para combater a pandemia por considerá-la, juridicamente, uma emergência de saúde pública.

Para Pietro Alacon, a decisão do STF não é uma invenção, apenas a interpretação lógica do que está previsto no artigo 23. “Nesses casos específicos, como a questão da crise sanitária, existe uma questão que se denomina — um elemento importantíssimo — que é a forma federativa de Estado, uma cláusula pétrea da Constituição. A forma federativa de Estado determina competências para cada um dos entes federativos. Uma dessas competências é a competência comum, que foi reconhecida pelo STF para que governadores e autoridades municipais realizassem atos de gerenciamento da crise”, explica o professor.

Forças Armadas

Uma liminar do ministro Luiz Fux, de 12 de junho, decidiu que as Forças Armadas não podem exercer o poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A decisão afirma que, embora o presidente da República seja o chefe das Forças Armadas, esse poder é limitado pela Constituição e não pode ser usado para “indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes”. Ele também esclareceu que a prerrogativa do presidente de autorizar o emprego das Forças Armadas, ainda que por intermédio dos presidentes do STF, do Senado ou da Câmara, “não pode ser exercida contra os próprios Poderes entre si”. A liminar foi concedida dentro da ação direta de inconstitucionalidade 6457, que pede que o Supremo interprete os dispositivos da Constituição que tratam do emprego das Forças Armadas.

Em julho, a Advocacia-Geral da União (AGU), órgão que representa o Poder Executivo, enviou parecer ao STF defendendo que as Forças Armadas não podem atuar como poder moderador. O processo já foi incluído na pauta do plenário para que uma decisão final seja concedida pelo conjunto dos ministros do STF.

Na visão do professor Alarcon, a interpretação de que as Forças Armadas podem intervir em outros poderes é um “desafio à Constituição”. “Tentar desprender do artigo 142 da Constituição que existe um tal poder moderador das Forças Armadas é uma forçação de interpretação. Não há nenhum exercício hermenêutico sadio que possa te conduzir a isso dentro da Constituição de 1988. O STF, nesse caso, a única coisa que fez foi reconhecer exatamente qual é a atribuição das Forças Armadas”, avalia.

Segundo Labanca, a decisão do STF é acertada porque a função definida na Constituição para as Forças Armadas é a de defender o Brasil perante ameaças externas e proteger as fronteiras. “A corporação militar é muito nobre. Ela tem que ser muito aplaudida pela população, porque eles pagam com a vida pela nossa proteção. Mas não existe nenhuma possibilidade de que o Supremo esteja indo além da sua competência porque simplesmente ele disse uma coisa que é muito clara, como a luz do dia, de que as Forças Armadas não têm um poder moderador”, argumenta.

Diretor da Polícia Federal

Diferentemente dos outros dois casos citados, a suspensão do decreto que nomeou o delegado Alexandre Ramagem como novo diretor-geral da Polícia Federal (PF) é vista como polêmica pelos especialistas ouvidos pelo Comprova.

O caso aconteceu no final de abril deste ano. O ministro Alexandre de Moraes atendeu um pedido do PDT por meio de um mandado de segurança. Na decisão, o magistrado citou falas do ex-ministro Sergio Moro, que acusou o presidente Jair Bolsonaro de tentar interferir politicamente na Polícia Federal.

Para Pietro Alarcon, a decisão do STF nesse caso está aberta a uma discussão sobre interferência em um direito presidencial. No entanto, ressalta ele, a decisão de Alexandre de Moraes não foi inconstitucional.

“Esse é um ponto polêmico, que tem a ver com a discricionariedade presidencial para essa nomeação. Nesse caso, pode até se discutir se houve em algum momento uma interferência do Supremo. Entretanto, daqui não pode se desprender uma generalidade, uma avaliação geral de que o Supremo Tribunal Federal seja um desafiador, por assim dizer, do ordenamento constitucional ou da Constituição. Não. Esse é um ponto polêmico, mas um ponto com o qual você tem pontos de vista, interpretações variadas”, analisa.

A decisão de Alexandre de Moraes não é uma novidade em relação à suspensão de nomeações presidenciais pelo STF, como lembra Marcelo Labanca. Durante o governo de Dilma Rousseff (PT), o ministro Gilmar Mendes suspendeu a nomeação de Lula para a Casa Civil, em 2016. Dois anos depois, a ministra Carmen Lúcia impediu a posse de Cristiane Brasil no Ministério do Trabalho, no governo de Michel Temer (MDB).

“O STF vem, já há algum tempo, exercendo um controle desproporcional em relação a essas nomeações discricionárias dos presidentes. Os requisitos para ser ministro, de acordo com a Constituição, são três: idade, ter nacionalidade brasileira e estar no exercício dos direitos políticos. Na hora que o STF diz que não pode nomear, eu acho que ele está ultrapassando o seu poder. (…) O STF fez isso com Dilma, fez isso com Temer. Então não se pode dizer que ele fez isso [suspender a nomeação da PF] contra o Bolsonaro”, afirma.

“Sobre nomear ou não o diretor da Polícia Federal, o que está em jogo aí é se o presidente da República deixou de ser imparcial para poder manobrar dentro da Polícia Federal pessoas que pudessem beneficiar sua família. É isso o que está no contexto dessa decisão. Do ponto de vista formal, ele pode nomear o diretor da PF, porque é um cargo de confiança, assim como ele pode nomear um ministro”, prossegue.

Meio ambiente

Ao falar sobre o meio ambiente, a postagem verificada faz referência à audiência pública promovida pelo STF nos dias 21 e 22 de setembro. O encontro tinha como intuito debater a captação de recursos para o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo do Clima). O ministro Luís Roberto Barroso é relator do processo que acusa o governo de ter paralisado o projeto.

O evento contou com depoimentos de Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e de Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente. Ao encerrar a audiência, Barroso criticou o que chamou de “realidade imaginária paralela” no enfrentamento da questão ambiental no Brasil.

“Há um capítulo dentro do título da Ordem Social que nos fala sobre o meio ambiente: todos nós temos direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Temos aqui, no artigo 225 em diante, uma regulamentação do meio ambiente como autêntico direito fundamental. No momento em que uma lei ou um ato do poder público contradiz aquela pretensão constitucional, o Supremo Tribunal Federal pode ser invocado para poder decidir sobre o assunto, sobre o tema”, explica Pietro Alarcon.

Tramitam no STF duas ações parecidas envolvendo as políticas em relação ao meio ambiente. Uma delas, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 708, relatada por Barroso, questiona a suposta falta de iniciativa do governo de Jair Bolsonaro para o funcionamento do Fundo do Clima.

Já a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 59, sob relatoria da ministra Rosa Weber, pede que seja reconhecida a omissão da União em relação à paralisação do Fundo Amazônia e do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima). O pedido foi feito pelo PSB, PSOL e PT.

Por que investigamos?

Em sua terceira fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos que tenham tido ampla viralização nas redes sociais e que tratem de políticas públicas do governo federal ou da pandemia da covid-19. É o caso desse conteúdo, que questiona decisões do Supremo Tribunal Federal em ao menos quatro políticas públicas federais. O tuíte, publicado pelo perfil @mitags, teve 3,1 mil curtidas e 1,1 mil compartilhamentos no mesmo dia em foi postado, 23 de setembro.

Informações falsas ou enganosas envolvendo o Supremo Tribunal Federal levantam dúvidas sobre a lisura de um dos poderes da República.

O Comprova verificou outras afirmações recentes envolvendo o STF. Uma delas dizia que o órgão havia decidido que o voto impresso é inconstitucional. Outra omitia que o governo de Jair Bolsonaro liberou R$ 12 milhões para o tratamento de uma criança por causa de uma ordem judicial.

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